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Gaspar Noé

Para essa entrevista, Gaspar e eu nos encontramos no Soho, em Londres. Ele me disse que tinha dormido supermal porque havia se metido em uma briga na noite anterior. Ele não entrou em detalhes, e comeu um belo prato de frutas para tentar acordar.

Conheci Gaspar Noé em 2002, pouco antes do lançamento de seu longa de vingança pós-estuproIrreversível. Eu ia entrevistar os atores do filme naquele dia, mas Vincent Cassel ligou para a revista em que eu trabalhava na época e disse que eu faria sua mulher (Monica Belucci) parecer uma puta, e não quis que eu entrevistasse nenhum deles. Então passei a tarde garimpando as galerias de cartazes de cinema de Londres com Gaspar, que queria aumentar sua coleção de cartazes de2001Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick. Levou oito anos para que seu próximo filme saísse, mas Gaspar vinha planejandoEnter the Voidhá muito tempo, antes mesmo deIrreversível. Há algumas semanas fui à exibição da versãofinal do filmee saí de lá com minha estrutura molecular reorganizada. Gaspar passou cinco anos elaborando sua obra-prima, que trata de alucinação e reencarnação em Tóquio, e valeu a pena—assistir ao filme é um pouco como ser o ator da sua própria versão deO Vingador do Futuro, com a diferença de você não ser um espião e sim um viciado que assiste à vida de sua irmã como stripper no bairro da luz vermelha de Tóquio se desenrolar rapidamente diante dos seus olhos. Eu gostei muito do filme, principalmente do visual. Para essa entrevista, Gaspar e eu nos encontramos no Soho, em Londres. Ele me disse que tinha dormido supermal porque havia se metido em uma briga na noite anterior. Ele não entrou em detalhes, e comeu um belo prato de frutas para tentar acordar. Vice: Quando nos falamos outro dia eu disse o quanto havia gostado do filme. Você está feliz com isso?
Gaspar Noé:Com o filme ou com você ter gostado dele? [risos] Sim, estou muito contente com o filme. Você só assistiu uma vez? Sim, mas quero ver outra vez.
Você tem que tentar assistir à versão mais longa. A versão longa tem nove rolos, a menor tem oito. Dá para tirar o sétimo rolo sem atrapalhar o filme.. Por que o corte?
Tive que assinar um contrato que dizia que se o filme tivesse mais de 2 horas e 20 minutos eu teria que fazer uma versão mais curta, e eu simplesmente excluí um dos rolos. O sétimo começa logo após a cena do aborto e termina com ela jogando as cinzas do irmão na pia. Certo. Espero conseguir ver essa versão. Como é a sensação de finalizar o filme depois de tanto tempo querendo realizar esse projeto? Faz o quê, 20 anos desde que você começou a conceber a ideia?
A primeira ideia que tive foi fazer um filme que seria visto a partir da perspectiva do personagem principal enquanto ele sai de seu corpo, um filme de experiência de quase-morte, que acompanharia o personagem depois de sua morte.Enter the Voidé influenciado por alguns filmes muito diferentes entre si:2001,Videodrome,Altered States. E eu tentei muitas vezes sair do meu corpo e experimentar uma projeção astral. Como? Privação de sono?
Privação de sono, hipnose… Nunca sofri um acidente de carro. Algumas pessoas que sofreram acidentes de carro graves contam que se viram de cima. Mas eu acredito que algumas alucinações estão ligadas ao fato de que um dos primeiros sentidos que perdemos nesse caso é o equilíbrio, que está ligado ao aparelho auditivo. Então, se você sofre um acidente e é anestesiado durante uma operação, eles anestesiam seu ouvido, o que afeta o seu equilíbrio. Se o seu cérebro está acordado, você imagina que está flutando acima do seu próprio corpo com as imagens que você guardou em sua mente do lugar em que você está. É assim que explicam, racionalmente, o que é projeção astral. No meu caso, acreditei durante certo tempo, quando eu tinha 18, 20 anos, que a mente ou o espírito podia sair do corpo, e tentava fazer isso acontecer prendendo a respiração ou coisa parecida.. E não funcionou.
Não funcionou. Tomei alguns alucinógenos também, eu tentava de tudo para sair de meu corpo, mas nunca consegui.

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Gaspar Noé durante as filmagens do episódio do Vice Guide to Film em Tóquio.

Você é um grande fã de2001Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick. Você tentou recriar o que você sentiu quando viu o filme pela primeira vez?
Foi provavelmente o maior choque cinematográfico que já sofri na minha vida Quantos anos você tinha?
Seis, sete anos. Vi o filme quando era criança e senti como se tivesse tomado alguma droga, especialmente nas últimas cenas, a sequência do Portão Estelar. O Douglas Trumbull [supervisor de efeitos especiais de2001] presidiu o júri de um festival de cinema na Suíça na semana passada, e eu recebi o prêmio principal de suas mãos. Fiquei muito feliz, porque ele e o Kubrick me deram a primeira droga da minha vida, aos seis anos de idade. E fiquei muito orgulhoso de ter sido ele quem premiou o meu filme. Foi demais. Fiquei sabendo muito em cima da hora do prêmio e não tive tempo de ir à Suíça. Preciso mandar um e-mail para ele. Quanto as suas experiências com droga influenciaram esse filme?
Desde adolescente eu tive curiosidade, fumava baseado de vez em quando, tomava ácido, um cogumelo aqui, um cogumelo ali, mas nunca fui cabeçudo. Mas no momento em que decidi que faria um filme que retrataria alucinações, por volta dos 23, 24 anos, de tempos em tempos tomava drogas para trazer imagens para esse futuro filme que eu planejava fazer. Ou talvez eu tenha apenas usado isso como um pretexto para tomar drogas. A última coisa que descobri foi há dez anos, quando fui à floresta peruana e tomei ayahuasca. Mas na maioria das vezes não era para curtir, era porque eu tinha esse filme sobre estados alterados em mente. Li um livro de Carlos Castañeda, que minha mãe me recomendou, mas depois li a biografia dele e descobri que ele era um mentiroso, que ele tinha enganado todo mundo, mas era um grande escritor. Mas, sim, abre a sua mente, te faz refletir. Eu não curto mais as drogas psicodélicas, mesmo. Não digo que jamais voltarei a tomar, mas por enquanto não quero mais. Uma das coisas mais interessantes do filme é o fato de ele estar doidão quando morre e nem saber direito o que está acontecendo com ele. O que você pesquisou a respeito do assunto, sobre pessoas que morrem sob o efeito de drogas?
Algumas coisas do Aldous Huxley, que injetou LSD em si mesmo para morrer em paz. O livro AsPortas da Percepçãotambém me influenciou, li quando eu tinha 16, 17 anos, quando fumava maconha. Eu sei que muitas pessoas dizem que se você está numa viagem forte de LSD, de cogumelo ou de ayahuasca, você pode passar por momentos em que acredita que vai morrer, daí você se dá conta de que não está morto, você volta à vida e pensa que está renascendo. O Timothy Leary estava lendoO Livro Tibetano dos Mortospara pessoas que estavam sob o efeito de ácido, para abrir suas mentes, um tipo de texto xamânico usado para ajudar as pessoas a viajar em determinadas direções. Ele fezO Livro Tibetano dos Mortosvoltar a ser popular nos Estados Unidos. É meio esquisito que o livro tenha tido que passar por ele para alcançar um grande público no mundo ocidental. Acredito que as imagens que vemos quando estamos à beira da morte são como sonhos, mas a maioria das pessoas que acordam de uma experiência de quase-morte não lembram de nada. Em alguns casos, acredito que sejam sonhos recriados para fazer as pessoas perderem o medo da morte. É muito comum as pessoas inventarem lembranças apenas para se fortalecer ou para se salvar da vergonha. Mas, igualmente, a humilhação máxima é morrer jovem demais sem ter realizado seus sonhos. Então, a certa altura, se você sofre um acidente de carro ou algo parecido, e você sabe que morreu e de repente acorda, isso significa que podia ter sido o fim de tudo. Então, talvez seja uma necessidade humana de acreditar na vida depois da morte, assim como é uma necessidade humana, para algumas pessoas, acreditar em discos voadores. Mas todos esses livros sobre experiências de quase-morte, e todos esses livros sobre projeção astral, sempre retornam ao mesmo imaginário, e eu achei que seria divertido retratar isso, uma espécie de sonho internacional que as pessoas querem ver representado. Mas eu não endosso nenhuma religião ou culto, e eu não queria fazer as pessoas acreditarem em reencarnação. Você quis fazer cenas com drogas que você achava que não haviam sido bem feitas em outros filmes?
Bom, acho que as cenas de abertura de DMT são incríveis, mas não parece DMT. É mais geométrico. Eu tentei. Eu não sei usar computador para fazer isso, então eu dava referências para a equipe. Quem já tomou DMT ou ayahuasca sabe que cheguei perto, mas é maisTronesco. É um lance mais simpático, cheio de linhas claras e em constante movimento. As imagens desse filme são mais clássicas do que o DMT de fato é. Mas estou contente com a cena. Alguns diretores retrataram bem as alucinações. Há um mestre da cena experimental de cinema dos anos 60 chamado Jordan Belson, que o Kubrick queria como colaborador em2001. Acho que ele recusou, mas tem alguns curtas que ele fez, um chamadoSamadhie outroBardo, e tem cenas que realmente parecem com o que vemos quando fechamos os olhos sob o efeito de cogumelo. Quando se toma cogumelo demais, eles realmente induzem a uma espécie de estado alterado. Quando conversamos em janeiro você me disse o quanto havia gostado da experiência de assistir aAvatarem 3D. Isso é algo que você tentou fazer com esse filme, expandir os limites e oferecer às pessoas experiências novas com o cinema?
Nunca sabemos qual será a plateia dos nossos filmes, mas você sabe o que você e seus amigos querem ver. E você sabe, talvez, como convencer as pessoas a gastar o dinheiro delas com você. Mas é impossível prever a reação do grande público, e em certo sentido não ligamos para isso porque é muito abstrato. Você liga para alguns indivíduos que você respeita e cujos gostos você compartilha, mas é muito difícil pensar no grande público. Às vezes é possível pensar em suas reações, como na cena do acidente de carro, quando dá para imaginar que algumas pessoas pularão de suas cadeiras. Mas de resto não dá para saber o que esperar. Na verdade, com esse filme, eu tive uma das reações mais esquisitas, mais passionais da minha vida, boa e ruim ao mesmo tempo. Com certeza é o meu filme menos violento, mas do ponto de vista cinematográfico é o mais inquietante, porque é mais como uma experiência, e as pessoas não sabem onde estão, o que está acontecendo nas telas ou dentro de suas cabeças. Não é um relato moral, não é um filme verbal comoSozinho Contra Todos, não é sobre um momento traumático em que as pessoas podem discutir os méritos de certas imagens, como o estupro emIrreversível. Isso é mais como "Que porra é essa? Ele está brincando com os meus ouvidos, com os meus olhos. Por que é tão longo? Por que é tão colorido? Por que ele finge que existe vida após a morte?". Não que o filme tenha todas essas pretensões. Mas algumas pessoas enlouqueceram com o filme, para bem e para mal.

Você disse queIrreversívelfoi, de certa forma, um ensaio para esse filme.
Sim. Acontece que eu já havia terminado uma versão do roteiro paraEnter the Voide eu estava tentando conseguir financiamento na Alemanha e na França. Era para ter sido uma co-produção, mas infelizmente não deu certo. Isso foi no verão de 2001. Eu estava me preparando para fazer o filme quando conheci Vincent [Cassel] num bar e falamos, de brincadeira: "Por que não fazemos um filme juntos?". Começamos o projeto sem roteiro, mas como tínhamos ele e a Monica Bellucci, conseguimos muito dinheiro para fazer o filme—sem roteiro, sem título, apenas a ideia de fazer um filme sobre uma mulher que se vinga de seu estuprador, contado de trás para frente. Quando começamos a filmar, com apenas uma sinopse de três páginas, eu roubei ideias do meu projeto principal. Existem muitos elementos, como o plano sequência, plano grua na cena em que Vincent é preso, e foi como ensaiar paraEnter the Void. E, também, algumas das coisas que fizemos digitalmente emIrreversívelforam uma forma de eu me preparar para fazer um filme com vários efeitos especiais. Te deu mais confiança para fazer o que você queria?
Sim, me deu mais confiança, mas também me deu mais poder. PorqueIrreversívelera para ser um filme hardcore para insones, e se tornou um sucesso comercial. Então, além do fato de ter me ajudado tecnicamente paraEnter the Void, me permitiu financiarEnter the Voidalguns anos depois. Antes deIrreversíveleu era apenas mais um diretor underground francês, e depois deIrreversívelme tornei um diretor underground comercial. Esse filme foi caro, e semIrreversívelele não teria sido possível. Você fez tudo que queria com esse filme?
As melhores ideias sempre aparecem nos últimos momentos. E o filme foi muito caro, algumas ideias foram recusadas por razões financeiras. Mas na verdade ficou muito melhor do que eu esperava. Eu realmente gosto dele. Mas é estranho, porque o filme foi parcialmente finalizado um ano atrás, e definitivamente finalizado em janeiro, depois o levamos a festivais, daí saiu na França e agora estou aqui [na Inglaterra]. É como dar à luz três vezes ao mesmo bebê, e agora estou exausto. Mas tenho certeza de que em alguns meses, quando eu assistir o filme outra vez, vou ficar feliz com ele. Quais foram as ideias que você não conseguiu fazer?
Eu queria fazer mais efeitos comoTron, no fim, no Hotel Love. Eu queria recriar as linhas dos cantos do apartamento, da rua, como uma maquete de computador, é muito psicodélico, lembraTron. E havia alguns efeitos no estiloTronque eu queria acrescentar ao filme, porque o DMT dá esse tipo de efeito visual, mas todos estavam tão exaustos àquela altura, na terceira versão do filme. Teria levado muito mais tempo, trabalho e dinheiro. Então não há nada que você acrescentaria ao filme agora, mesmo que pudesse?
Não, nada. EmIrreversívelhavia, eu sempre quis fazer outra tomada do amor entre Vincent e Monica, só para filmá-los nus se beijando, mas eles não quiseram fazer a cena, então não fizemos. Mas não, não tenho nenhum arrependimento em particular com o filme.