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Música

O sabor amargo da Cynicdose

Ou “como descer aos infernos em quatro cassetes imundas”.

A música que surge desvinculada de informação é muito mais estimulante para a imaginação. A entrada a rimar aconteceu por acidente e será, muito provavelmente, o ponto mais agradável da descida aos infernos que tem início a partir daqui. Descida essa que acontece pela mão da primeira fornada de lançamentos de uma editora norte-americana chamada

Cynicdose, acerca da qual pouco sabemos, talvez porque a intenção é mesmo essa. Por detrás da Cynicdose está um tipo (ou mais) que assina como KBT e que compõe música para alimentar a praga Deadmoths — que conta também com a participação de Raven e de Isaac T. Deadmoths parece ser o projecto-âncora da label, já que merece as honras do primeiro número de catálogo — Social Interactions — e uma vistosa edição de duas cassetes com um obi-strip florido. Tudo muito bonito até entrar o noise duríssimo de “Pluck” (lado A) e mais tarde uma voz afectada pela fúria de um Freddy Krueger, enquanto caga — já bastante atrasado — entre um pesadelo e outro. Eu avisei que isto ia azedar. As tiragens na Cynicdose são normalmente limitadas a 25 ou 50 cópias (numeradas à mão), e têm um aspecto bastante artesanal. Sabe-se que a música em formato digital só será disponibilizada assim que cada edição esgotar e que o futuro próximo trará mais um conjunto de novos títulos. Por enquanto há muito por assimilar nas quatro cassetes (2+1+1) que chegaram à nossa redacção. No som abrasivo da Cynicdose reconhece-se a marca de uns Whitehouse ou até mesmo de uns mais obscuros Pain Teens, e por todo o artwork estão espalhadas referências a ambientes românticos carregados de cinzento. Apontando directamente a Nautilus’ Maze, de Cambodia Synth Service, dá para entender que a Cynicdose tem o atrevimento certo para revelar um pouco da sua visão obscura da música de dança e o pudor suficiente para não cair na generalizada farsa das witchhouses, rapegazes e restantes derivados. Se “Nautilus’ Maze” parece a faixa certa para gozar a última tentação canibal no purgatório, o seu “(Haze Edit)”, do lado-b, é quase a mesma coisa, mas com muito mais chicotadas nas costas. Separation & Depression, caldeirão doentio preparado no Texas por Spanish Cloister, é, por sua vez, um álbum tão convulso como a discussão entre dois chatos sanguessugas obcecados por ocupar o mesmo espaço do testículo esquerdo pertencente a um vagabundo qualquer dos Restauradores. A partir daqui não tenho muito mais a dizer sobre esta impressionante sova de barulho. Sobra apenas uma trivialidade biográfica para o remate. A minha vizinha Palmira Tatá, senhora de inestimável bondade, certa vez bateu-me à porta para perguntar se eu me estava a sentir bem. Tinha ficado assustada com a intensidade dos gritos que eu dava para simular a morte dos bonecos Playmobil, que estariam provavelmente a encenar um episódio de Duarte & Ca. misturado com a extrema violência absorvida dos filmes de ninjas. A dona Palmira hoje estaria a tocar-me constantemente à porta se me apanhasse a ouvir estas cassetes de berraria imensa e de caos sonoro por toda a parte. Mas a senhora está no céu e o mais longe possível destas cassetes.