Como a islamofobia é ainda pior para as mulheres muçulmanas
Ilustração por Katherine Killeffer

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Como a islamofobia é ainda pior para as mulheres muçulmanas

2015 foi o ano em que os fantasmas do extremismo religioso e da islamofobia ameaçaram a harmonia de diversas sociedades em todo o Ocidente.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataformaBroadly.

Zainab Chaudry sabe mais sobre islamofobia [nos Estados Unidos da América] do que a maioria das pessoas. Como porta-voz do Conselho de Relações Americanas e Islâmicas (CAIR, na sigla em inglês), Chaudry defende a causa da compreensão mútua entre os americanos muçulmanos e o resto do país. Tal como muitas outras muçulmanas que usam o hijab e vivem em países ocidentais, Chaudry é frequentemente sujeita aos abusos da islamofobia.

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"Recentemente, estava no estacionamento de um supermercado quando um homem me insultou. 'Não és bem-vinda aqui, volta para a tua terra', gritou-me. O que não deixa de ser engraçado, porque nasci em Maryland. Também sou americana. Respondi-lhe: 'Estou em casa'. Há uma ideia, hoje em dia, de que algumas pessoas na nossa sociedade não querem aceitar que há muçulmanos norte-americanos. Esses dois aspectos da nossa identidade são vistos como algo que se anula mutuamente. Se és muçulmano ou muçulmana, então não podes ser americano ou americana".

O ano de 2015 foi aquele em que os fantasmas do extremismo religioso e da islamofobia ameaçaram a harmonia de diversas sociedades em todo o Ocidente. Ambas as formas estão ligadas. Enquanto o Estado Islâmico causa destruição pelo mundo, com ataques terroristas em massa em Paris, na Tunísia e em Beirute, em resposta, a islamobofia aumenta vertiginosamente. Ao mesmo tempo, comentários inflamados dos principais candidatos republicanos à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump e Ted Cruz, são autêntico combustível lançado à fogueira do ódio contra os muçulmanos.

Os ataques islamofóbicos nunca estiveram tão presentes. Em Londres, a Polícia Metropolitana relata um aumento de 47 por cento nos primeiros 10 meses de 2015. Nos Estados Unidos, o CAIR registou cerca de 70 ataques a mesquitas no ano passado, o número mais alto até à data. E na semana após os ataques terroristas em Paris, a organização britânica Tell MAMA, que monitoriza abusos islamofóbicos, tomou conta de 115 casos. "Estamos impressionados com a escala do problema com que estamos a lidar", confessa-nos o seu fundador, Fiyaz Mughal.

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E, neste contexto, cada vez mais mulheres estão a suportar o fardo do ódio. Incidentes recentes com muçulmanas incluem pessoas empurradas para a frente de comboios que chegam às estações; murros e pontapés em autocarros e ataques enquanto recolhem os seus filhos na escola. E são as que usam o hijab que correm mais riscos."As mulheres que são visivelmente muçulmanas enfrentam mais violência e assédio nas ruas", explica Mughal. "Há um problema de género bem definido no que diz respeito ao ódio aos muçulmanos". Este responsável afirma mesmo que 80 por cento dos ataques após os acontecimentos de Paris aconteceram contra mulheres e os motivos são, em parte, bastante práticos. "Há o factor da visibilidade. É fácil identificar uma muçulmana vestida com trajes islâmicos. E também há a questão de que elas estão menos dispostas a responder e a reagir".

As muçulmanas suportam cada vez mais o fardo dos ataques islamofóbicos. Foto de Zoa Photo, via Stocksy.

Fatima (nome fictício), 24 anos, mudou-se para os Estados Unidos quando era adolescente e, actualmente, mora em Washington DC. Nem sempre usa o hijab, mas percebeu que, quando o usa, as pessoas "mantêm certos limites". "O que não é necessariamente mau. Mas, definitivamente, tratam as 'hijabis' de forma diferente", salienta. O ano passado, Fatima presenciou o primeiro exemplo de abuso islamofóbico num autocarro da rede de transportes públicos da cidade. Mais de uma década depois de estar a viver nos EUA.

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"Sentei-me à frente de uma mulher que começou a ficar tensa e mudou de banco. Foi sentar-se afastada de mim. Percebi que estava a trocar de lugar, mas não pensei em nada até ao momento em que me apercebi que ela estava mesmo a ser abusiva. Começou a insultar-me em voz alta, e a dizer que 'nós' somos 'maus', 'filhos de Satanás', e coisas desse género".

"Há tempos, na Califórnia, uma muçulmana grávida empurrava um carrinho de supermercado, quando um homem empurrou o carrinho contra a barriga dela"

O abuso prolongou-se por cerca de 10 minutos, até a mulher sair do autocarro. "Quando ela passou por mim, sorri e desejei-lhe uma boa noite." A resposta dela foi: "Vai-te foder". A primeira reacção de Fatima neste caso foi rir da pessoa que a atacava. "Honestamente, achei ridículo, porque não consigo compreender como uma pessoa que não sabe absolutamente nada sobre mim tem a capacidade de me insultar. Mas se a situação se tornasse física e violenta, obviamente, teria reagido de maneira bem diferente. Sinto que as coisas estão a piorar no geral, o que me deixa em alerta, porque sei que, como sou 'hijabi', posso ser um alvo".

Na visão de Mughal, os ataques islamofóbicos contra mulheres evidenciam estruturas mais profundas na desigualdade de género na nossa sociedade. "Existe algo intrínseco no género delas que faz com que os homens queiram atacá-las. As mulheres são um ponto central na reprodução e manutenção das comunidades islâmicas. De acordo com a nossa experiência, o elemento fundamental da islamofobia é a violência e o abuso dos homens para com as mulheres".

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Chaudry concorda que as muçulmanas são mais vulneráveis. "Há tempos, na Califórnia, uma muçulmana grávida empurrava um carrinho de supermercado, quando um homem empurrou o carrinho contra a barriga dela", relata. O medo está a espalhar-se pelas comunidades de americanos muçulmanos. "Já tivemos o caso de pais que nos ligam e contam que pediram às filhas para tirarem os véus na escola, por temerem pela sua segurança".

Mesmo quando a discriminação não resulta em violência, as muçulmanas ainda são tratadas de forma diferente. "As pessoas acham que só porque uso o hijab, não falo inglês", acrescenta Chaudry. "Falam comigo devagar e quando respondo dizem: 'Uau, falas um inglês perfeito!'. Tento dialogar com essas pessoas e explicar-lhes que, só porque sou muçulmana e uso véu, não significa que não falo inglês. Não sou tão diferente deles, gosto do Star Wars e faço muitas das coisas que os americanos comuns fazem".

Jade Jackman é uma cineasta e activista cujo filme mais recente, "Exploiting It", explora os efeitos da islamofobia nas muçulmanas. A obra foi recentemente exibida no Instituto de Cinema Britânico, e a realizadora comenta: "Não é verdade que a islamofobia afecte somente as mulheres, porém, com as mulheres muçulmanas manifesta-se de um modo peculiar. As pessoas praticamente 'fetichizam' o hijab. Um aspecto que realço no filme é o facto de como as muçulmanas, com frequência, têm de ouvir perguntas inapropriadas sobre a sua vida sexual, porque as pessoas têm a impressão de que elas não praticam sexo".

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Actitudes islamofóbicas com as mulheres incluem, muitas vezes, uma componente sexual. "Vemos frequentemente linguagem sexualizada direccionada às muçulmanas no assédio, nas ruas", confirma Mughal. E acrescenta: "É uma linguagem usada para diminuí-las, porque são vistas como pessoas muito religiosas. As muçulmanas também enfrentam 'trolls' sexistas na internet, particularmente quando são bastante activas nas redes sociais".

"Há homens que chegam a casa e dizem às suas esposas, 'Amo-te, somos iguais', mas que nas ruas atacam as muçulmanas de forma oportunista."

Questionei Mughal sobre o perfil do típico ofensor. "Branco, homem, entre os 15 e os 35 anos. O mais interessante é que quando conversamos com esses criminosos, dizem que, em geral, não atacam as mulheres. Mas que sentem vontade de atacar as muçulmanas, porque não as vêem como mulheres. Desumanizam-nas tanto que deixam de lado a sua identidade de género. A única coisa que vêem nelas é a religião".

Jackman, por sua vez, concorda que a sociedade precisa de entender como a religião e a identidade de género das muçulmanas são questões interligadas. E justifica: "Precisamos de falar sobre como ser muçulmana se tornou uma identidade racial, em particular para as mulheres de cor. As muçulmanas não são compostas de uma única identidade e a islamofobia pode estar representada de tantas formas diferentes, independentemente de ser um aspecto de género ou religioso".

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A misoginia que sustenta em grande parte a islamofobia contemporânea preocupa profundamente Fiyaz Mughal. "Algo que aprendi com o meu trabalho no Tell MAMA é que a islamofobia não pode ser separada de questões de género mais abrangentes", salienta.

"Existe algo na nossa sociedade que afecta um grande grupo de homens. São homens que chegam a casa e dizem às suas esposas, 'Amo-te, somos iguais', mas que nas ruas atacam as muçulmanas de forma oportunista. Ele [o agressor] considera-se uma pessoa do bem, mas basta olhar um pouco além da superfície para vermos que não passa de um indivíduo machista que acha 'cool' atacar as muçulmanas. E aí está o problema. Por mais que acreditemos que estamos numa sociedade inclusiva, há uma tendência machista que dá suporte a isso tudo", conclui o responsável da organização britânica.

É deprimente constatar que a islamofobia está nas mãos do auto proclamado Estado Islâmico e outros grupos extremistas que têm como objectivo radicalizar muçulmanos moderados. "[A violência islamofóbica é] provocada pelo que está a acontecer internacionalmente, como os ataques em Paris, e também nacional e regionalmente", explica, por sua vez, Imran Awan, vice-director do Centro de Criminologia Aplicada da Universidade de Birmingham. "Se observarmos o escândalo Rotherham [em que gangues de britânicos-paquistaneses criaram e traficaram raparigas menores de idade para fins sexuais], notamos uma escalada de abuso local contra os muçulmanos".

Esses chamados "acontecimentos despoletadores" também são explorados pela extrema-direita. "É o que chamamos de extremismo cumulativo, quando um extremismo alimenta o outro. O crescimento da actividade do Estado Islâmico é acompanhado pelo aumento da actividade da extrema-direita — ambos utilizando o medo e o terror para fazerem valer as suas próprias agendas", explica Awan.

Perguntei a Chaudry se ela acredita que a situação melhorará em 2016. "Queria poder dizer que sou optimista, mas o clima actual de hostilidade contra os muçulmanos é o pior que já vi na vida, incluindo a época logo após o 11 de Setembro. Não vejo nenhuma melhoria", responde. A porta-voz do CAIR destaca ainda que a islamofobia pode ser todavia mais intensa durante este período até às eleições norte-americanas. "Temos vários meses até às presidenciais, que acontecerão em Novembro, e sabemos como os candidatos do Partido Republicano têm uma tendência para sacrificar os muçulmanos e, assim, alavancarem o seu desempenho nas sondagens".

Uma centelha de esperança, porém, pode ainda sobrepor-se ao medo e à hostilidade. "Começamos a ver uma resistência mais acentuada da parte dos nossos aliados de outras religiões. Cada vez mais pessoas nos dizem que a islamofobia não é aceitável. Com alguma sorte, essas vozes ganharão um microfone para afastarmos o discurso da intolerância. Para dizer que isso não é a América. Nós não somos assim. Temos de permanecer unidos", conclui Zainab Chaudry.