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Por Dentro de Ben Gardane, o Enclave Jihadista da Tunísia

Não muito longe da fronteira com a Líbia, as ruas da cidade de Ben Gardane são marcadas pelo contrabando, transferências ilegais de dinheiro e recrutamento jihadista.
Fotos por Mohamed Abdelkawi.

Chegar em Ben Gardane, uma pequena área da Tunísia a apenas alguns minutos da fronteira com a Líbia, é como cruzar a fronteira até um Estado pária. Os resorts turísticos, as atitudes simpáticas e o sentimento patriótico de "nova democracia" do país simplesmente somem. Mesmo a bandeira da Tunísia é uma visão rara aqui.

Como Saad, um professor local, me diz, "Ben Gardane só é parte da Tunísia porque temos o mesmo passaporte. É como se fosse um país diferente aqui".

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Em Ben Gardane, a economia local se baseia principalmente em contrabandear produtos, armas e jihadistas pela fronteira líbia, onde o Estado Islâmico estabeleceu campos de treinamento no ano passado. O governo tunisiano prefere investir no norte, localizado no Mar Mediterrâneo e uma área propícia ao turismo. Como resultado, lugares como Ben Gardane, que fornecem pouco retorno aos investimentos do governo, geralmente acabam negligenciados. Saad não faz rodeios sobre o efeito da vista grossa governamental. "Eles não querem nos ajudar com a educação financeiramente, como fazem com o norte e as áreas costeiras", ele frisa. "Isso força as pessoas a fazerem outra coisa. Elas vão lidar com os líbios em vez disso."

Como educador da juventude da cidade, Saad vê de perto a luta de muitos para sobreviver. "As crianças aqui em Ben Gardane largam a escola muito jovens, porque não há incentivo para continuar estudando", ele explica. "Elas ganham mais contrabandeando pela fronteira. A vida aqui é um beco sem saída."

Como jornalista estrangeiro, sou visto imediatamente com suspeita por aqui, e há uma justificativa para que os locais sejam cuidadosos com pessoas de fora. Algumas semanas antes da minha visita, dois grandes esconderijos de armas tinham sido descobertos pelas forças de segurança tunisianas na cidade. Os relatos variam sobre o possível destino dos lotes, que incluíam lança-mísseis e munição. Não está claro se as armas foram armazenadas e talvez esquecidas ali durante a revolução líbia em 2011, ou se estavam destinadas a grupos jihadistas dentro do Estado tunisiano.

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A jihad é um grande negócio por essas partes, onde décadas de esquecimento obrigaram as pessoas a se agarrar a qualquer modo de vida possível. Um homem com quem falei, Mohamed, conhecia os problemas causados pela sedução do terrorismo, que atraiu muitos jovens da cidade.

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"Meu sobrinho foi à Síria em 2012, e agora nem sua família sabe se ele está vivo. É muito triste", ele lamenta.

O Ministério do Interior tunisiano estima que pelo menos 2.400 cidadãos se juntaram a grupos jihadistas externos desde 2011, enquanto outras estimativas colocam os números em bem mais de 3 mil, já que o sul e o centro conservadores do país fornecem uma terra fértil para o terrorismo.

O sentimento antigoverno é profundo na cidade castigada pelo clima, em que um novo imposto de fronteira prejudicou ainda mais os moradores. "O governo diz que devemos pagar 30 dinares (cerca de R$ 45) toda vez que cruzarmos a fronteira, mas isso deixa muita gente, principalmente os pequenos comerciantes, lutando para cobrir os custos", afirma Mohamed. "Mas o governo é cego para Ben Gardane: ele não escuta até as pessoas irem às ruas e causarem confusão."

Desde a revolução de 2011, os locais aprenderam a depender de si mesmos em vez de daqueles no poder na capital da Tunísia.

"Tudo aqui é consertado pelos locais, não pelo governo em Tunes", destaca Mohamed. "As pessoas levantam dinheiro entre si para consertar ruas, calçadas, tudo, porque o governo não vai ajudar."

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O que é mais interessante: em Ben Gardane, é fácil mandar dinheiro para fora do país através de transferência eletrônica, um processo que acontece fora da lei e sem bancos ou serviços de transferência tradicionais. Uma das primeiras coisas que notei entrando na cidade foram as várias cabines azuis de madeira nas calçadas. As cabines improvisadas são usadas por cambistas ilegais para processar dinheiro vindo da Síria, Argélia ou de qualquer outro lugar no mundo.

A operação – que permite que fundos sejam mandados até para a China – funciona numa rede informal global de negociantes de moedas e numa relação de confiança antiga.

Ahmed, cujo nome foi mudado, é um dos muitos "homens do dinheiro" que operam nas ruas de Ben Gardane. "Você pode mandar dinheiro daqui", ele explica, "e isso estará disponível no seu país de escolha em cerca de 30 minutos".

Ele é discreto enquanto me leva a seu local de trabalho improvisado. "A rede de transferência é baseada inteiramente em confiança – não usamos bancos", ele diz. "Mas de Ben Gardane você pode mandar dinheiro para qualquer lugar do mundo em questão de minutos. Muitos clientes vêm da Líbia, mas também há pedidos para enviar dinheiro para o Egito, a Europa e a China."

O comércio de transferência ilícita funciona em conjunto com o lucrativo negócio de contrabando da cidade, permitindo que os contrabandistas paguem por bens adquiridos no exterior.

Apesar do trabalho rentável, Ahmed admite que a vida nessa cidade poeirenta do sul está longe de ser fácil. "Não há outras opções aqui, é por isso que a polícia permite que o comércio ilegal continue. Se eu pudesse ter qualquer outro negócio ou qualquer outro modo de vida, eu faria isso com alegria", ele garante.

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Muitas das transferências são usadas para fins relativamente inócuos, segundo Ahmed, mas "temos de tomar cuidado para que o dinheiro não seja usado para terrorismo. Eu sempre pergunto qual o propósito da transferência. Uso meu próprio julgamento. E, se não acredito no que a pessoa está dizendo, me recuso a fazer o negócio. Não queremos dar dinheiro ao terrorismo ou a grupos terroristas, porque a polícia pode vir e causar problemas para todo mundo".

Ahmed acredita que os jovens de Ben Gardane que escolheram se juntar aos jihadistas na Líbia, Síria ou no Iraque tinham mais coisas em mente além de dinheiro. "Eles vão por causa do modo como a Inglaterra e os EUA tratam os muçulmanos. O problema aqui não é econômico – é uma decisão religiosa", ele argumenta. "Muitos deles voltam depois de alguns meses, porque descobrem a verdade sobre esses grupos: eles são traidores do nome do Islã."

Alguns dos recrutas locais se voltam para o terrorismo depois de serem radicalizados por pregadores extremistas ou colegas linha-dura online. Ali, dono da lan house frequentada por muitos jovens da cidade, viu em primeira mão os métodos usados para se recrutar jihadistas na cidade. "As pessoas não recrutam mais na mesquita, porque têm medo das forças de segurança. Eles recrutam no mercado ou na internet. Esses recrutadores sabem identificar alvos impressionáveis e têm como missão distorcer a mente deles", ele explicou.

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As forças de segurança encaram um jogo diário de gato e rato com grupos terroristas, que usam a área como uma parada antes de se juntar à jihad em vários lugares próximos. No entanto, os que retornam enfrentam uma batalha de identidade própria. De acordo com Ali, "Ir lutar na Síria é como ir morar na Europa para as pessoas daqui. Eles ficam lá por alguns anos e depois voltam".

Claro, o processo não é tão fácil.

"Os que voltam nunca mais são os mesmos", frisa Ali. "Eles vão para lá pensando no paraíso, que tudo vai ser fácil, mas aí veem a realidade.

"Eles voltam sentindo que alguém os usou. Mas isso é normal aqui: as pessoas aceitam isso."

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Tradução: Marina Schnoor