Passamos um dia com os haitianos refugiados em São Paulo

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Passamos um dia com os haitianos refugiados em São Paulo

Acompanhamos a transferência dos haitianos abrigados em uma igreja no bairro do Glicério, em São Paulo, para um alojamento fornecido pela Prefeitura.

Ainda é dia quando colocamos os pés na Paróquia Nossa Senhora da Paz, no bairro do Glicério, centro da cidade de São Paulo. O padre Paolo Parise, há anos ativista na causa da imigração, nos recebe e explica do que se trata a Missão Paz, projeto que abraçou os refugiados haitianos recém-chegados a São Paulo depois de passarem pela Brasileia, no Acre.

Nos últimos tempos, cerca de 700 pessoas foram temporariamente abrigadas na igreja e posteriormente auxiliadas a conseguir emprego, moradia e estabilidade de vida – além das constantes aulas de português. Paolo conta que os homens são maioria, em média, com 20 a 40 anos de idade, casados e com o sonho de trazer suas esposas e filhos para o Brasil. Em geral, as empresas vão até a paróquia querendo contratar os estrangeiros. Mas tudo é vistoriado pelo pessoal do projeto, com o objetivo de evitar condições ruins de trabalho e até mesmo análogas à escravidão. O padre diz que emprego não falta, nem doações de comida, alimentos e roupas. Quando pergunto se precisam de algo, ele diz que "Água de garrafa e passagens de metrô são bem-vindas".

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Paolo me dá dados mais precisos sobre a questão atual da imigração, contando que a partir de agora ônibus diários com cerca de 40 estrangeiros estão previstos para aportar diariamente na capital. "Continuaremos batendo o martelo na questão da imigração. Nossa participação não é só social, é também política." A grande questão em torno da imigração desses estrangeiros para o Brasil é que, resumidamente, eles adentraram o território nacional de maneira ilegal. E agora faltam mecanismos para agilizar a retirada de documentos, principalmente a Carteira de Trabalho – essencial para que eles consigam criar vínculos empregatícios e seguir com suas vidas.

Foi difícil saber como nos aproximar dos haitianos. A língua nativa deles é o crioulo, mas boa parte fala francês. Outro grupo fala espanhol – já que muitos moraram na República Dominicana e no Equador –, e pouquíssimos arranham um inglês.

Mistejeune Olizard é o primeiro haitiano a conversar com a gente, improvisando no portunhol. No Brasil desde setembro, ele continua sem emprego e diz que quer voltar para o Haiti. "A coisa é muito difícil para mim. Tudo isso me dói." Quando pergunto sua idade, Miste (como curte ser chamado) pensa por alguns segundos e chuta "39, por aí". Falador, pergunta se pode hablar com a gente em espanhol. Ainda que com um semblante triste, mostra gratidão ao país que o acolheu. "Os brasileiros têm o coração aberto. O Haiti fica a quatro horas dos Estados Unidos. Eles deveriam ter feito o trabalho que o Brasil está fazendo." Mesmo que voltar para o país de origem esteja nos planos, ele confessa que gostaria de se casar com uma brasileira.

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A maioria dos haitianos com quem conversei ia logo falando sobre a paixão incondicional que alimentam pela seleção brasileira. E quando perguntados sobre o principal motivo para vir pra cá, todos foram unânimes: trabalho. É isso que não tem no Haiti ultimamente. Trampo.

J. Ulrich se aproximou e, em português, pediu um cigarro. Contou que tem 23 anos e, diferentemente dos outros caras com quem conversei depois, não é tão chegado num futebas. Prefere basquete, mas não sabe jogar. Além disso, o negócio dele é ouvir rap. Ele pediu para ver a foto que o Felipe Larozza, da VICE, fez e curtiu, dizendo que parecia um rapper americano. Piramos e caímos na risada.

Depois de algumas horas ali e com certa dificuldade de conseguir entrevistar a galera por causa do idioma, o padre Antenor, que dirige a igreja, vem até a gente e conta que acabara de receber o aval para transferir os 39 refugiados para um novo abrigo, criado pela Prefeitura de São Paulo, praticamente em frente à igreja. O plano era que todos jantassem e fossem levados até o novo local. Nessa hora pensamos: porra, escolhemos o dia certo para colar aqui.

Enquanto a quentinha era servida no refeitório, Fenitho Duverna se aproximou de nós. Ele é o líder dos haitianos. Toda vez que um recado precisa ser passado para a galera, é ele quem levanta a voz e traduz. Chegou ao Brasil no fim de março e tem um português que impressiona. De repente, entramos num papo sobre futebol e ele fala que, no Haiti, quando a seleção brasileira ganha, as pessoas fecham a rua para comemorar. Pergunto quem é seu jogador brasileiro preferido e ele manda um Roberto Carlos. No Haiti, Fenitho estudou administração, mas aqui vai trabalhar como pedreiro. É um trampo que ele gosta de fazer e manda bem. Falamos sobre a Copa, comentei sobre os protestos e perguntei a opinião dele. "Como não conheço bem a economia brasileira, não tenho uma opinião." Mesmo assim, acha que o evento pode atrair aspectos positivos. Sua esposa e as filhas gêmeas de dois anos de idade continuam no Haiti, mas a ideia é trazê-las para cá e, com o tempo, abrir um negócio. O papo foi muito massa. Trocamos até e-mail e Facebook.

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Guernald Time falava inglês e isso facilitou nossa comunicação. Cantamos "Ai Se Eu Te Pego", do Michel Teló, falamos sobre Akon, Usher e trampo. Hoje ele ia começar a trabalhar num supermercado. Contou que, no Haiti, vivia com a grana do pai. Veio para o Brasil buscando independência financeira e, inclusive, quer fazer faculdade: medicina ou agronomia.

Servido o jantar, a galera começa a fazer as malas. O pessoal da paróquia organiza uma fila e faz uma espécie de crachá temporário para que eles possam entrar e sair do abrigo sem problemas, já que um segurança ficará na porta do lugar. E lá vamos nós. Malas nas mãos e todo mundo ansioso para conhecer as novas instalações.

Todos os beliches do alojamento trazem os mesmos itens: cobertor, barbeador, sabonete, escova e pasta de dente. Pergunto ao padre Paolo se não vão rolar uns travesseirinhos, afinal, ninguém ali é mestre chinês. Ele concorda, fica encucadíssimo e de pronto sai perguntando sobre os travesseiros pra geral.

As quatro mulheres presentes dormem num quarto separado. Passo um bom tempo com elas ali dentro, só observando, muda. Nenhum luxo. Pelo contrário. O cheiro de tinta fresca é fortíssimo, o forro do teto é feito com uns tecidos improvisados e rolam uns fios de eletricidade expostos. Quando percebo que uma delas fala inglês, comemoro por dentro – sem parecer a jornas psicótica do rolê, claro –, dou um tempo e me aproximo. Angel tinha acabado de chegar do Congo, parecia muito tímida e falava com uma voz baixinha. Ao me deparar com tanta beleza, lamentei ter nascido branca.

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Cansada com a falta de comunicação, arrisco usar meu francês pobre e me apresento. Elas vibram quando me ouvem falar, mas meu conhecimento francófono e meu léxico pobríssimo me impedem de manter a conversa. Corro até o Guernald e pergunto se ele pode ser meu tradutor. Pronto. Agora consigo trocar ideia com a mulherada. Fico tão feliz que acabo anotando poucas coisas no meu caderno.

Merland Felidor tem 31 anos e deixou o marido e três filhos no Haiti para tentar uma vida melhor aqui no Brasil.

Milouse Noel (a primeira da foto) é solteira, tem 44 anos e quer muito começar a trabalhar. Pergunto o que ela sabe fazer e, modesta, responde "Tudo! Cozinhar, limpar". Mas diz que quer trabalhar, não ser escrava. Que tal namorar um boy brasileiro, Milouse? Ela curte a ideia e todo mundo ri.

O pessoal da paróquia explica sobre horários, condutas e sobre a nova rotina. Com a maioria instalada nas camas, já está quase tudo pronto para que eles possam dormir. Tiro uma foto com Guernald e as meninas. Por algum motivo, estamos todos felizes, ainda que misturando línguas e se entendendo pouco. Agradeço e digo que depois de muitas horas ali, precisamos partir. Já são mais de dez horas da noite e provavelmente o sono dos haitianos será melhor hoje.

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