A Indústria do Ecoturismo Está Salvando os Animais e Ameaçando a População Indígena da Tanzânia
Fotos e vídeo por Noah Friedman-Rudovsky.

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A Indústria do Ecoturismo Está Salvando os Animais e Ameaçando a População Indígena da Tanzânia

Por mais de um século, os massai foram encurralados para áreas cada vez menores de terra para preservar o meio ambiente e os preciosos animais – e abrir espaço para suítes de luxo e exércitos de turistas.

Texto por Jean Friedman-Rudovsky

Fotos e vídeo por Noah Friedman-Rudovsky

Antes de ser baleado, no dia 9 de julho de 2014, Olunjai Timan tinha matado uma vaca e sua mulher, feito um cozido. Como não queria perder a refeição fresquinha, o rijo pastor massai mandou dois de seus filhos cuidarem do gado da família por conta própria. Mas antes que pudesse acabar de comer, os meninos voltaram correndo. Eles tinham entrado por engano na propriedade vizinha, uma área de 4,8 mil hectares operada pela agência de ecoturismo Thomson Safaris, que tem sede em Boston.

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Isso era inadmissível, os meninos sabiam, pois a empresa proíbe pastoreio na propriedade durante a alta temporada turística. Eles contaram que os seguranças da Thomson foram com tudo para cima deles e dispersaram o rebanho. Sem conseguir reunir os animais, os filhos voltaram para buscar ajuda.

Timan, irritado, largou a comida. O pai de sete filhos agarrou uma lança e saiu em busca do rebanho. Demorou uma hora para conseguir encontrar o gado, ainda do lado errado da linha invisível que divide a propriedade da empresa de seu povoado no distrito de Loliondo, no noroeste da Tanzânia. O pastor conta que estava conduzindo os animais de volta para casa quando surgiu um veículo com dois seguranças da Thomson e dois policiais. Ele não ficou surpreso – os guardas da empresa não andam armados e, de acordo com os moradores da região, ligam rápido para a polícia quando encontram intrusos. Timan conta que os homens saíram do carro. Ele então ouviu uma voz dizendo: "Atira! Atira!" Um deles disparou, fazendo uma bala atravessar a coxa direita do pastor.

Timan tentou correr, mas só conseguiu andar. Mais tarde, os moradores das bomas (aldeias) contaram que ouviram os gritos do homem. Por celular, uma das poucas invenções modernas que os massai desta região adotaram, os vizinhos alertaram uns aos outros. Logo, outros policiais apareceram e acompanharam o ferido até uma ambulância.

Enquanto Timan recebia tratamento, uma multidão se aglomerou. Centenas de jovens massai com lóbulos pendentes se reuniram, armados com lanças e gasolina. "Queriam botar fogo no acampamento da Thomson", relembra Joshua Makko, autoridade do povoado de Timan, Mondorosi, referindo-se ao luxuoso complexo de chalés onde os turistas pagam US$ 535 por noite pelo pacote completo do safári. O incidente era apenas o segundo ataque promovido pela polícia a mando da Thomson, mas os habitantes de Mondorosi e povoados vizinhos afirmam que, nos últimos nove anos, seguranças e policiais têm agido em nome da empresa, assediando e agredindo massai que levam o gado para pastar na propriedade – acusações negadas pela Thomson Safaris. Na cultura massai, a terra é senhora e o gado bovino é riqueza, poder e respeito. Por algumas horas, parecia que o incidente deixaria a região em chamas.

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Maanda Ngoitiko conversa com moradora de uma típica casa massai na região de Loliondo.

A terra da discórdia é um planalto verde e pardo em um vale cercado por vilas massai por todos os lados, onde os homens têm mais de uma esposa e as casas são construídas com esterco de vaca. O pasto, os rios sazonais e o lençol freático alto da área disputada foram, por décadas, local de pastagem e rega muito prezado pelos criadores da região. Mas, em 2006, o casal norte-americano Rick Thomson e Judi Wineland, dono da Thomson Safaris, pagou US$ 1,2 milhão pelo arrendamento da propriedade sob nome da empresa Tanzania Conservation Ltd., registrada no país africano – a Tanzânia, estado nominalmente socialista, não permite a estrangeiros a posse de terras, apenas títulos prorrogados. Acontece que as condições que tornavam aquela área excelente para o pastoreio também faziam dela um grande destino turístico. Na entrada do Parque Nacional de Serengueti, a invasão humana afastou o que um dia fora uma rica fauna silvestre, incluindo girafas, gnus e grandes felinos. Thomson e Judi ficaram seduzidos pelo desafio de atrair os animais de volta para a região.

O primeiro passo do casal foi colocar "limites ao pastoreio em prol da saúde do meio ambiente, para controlar o superpastejo", explicou o massai Daniel Yamat, gerente de projetos da agência no território em disputa. A área é a Reserva Oriental de Serengueti, apelidada pela empresa de "Enashiva", palavra massai para "felicidade". A Thomson Safaris deixa claro que a prática é proibida durante grande parte do ano, principalmente nas altas temporadas – por acaso, quando o pastio na região é mais intenso.

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Alguns moradores obedeceram. Muitos não. "É questão de sobrevivência", afirma Makko. Seus ancestrais ocupavam o que hoje é o Serengueti, mas a geração dos seus pais foi forçada a ir para Loliondo após a criação do Parque Nacional, nos anos 50 do século 20, proibindo moradores dentro do perímetro. Segundo Makko, o desenvolvimento do turismo e as secas, intensificadas pelos efeitos das mudanças climáticas, deixaram seu povoado e os vizinhos com poucas opções viáveis para os rebanhos. A propriedade da Thomson era a melhor e única alternativa razoável.

Olunjai Timan mostra o ferimento de bala que teria sido provocado por policiais acompanhados de seguranças da Thomson Safaris.

A transgressão obstinada da população teve consequências: dispersão frequente ou confisco temporário de rebanhos pelos seguranças da Thomson, espancamentos e prisões, longos períodos de detenção na cadeia local e dois ataques com armas de fogo, segundo depoimento dos habitantes. Era rotina a polícia chamar quem denunciasse a Thomson Safaris para interrogatório. Jornalistas e agentes de ajuda humanitária que foram a Loliondo para investigar começaram a ser expulsos pelas autoridades locais. Em 2009 e em 2011, o Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial ordenou que o governo da Tanzânia investigasse as acusações de abuso contra os direitos humanos na propriedade, mas nada aconteceu. Começaram a circular boatos de uma conspiração entre a Thomson Safaris e o governo do país. Em 2008, um repórter da Nova Zelândia foi assassinado em circunstâncias suspeitas, pouco depois de investigar as operações da empresa em Loliondo.

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No mesmo período, a reputação internacional da Thomson Safaris, empresa irmã da Thomson Family Adventures, instituição mais antiga do casal, deslanchou. A agência e as viagens que promove ganharam quase uma dúzia de prêmios e honrarias, incluindo uma menção na lista de Melhores Empresas de Turismo de Aventura do Planeta pela National Geographic, o Prêmio Protetores do Mundo da Condé Nast Traveler e o Prêmio Viagem Ativa da revista Outside, enquanto Judi Wineland, diretora da Thomson Safaris, recebeu da Adventure Travel Trade Association, associação internacional de turismo de aventura, um prêmio pelo conjunto da obra.

No site da empresa, há um vídeo promocional da Enashiva difícil de associar com os relatos de lá. Nele, os massai sorriem, dançam e cantam. Agradecem pelos projetos comunitários promovidos pela Thomsom, incluindo a construção de salas de aula e um dispensário médico. Raras declarações públicas dadas por Judi e outros funcionários de alto escalão da empresa a respeito das alegações de abuso apresentam uma outra versão: o chamado conflito é completamente inventado. Um pequeno grupo de massai é o agressor. A empresa, afirmam, é a vítima.

Homem massai saindo de casa. Os massai têm algumas comodidades modernas, como celular, mas de resto, vivem da mesma forma há séculos.

O conflito, como mostra uma apuração de cinco meses realizada pela VICE, continua a revoltar, e é emblemático de um problema muito maior enfrentado por grupos indígenas de todo o mundo: por mais de um século, os massai foram encurralados para áreas cada vez menores de terra para preservar o meio ambiente e os preciosos animais – e abrir espaço para suítes de luxo e exércitos de turistas. O mundo desenvolvido em grande parte aplaudiu esses esforços. O ecoturismo ofereceu uma nova visão de como os ocidentais podem interagir com a terra e as pessoas.

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Mas os massai de Loliondo não estão sozinhos na disputa por esses supostos benefícios. Em todo o mundo, 20 milhões de quilômetros quadrados – equivalente a quase a extensão total do continente africano – foram classificados como áreas de proteção por governos e grupos de conservação. Assim, as populações locais foram, em sua maioria, expulsas de suas terras. Embora não haja um cálculo formal sobre os desalojados em nome da preservação ambiental, dados sobre o impacto de parques e densidade populacional divulgados pela ONU e a União Internacional para a Conservação da Natureza estimam que o número de pessoas removidas pode chegar a cerca de 20 milhões.

São os refugiados da conservação do nosso planeta – da República Dominicana ao Quênia, da Bolívia ao Brasil. São os batwa de Uganda, expulsos de suas florestas originárias após falsas acusações sobre a morte de gorilas adultos. Hoje, muitos deles vivem em ocupações ilegais, sem acesso a água ou saneamento, às margens de parques que protegem os grandes primatas. São os hmong do norte da Tailândia, mergulhados em uma escassez de comida quando o governo, por pressão do Fundo Global para o Meio Ambiente da ONU, criou um sistema de parques nacionais. Isso prenunciou a chegada de homens armados, deixando-os sem opção, a não ser abandonar sua forma de vida.

As forças organizadas contra os refugiados da conservação são os aparentes mocinhos: ONGs ambientais e econegócios que desejam construir um mundo mais verde e agradável. Mas os perigos desse avanço para os grupos indígenas já começam a rivalizar inclusive com aqueles oferecidos pelo agronegócio, a exploração de petróleo e a mineração. Em um encontro do Fórum Internacional sobre Mapeamento Indígena das Nações Unidas em 2004, todos os 200 delegados assinaram uma declaração de que as "atividades de organizações de conservação hoje representam a maior ameaça à integridade de terras indígenas".

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De cabelos grisalhos e olhos turvos, o ancião de Loliondo Tulito Olemguriem Lemgume relembra o dia em que percebeu o lugar de seu povo entre as prioridades da elite conservacionista. Em 2006, sua boma ficava dentro da propriedade cujo título havia passado, em uma transação recente, para a Thomson Safaris. Segundo Lemgume, as autoridades locais disseram a ele e a um punhado de vizinhos que "agora a terra pertencia a um investidor e não poderíamos mais viver lá. Dissemos que não tínhamos para onde ir. Falamos: 'Aqui é o nosso lugar. Esta é a nossa casa'". E então, relata o ancião, a polícia chegou com gasolina. As bomas foram incendiadas. Em seguida, "[a polícia] atirou em nós", lembra Lemgume. "É como se fôssemos animais e estivessem nos espantando".

Entrevista com Tulito Oleguriem Legume.

Leão passa perto de jipe de turistas em um safári particular perto do Serengueti. Algumas operadoras de turismo, como a &Beyond, conseguiram chegar a uma coexistência pacífica com os vizinhos massai ao permitir que a terra continuasse nas mãos da comunidade. Já outras, como a Thomson Safaris, são acusadas de enxotar os moradores de suas terras.

As raízes do conflito atual vêm desde a época em que eram os próprios massai que faziam o papel de expulsar. A tribo emigrou do Vale do Nilo no século 15 e, no caminho, reprimiu ou debandou os grupos indígenas locais. Ao fim do século 18, já dominavam grandes faixas do atual Quênia e da Tanzânia. Raramente caçavam e, embora pratiquem a agropecuária há séculos, o impacto do grupo no meio ambiente sempre foi mínimo. O pastoreio dos rebanhos seguia um ritmo, sem nunca diminuir a pastagem a quase o ponto da destruição, deixando o suficiente para os animais selvagens nativos com quem dividem as planícies. O desinteresse dessa população na maioria dos bens materiais e as estruturas permanentes mantiveram intactos os espaços naturais que habitam. A presença massai no coração do leste africano foi, por séculos, parte de uma relação estável com o meio ambiente ao redor.

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Menino massai separa cabras mais novas das mães em um curral tradicional.

Mas eles ocupavam muito espaço. Para um pastor, não há necessidade mais fundamental do que terra suficiente para alimentar os animais – bovinos e, mais recentemente, ovelhas e cabras –, que funcionam tanto como base econômica quanto como sistema social (explicando de um jeito simples, os massai com mais vacas têm mais poder). Mas no início do século 20, os líderes coloniais britânicos no Quênia e na Tanzânia queriam tornar seus domínios mais produtivos, então começaram a distribuir terras para colonos e fazendeiros. Em meados do século, pressionados por conservacionistas internacionais, os britânicos viram o potencial econômico de transformar a paisagem deslumbrante da Tanzânia em um conjunto de áreas oficiais de proteção, a maioria no caminho dos massai. Mais tarde, após a independência em 1964, líderes tanzanianos definiram um terço das terras do país para fins de conservação (meta alcançada recentemente) e embarcaram em décadas de desregulamentação para facilitar investimentos privados na indústria do turismo.

Aos massai foi dada uma escolha: mudar para reservas mantidas pelo governo em uma região distante chamada Cratera de Ngorongoro ou se estabelecer em qualquer outro lugar, desde que fora dos parques. O que antes era uma região de pouca densidade populacional em Loliondo, na fronteira com o Quênia, tornou-se a opção mais fácil. Sem demora, Loliondo se transformou em um mar de shukas, as tradicionais roupas vermelhas massai, e hoje abriga mais de 60 mil habitantes dessa etnia, 90% dos quais vivem do pastoreio.

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A ocupação forçada para territórios cada vez menores, a nova proximidade com o mundo moderno de hospitais e escolas e a entrada na economia monetária transformaram as condições de vida do grupo. Em apenas algumas décadas, a expectativa de vida média aumentou muitos anos, enquanto a mortalidade materna e infantil despencou. A população massai passou de 40 mil no Quênia e na Tanzânia na virada do século 20 para cerca de 700 mil só em território tanzaniano hoje.

Todas essas pessoas precisavam de amplas terras para o gado sobreviver – exatamente o que nem os massai nem o país tinham mais. E então encontrou-se uma solução: a população teria de mudar. As antigas práticas do grupo, antes exaltadas pela simbiose com o meio ambiente, passaram a ser consideradas "superpastejo". Segundo o discurso oficial, ao manterem grande quantidade de gado, colocavam a si próprios, os animais selvagens e o país em perigo. As escolas de regiões massai começaram a desenvolver currículos sustentáveis. Campanhas de educação pública passaram a enfatizar a necessidade de rebanhos menores. ONGs introduziram raças novas que rendiam mais cortes de carne por cabeça.

O turismo também foi propagandeado como a melhor opção para os massai obterem benefícios econômicos da terra sem "prejudicá-la" ainda mais. Poderiam vender artesanato e cobrar por passeios para mostrar suas casas ou apresentar danças tradicionais. Em Loliondo, as empresas de turismo chegaram no início dos anos 90 do século 20, com o objetivo de atrair zebras, rinocerontes e leões de volta para as áreas onde antes moravam os pastores. A região interessava os empreendimentos porque, ao se estabelecerem ao lado do Serengueti, teriam acesso à fauna silvestre – que não respeita as fronteiras do parque –, mas com taxas e transtornos burocráticos menores do que se operassem dentro do parque. À Ortello Business Corporation (OBC), agência suntuosa com sede em Dubai que leva a realeza árabe para caçar e matar felinos raros por diversão, foram concedidos imensos "blocos de caça", dando à empresa o direito de conduzir expedições em praticamente todo o território de Loliondo.

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Um tempo depois, Judi e Thomson viram no jornal um anúncio de venda de um título de terra. O casal ficou interessado, não só pela possibilidade de restabelecer populações da fauna silvestre, mas também pela proximidade da propriedade com os próprios massai. Pioneiros no ramo de viagem de aventura pelo planeta, há décadas eles vinham se especializando em "turismo de base comunitária" em mais de doze países. Em vez de atrair empresas com animais exóticos, Judi explica, a agência sempre colocou "fotos de pessoas na capa dos [nossos] panfletos". Eles já tinham feito trabalhos filantrópicos em outras regiões massai da Tanzânia e ficaram animados de levar seu modelo de negócio para Loliondo.

Para o casal Judi e Thomson, fazer com que o empreendimento beneficiasse os massai da região era um objetivo primordial. "Acreditamos em uma relação simbiótica", afirmara Judi. "O turismo deve trazer benefícios para nós, nossos hóspedes, os animais selvagens e as comunidades." A expectativa era que esta terra se tornasse a nova pérola do emergente império do ecoturismo da empresa, "uma coisa maravilhosa para nós e para a nossa missão".

A Thomson Safaris e outras empresas de turismo fazem trabalhos filantrópicos na região, doando escolas, hospitais e poços para os massai.

Em dezembro, fui a Loliondo para tentar entender o que exatamente tinha dado errado. Como as pessoas por trás de uma empresa que parecia bem intencionada se viram envolvidas em um conflito com alegações de assédio a povos indígenas, ataques com armas de fogo e boatos de assassinato e conspiração com o governo? Minha esperança era de que a investigação revelasse uma verdade maior sobre os crescentes embates entre grupos indígenas e os movimentos de conservação e turismo de experiência em todo o mundo.

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Antes de viajar, recebi muitos alertas de colegas jornalistas, ativistas internacionais e pesquisadores – todos haviam sido expulsos da região por meter o nariz na questão territorial. Não era só o caso da Thomson. A OBC, maior operadora de turismo da região, estava sob ataque há anos por apropriação ilegal de terras e corrupção política. A resistência massai e a atenção internacional ajudaram a impedir a aprovação de uma lei que transformava mais de 100 mil quilômetros quadrados de terras massai em um "corredor de migração da fauna silvestre" protegido, tendo a empresa como nova arrendatária. Mas pouco antes da minha chegada, o parlamento da Tanzânia tentava pressionar a aprovação da lei novamente, e o clima na região estava esquentando. Fui alertada para evitar o mais alto escalão do governo local, o comissário distrital, que supostamente faria de tudo para tornar sua região conveniente para os investidores.

Mesmo assim, na minha primeira manhã em Loliondo, a dez horas da cidade grande mais próxima, eu não esperava conduzir a primeira entrevista em uma vala. O entrevistado, um clérigo aflito e de idade chamado Olushipa Rogey, do povoado de Sukenya, guiou nosso carro para longe da estrada e depois me acompanhou a pé até um lugar onde o solo arenoso havia cedido – e até mesmo um pastor passando por ali teria de cair para conseguir nos ver.

Rogey usava uma roupa listrada e descolorida de aparência mais velha que ele próprio. Seu relógio, que não funcionava, pendia do pulso do homem, preso por um barbante. Ele passeou o dedo por uma cicatriz profunda que ia do nariz até o lábio. "Isso foi pelo que eu estava falando sobre a Thomson", contou. Sukenya, ampla faixa de terra árida e matagais de cactos, roça a propriedade da Thomson Safaris. Rogey foi um dos primeiros do povoado a questionar a política de restrição de pastoreio da empresa. Ele conta que começou a organizar reuniões secretas para elaborar estratégias de resposta e foi ameaçado publicamente pelo gerente da empresa – uma situação delicada na cultura massai, onde o respeito e a gentileza são da maior importância. Logo em seguida, relatou, foi atacado em uma estrada quando voltava a pé da igreja. Foi o tipo de ataque pessoal e violento raro em áreas rurais, então ele e outros tinham certeza de que era um aviso da empresa. A Thomson Safaris nunca foi formalmente ligada ao crime.

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Embora Rogey parecesse sincero, eu tinha minhas dúvidas – a polícia havia considerado o caso como roubo (a carteira dele foi levada). O departamento tem um relacionamento amigável com a empresa. Segundo a Thomson Safaris, às vezes os policiais são deslocados para o acampamento para proteger os turistas de animais selvagens e chamados para dar apoio quando há qualquer problema com a segurança, mas eu não tinha provas de algum conluio óbvio. Será que era esse o suposto abuso? Eu não entendi porque ele estava nervoso nem a razão para o esconderijo, e foi assim por dias. Rogey só disse que, como a Thomson havia aumentado os gastos com filantropia, conquistando muitos de seus vizinhos, ele agora estava sendo tratado como o renegado local e não queria ser visto comigo. Antes de nos despedirmos, o clérigo me disse várias vezes para tomar cuidado, pois o governo e a agência tinham informantes em todo lugar.

Depois de conversar com Rogey, passei a tarde no complexo de Shagwa Ndekerei, homem carismático com, segundo ele próprio, 100 vacas, duas esposas e 11 filhos, contando o último número nas mãos.

Sua boma, em Sukenya, fica em uma subida. O quintal tem uma vista de tirar o fôlego para as ondulações do pasto e para a floresta, onde ele não encontra nenhum prazer. "Ali é a propriedade da Thomson", disse, sentando ao meu lado. (Não dava para ver a área do acampamento, mas ele ainda estava lá, pois os anciões do povoado conseguiram acalmar a multidão em julho depois que Timan foi baleado.) Ndekerei então explicou a história. Até 1984, quando a cervejaria estatal, a Tanzania Breweries Ltd., ou TBL, recebeu os direitos sobre a área, a propriedade da terra era coletiva, do povoado. Para a transferência do título ser feita, era necessário ter a permissão dos povoados adjacentes. Mas os moradores afirmam que o governo e a empresa mentem quando dizem que receberam essa autorização. A população ficou revoltada e chegou a questionar a transação judicialmente, mas o caso foi rejeitado com base em um detalhe técnico.

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Filho observa Shagwa Ndekerei na boma.

Segundo todos os relatos, a compra foi uma péssima ideia. A terra não era particularmente fértil e os animais, silvestres e domésticos, comiam o lúpulo e a cevada que conseguiam crescer. A empresa cultivou cerca de 280 hectares por alguns anos e depois abandonou a área de vez. Um dado importante: a cervejaria nunca proibiu o pastoreio. A maioria dos habitantes até se esqueceu que o título havia sido perdido.

Isso mudou em 2006, quando a TBL, desde então privatizada, anunciou a venda do arrendamento. Ndekerei conta que os moradores do povoado ouviram boatos de que a área seria comprada por uma empresa de turismo e acreditaram que, pelo costume e pela lei, seriam consultados a respeito da ideia. Mas nenhum dos proprietários da Thomson Safaris foi à região conversar antes da venda. O negócio foi fechado, os donos da agência adquiriram o título da terra e assim começou o problema.

Os filhos de Ndekerei foram presos alguns anos atrás, quando pastoreavam em terras da Thomson Safaris. O boletim da polícia e depoimentos de moradores do povoado revelam mais de 60 supostos incidentes do tipo, e há boatos de que, em várias ocasiões, as pessoas ficaram vários dias detidas sem comida. Apurei, depois da viagem, que a empresa tem uma "Política de Pastoreio" de dez páginas explicando quando e onde a prática é ou não é permitida, dependendo de uma série desnorteante de fatores. Mas é um documento interno, não distribuído para os moradores locais. Muitas vezes, contou Ndekerei, seus animais foram dispersados ou "presos", o que, segundo ele, significa que os seguranças conduziram e mantiveram o rebanho no próprio curral da empresa por um tempo. Nos dias que se seguiram, ouvi dezenas de histórias parecidas. Mais tarde, conversei com advogados dos massai, que tem uma lista com mais de 80 incidentes de prisões ou agressão física cometida pelos seguranças ou pela polícia. Muitos acompanham algum documento que corrobora a história, como um registro hospitalar. Os advogados explicam que as vítimas não sabem solicitar a papelada, e mesmo quando recebem os documentos, guardar registros oficiais para a posteridade não faz parte do costume massai, então os números reais devem ser muito maiores.

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Ndekerei se esforçou para me explicar que não se opunha à mudança. A chave para a sobrevivência dos massai, afirmou, é aproveitar o que querem da nova proximidade com o mundo moderno e abandonar o que não é necessário. Todos os filhos dele, por exemplo, tiveram um dente incisivo extraído aos quatro anos para poderem se alimentar por canudo caso desmaiassem de fome. Mas os filhos homens também vão à escola e Ndekerei os leva ao hospital quando ficam doentes.

"O problema não é o turismo", explicou. "Pode estar tudo bem com isso. Claro, deixa as mulheres venderem joias para os estrangeiros. Construa uma escola. O problema é quando os outros tomam decisões sem nos incluir. Se alguém chega na sua terra sem conversa e não adquire a terra do jeito certo, esse homem não vai se adaptar na sua sociedade. Não é certo eles decidirem o que é certo para todo mundo."

Mais tarde, conheci um adolescente chamado Tajewu Nayoi enquanto a família dele tirava as ovelhas e cabras do curral. Vestido com um velo amarelo no frio da altitude, ele me falou sobre o que aconteceu em uma manha de maio de 2011. O jovem e seu primo Tobiko, com 11 e 13 anos na época, sabiam que não deveriam pisar na propriedade da Thomson Safaris. Mas, contou Tajewu, "as vacas nos levaram para lá. Elas estão acostumadas e gostam de pastar lá". Era mais fácil deixar o rebanho guiar do que brigar com ele, então eles entraram no território proibido.

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Olushipa Rogey conta que as cicatrizes no rosto e no pescoço são de um ataque violento há alguns anos, que ele atribui ao seu ativismo contra a Thomson Safaris.

Depois de um tempo no pasto, o jovem conta que um veículo da segurança da Thomson Safaris se aproximou. Eles tentaram correr, mas o carro os alcançou. Um homem foi na direção de Nayoi e começou a bater nele com um objeto contundente. Os outros homens espantaram o gado. Ele disse que lembra de ouvir o guarda dizendo algo do tipo: "Vocês não podem trazer suas vacas para pastar aqui! Isso aqui é terra de investidor e nós fazemos a proteção dela!"

Depois de alguns golpes, os meninos contaram que conseguiram correr e se esconder na floresta. O braço de Nayoi ficou inchado e latejava. A cabeça de Tobiko estava sangrando. Eles ficaram na mata até terem certeza de que os seguranças tinham ido embora e então correram para casa.

Cada frase de Nayoi não tinha mais que algumas palavras. Ele ficou completamente travado na frente da câmera, então preferimos desligá-la. Mesmo assim, ele ficou inquieto e olhava muito para baixo, de vez em quanto tocando no braço que, segundo o jovem, ainda doía quando levantava alguma coisa pesada. O irmão mais velho, Robert, me explicou que, desde o acidente, o menino passou a falar menos e estava sempre nervoso. Ele também ficou assustado com a nossa chegada. De longe, éramos rostos brancos em um SUV branco. Ele achou que éramos "gente da Thomson" vindo pegá-lo.

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"Somos vítimas da nossa própria conservação", afirmou Maanda Ngoitiko em um outro dia. Maanda é fundadora do Conselho das Mulheres Pastoras (PWC na sigla em inglês), organização de mulheres massai que oferece bolsas de estudo para meninas e organiza grupos de direitos femininos em todo o país. Mas a chegada das operadoras de turismo em Loliondo a obrigou a entrar no conflito de terras. O PWC foi a principal força por trás da vitória do ano passado contra a expansão da OBC, e Maanda tem um papel fundamental na organização contra a Thomson Safaris. Por isso, representantes da empresa culpam a ativista pelo conflito na região, alegando que ela brada "grilagem de terra!" somente para promover o PWC e garantir financiamento de doadores brancos progressistas.

"Já fui acusada muitas vezes pela Thomson Safaris e pelo governo de alimentar o conflito", contou. "Sinceramente, esta é a minha casa. É onde meu pai está enterrado. Esta é a minha vida. Também tenho a obrigação de lutar por esta terra e ver justiça ser feita. Mesmo que a Thomson Safaris dê bilhões e bilhões [de dólares] para a região, queremos a terra de volta. Já dissemos isso muitas vezes, mas eles não querem entender."

Entrevista com Maanda Ngoitiko.

Como os pastores massai continuavam a reclamar de assédio, Maanda se reuniu com companheiros do povoado para elaborar uma estratégia de resposta: uma nova ação judicial para contestar a compra do título pela Thomson Safaris. Em 2010, três povoados adjacentes à propriedade Enashiva entraram com processo argumentando que o antigo titular da terra, a cervejaria estatal TBL, abandonara a região há tanto tempo que, legalmente, a área já havia se tornado propriedade do povoado muito antes da venda para a agência de safáris. Como os habitantes massai dali não haviam sido consultados, a transação de 2006 seria invalidada segundo a lei tanzaniana. O julgamento começou na Suprema Corte do país no fim do ano passado e foi retomado em 11 de maio.

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Maanda Ngoitiko, coordenadora da ONG Conselho das Mulheres Pastoras, que luta pelo empoderamento feminino nas comunidades massai.

Passei dias rodeando a Enashiva de longe. Das casas de quase todas as pessoas que conheci, era possível ver o pasto aberto e a floresta. (Minha visita aconteceu fora de temporada, então não havia hóspedes na propriedade.) De certos ângulos, a luz do sol refletia no teto dos chalés do acampamento.

Eu não fazia ideia se conseguiria entrar na propriedade da Thomson Safaris, considerando a hostilidade que supostamente a empresa teria com jornalistas. Mas o gerente geral da agência em Arusha organizou uma visita quando solicitei, mesmo com pouca antecedência. E lá estava eu, vários dias depois de me hospedar em Loliondo, no saguão da Enashiva Nature Refuge, mergulhada em uma poltrona de couro artificial, encarando uma foto imensa em branco e preto do close-up de um casal de leões se aninhando com o olhar delicado no horizonte. Um colchonete de yoga aparecia por baixo de um sofá.

Leão vaga em safári particular perto de Serengueti. A atração dos safáris fora dos parques nacionais é permitir que os turistas cheguem perto dos animais, saindo da estrada de carro e fazendo caminhadas noturnas.

Na minha frente, Daniel Yamat, no cargo de gerente de projetos da Enashiva há bastante tempo, se recostava no sofá xadrez vermelho e preto. "Nós [humanos] somos egoístas", começou. "Achamos que o espaço é para nós. Mas e os animais?" Quando a Thomson Safaris arrendeu a propriedade, "mal se via gazelas ou zebras", afirmou. Depois de três anos, uma família de 36 girafas passou a frequentar a região e hoje – depois de quase uma década –, os visitantes sempre veem gnus, girafas, zebras e cães-selvagens-africanos, e de vez em quando um leopardo e um guepardo. Yamat disse que os hóspedes podem curtir os animais sem a multidão encontrada dentro do Parque Nacional do Serengueti, e até fazer passeios a pé em vez de observar de dentro do veículo. A Enashiva, afirmou, é "a busca da arte da coexistência, onde conservamos os animais e a existência humana não coloca isso em perigo".

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Os hóspedes também vão à Enashiva para desfrutar da "autêntica experiência massai", explicou o gerente da Thomson. Em outras partes do país, os turistas visitam bomas, mas "muito disso é encenação. Aqui, você vai e descobre o que está acontecendo", afirmou.

Yamat fez propaganda do trabalho filantrópico da empresa na região e me disse que a Thomson Safaris se esforça para ser um bom vizinho e um bom empreendimento local. A equipe é quase toda massai e a agência usa seus veículos como ambulância quando os moradores dos povoados precisam ir ao hospital. Ele citou várias vezes que, se a Thomson Safaris não tivesse oferecido pasto irrestrito em sua propriedade durante uma seca em 2009, a perda do gado na região teria sido ainda maior do que foi.

O gerente também afirmou que parte da visão da empresa é "prepará-los para poderem ser melhores", sempre se referindo ao próprio grupo étnico na terceira pessoa. Yamat explicou que, para uma família atender às próprias necessidades, precisa de apenas 7,5 vacas por pessoa, uma queda em relação às 15 de alguns anos atrás. "O plano para o futuro é frequentar a escola e ter tratamento médico", afirmou, e melhorar a vida de outras formas, como utilizar o desenvolvimento e a infraestrutura que as empresas de turismo trazem. Não foi uma proposta fácil de vender. "Cachorro velho não aprende truque novo."

Daniel Yamat, à direita, é gerente de projetos da Thomson Safaris há anos na disputada hospedaria da Enashiva. Yamat é massai e diz que seu povo deve se modernizar e abandonar grande parte dos costumes de pastoreio.

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Em relação ao pastio, Yamat afirmou que todo dia há rebanhos na propriedade e, na maioria das vezes, eles não são incomodados, principalmente porque os oito vigias da empresa não têm condições de supervisionar os mais de 4,85 mil hectares da Thomson. Quando encontram pastores, "pedem educadamente" para tirarem o gado da propriedade e a maioria, segundo o gerente, obedece sem resistência. Quanto à "prisão de rebanhos" sobre a qual eu vinha ouvindo falar, segundo Yamat, na verdade, os vigias às vezes encontram animais sem supervisão e guardam as vacas por "segurança" até que os donos venham buscá-las.

Já sobre a detenção dos pastores e acusações de violência policial, o gerente culpa os pastores massai que respondem de forma agressiva à diplomacia dos vigias. Yamat me mostrou uma foto de um segurança da Thomson Safaris sangrando e enfaixado, resultado de um incidente em junho de 2004 com um pastor na propriedade. "Quem foi preso pela polícia não foi por usar o pasto", afirmou. "Foi porque vinham nos atacar."

Mais tarde, a alegação de que os moradores às vezes são os agressores foi corroborada por outras pessoas. "Eles vieram para nos machucar", contou um jovem que conheci em Arusha, a quem vou chamar de Leroy. Ele trabalhou por quase uma década para a Thomson Safaris na Enashiva e em outras propriedades da empresa na Tanzânia. (Ele havia se demitido meses antes do nosso encontro.) Os únicos incidentes ruins que testemunhou entre pastores e a agência foram em situações em que os moradores apareceram procurando briga. Como em fevereiro de 2014, quando um grupo foi até o acampamento "armado com arcos e flechas e nos ameaçaram" (não havia hóspedes no momento). Os seguranças chamaram a polícia e o grupo se dispersou depois que os policiais atiraram para o alto, segundo Leroy.

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Yamat apresentou dois motivos pelos quais acredita que a empresa está sendo vítima de pequenos grupos locais. O primeiro seriam antigas tensões entre clãs, difíceis para alguém de fora perceber. Como a Thomson Safaris atrapalhou a antiga ordem das coisas ao criar empregos e fazer filantropia para todos os clãs locais, os grupos que antes tinha mais poder inventaram histórias sobre a empresa para revidar.

O segundo motivo seria Maanda Ngoitiko, a militante dos direitos das mulheres que se tornou objeto de obsessão da Thomson Safaris e seus apoiadores. "Olha só isso", disse Yamat, me entregando dois papéis. Eram páginas impressas do site do PWC com as fontes de financiamento da ONG em 2011 e 2012. Ele explicou que, se eu apurasse mais, veria que Maanda estava inventando um conflito com a Thomson Safaris para enriquecimento próprio e para ganhar proeminência internacional. Além disso, afirmou Yamat, ela estava aceitando dinheiro de uma operadora de turismo concorrente para expulsar a Thomson Safaris da propriedade. E insistiu em dizer que o que a agência tinha preparado para mim para o resto do dia ajudaria a esclarecer melhor a questão da ativista e de todo esse conflito fictício.

"Tudo que fazemos é com as melhores intenções", afirmou Yamat. "Acabamos tendo consequências indesejáveis."

Guerreiro massai leva o gado de volta para o curral ao pôr do sol.

Saí de Enashiva, seguindo Yamat no meu carro, com uma sensação boa. Eu ainda não tinha sido presa como outros repórteres e estava indo apurar o lado da Thomson Safaris sobre a história. E aí, na metade do caminho para Sukenya, o veículo de Yamat parou em um descampado enquanto grupos de massai começaram a aparecer no horizonte, chegando cada vez mais perto. A empresa organizou, sem meu conhecimento, uma imensa reunião com a comunidade para eu ouvir a questão da boca dos moradores. Yamat não disse "para você ver que isso é imparcial" e, em vez disso, nos passou para um chefe do povoado, William Alias, que garantiria que teríamos "tudo que precisamos".

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Sob a sombra esparsa de árvores sem folhas, fiquei entre um grupo imenso de homens de um lado e um contingente também grande de mulheres do outro. Fiz a minha apresentação, apresentei o meu fotógrafo e o tradutor e abri a roda para as pessoas falarem sua opinião sobre a Thomson Safaris, sobre turismo, desenvolvimento e a vida massai no século 21. Pedi para alternarem entre homens e mulheres nas falas.

O primeiro a levantar foi um homem chamado Gabriel Olikilie. "As ONGs são um câncer na nossa sociedade!", afirmou, referindo-se ao PWC e outras organizações locais que aderiram à campanha contra a Thomson Safaris. Ele então se lançou em um longo ataque e falou por dez minutos em um inglês impecável. "Escrevendo um monte de blá-blá-blá no Facebook, aterrorizando os investidores para pararem de mandar assistência para ajudar os pobres. Precisamos deles! América, precisamos de investidores! Europa, precisamos de investidores!", criticou. "Precisamos usar a nossa própria terra para termos benefícios. Não podemos ficar assim para sempre, na ignorância e na pobreza. As ONGs estão bloqueando o nosso desenvolvimento." Depois do discurso, Olikilie tentou sentar. Lembrei que ele teria que repetir tudo em massai para todos entenderem. Contrariado, atendeu ao pedido.

Gabriel Olikile discursa em uma reunião comunitária tensa organizada por funcionários da Thomson, conclamando os massai a se modernizarem e rejeitarem as ONGs locais.

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Um homem levantou para contestar e disse que a reunião era uma fraude. Apenas certas pessoas, alegou, somente aquelas que falariam bem da empresa foram informadas sobre o encontro. Mesmo assim, ouvi atentamente a quase três horas de depoimentos pessoais curtos sobre o bem que a Thomson Safaris já fez para a comunidade. "Eles usam os veículos deles para nos levar para o hospital", disse um homem depois que o crítico insatisfeito sentou. "Construíram escolas para nós e estão tentando melhorar a nossa vida", acrescentou uma participante. Várias mulheres disseram ser gratas pelo incremento de renda que conseguiram vendendo artesanato de miçanga para os turistas.

Depois do encontro, meu tradutor e eu abordamos várias pessoas pedindo para marcar entrevistas individuais para o dia seguinte. Depois, exausta – e grávida de quase cinco meses na época –, eu precisava descansar. Falei para o Alias, líder que organizou o evento, que teríamos de adiar nossas visitas agendadas aos projetos financiados pela Thomson para o próximo dia. Pareceu que ele achava que eu tinha obrigação de entrevistá-lo. Respondi que entrevistaria, mas no fim do dia, depois de falar com os outros. Ele insistiu para visitarmos uma escola que ficava no nosso caminho, então concordei. Seguimos o carro dele, mas quando descobrimos que Alias estava nos levando para o lado oposto de onde eu estava hospedada, avisei que voltaríamos. Ele não ficou feliz.

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No dia seguinte, pela manhã, fiz uma entrevista adiantada onde estávamos hospedados. Quando terminei, Noah, o fotógrafo que viajou comigo (e também meu irmão), entrou. "Temos um problema", disse.

Ele me levou até um homem magro de terno fino, lábios delgados e maxilar rijo, que nos cumprimentou com o olhar fixo, pediu para sentarmos na área de jantar da hospedagem e se apresentou como comissário distrital de Loliondo, Elias Wawa Lali. Ele exigiu nossos passaportes e vistos. Alguns minutos depois, sentei com o chefe da segurança de Loliondo. "O que acontece no seu país quando alguém infringe a lei?", perguntou enquanto folheava meu passaporte. "A pessoa simplesmente fica livre?"

Reunião tensa com a comunidade organizada pela Thomson Safaris, onde os moradores do povoado debateram o papel das operadoras de turismo e das ONGs.

Começou um interrogatório de três horas. Os oficiais locais que nos questionaram começaram com alegações de que teríamos tirado fotos de crianças sem a permissão dos pais. Era uma acusação estranha, considerando o número provável de estrangeiros que tiram fotos de crianças massai todos os dias na Tanzânia. Depois disseram que nossos vistos não estavam em ordem, mas tiveram que recuar quando o próprio agente de imigração deles chegou e disse que estava tudo certo. Eles também estavam irritados porque não seguimos o que disseram ser um protocolo: ao chegar, deveríamos ter ido falar com o comissário distrital para explicar nossa reportagem e pedir autorização (é verdade, não fizemos isso, pois queríamos apurar a matéria em vez de sermos expulsos imediatamente, como já tinha sido o destino de jornalistas que seguiram o "protocolo" antes de nós).

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No entanto, logo mudaram o foco do que tínhamos feito de errado e começaram a tentar descobrir motivos escusos. Queriam saber quem "tinha nos mandado para Loliondo" e não ficaram satisfeitos com a explicação de que fomos para lá por vontade própria e não por ordem de alguém com alguma coisa a ganhar na disputa. Perguntaram quem providenciou a nossa entrada nas comunidades, quem tinha nos acompanhado nos dias anteriores e os nomes das pessoas com quem conversamos. Pegaram as câmeras do Noah e revistaram as fotos para ver se poderia haver justificativa para prisão. Quando ficou claro de que não revelaríamos nossas fontes, passaram uma hora focados no nosso tradutor, ameaçando deixá-lo "apodrecendo na cadeia" se ele não contasse tudo. (Apesar de nervoso, ele segurou a onda.)

Comecei a ligar freneticamente para advogados enquanto o bebê fazia uma rebelião na minha barriga. Noah e eu nos comunicamos por mensagem de texto até nos mandarem não usar o celular. Quando tentei insistir para darem uma chance para o nosso tradutor nos explicar o que estavam falando para ele, o comissário distrital o mandou não traduzir uma palavra e depois rosnou para mim: "Cala essa boca!"

Embora muito abalada, não fiquei surpresa. Estava claro quem tinha levado o comissário até nós. Noah viu quando ele entrou com o Alias, o homem da Thomson Safaris que eu tinha irritado no dia anterior. O fotógrafo o confrontou, perguntando se ele tinha nos entregado para as autoridades locais. "Sim", respondeu Alias, "fui eu".

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E aí tentamos a cartada final. Depois de horas de vai e vem e ameaças não tão veladas de prisão, quando parecia que nossa expulsão – ou pior – era iminente, explicamos que nosso plano era usar nosso último dia para visitar os projetos da Thomson Safaris, conversar com os apoiadores e entrevistar o Alias, como prometido – e era tudo verdade. De repente, nos deram um tempo adicional de 24 horas com a condição de não sairmos do programa definido e irmos embora às 7h30 da manhã no dia seguinte. Alias e seus homens insistiram em ir no nosso veículo. Mais tarde, um deles esclareceu que a ordem do comissário era para não nos deixar sozinhos.

O passeio que fizemos em seguida para mostrar as benfeitorias corporativas durou várias horas. Vimos um poço custeado pela OBC, moradia para professores construída pela Thomson Safaris e uma escola que a empresa ajudou a financiar. "Está vendo", disse um dos homens, "são os investidores que se preocupam com o povo massai". Mas uma estranha tendência surgiu no nosso último dia: nem mesmo as pessoas a quem Alias me levava negavam as acusações contra a Thomson Safaris quando eu conversava individualmente com cada uma.

Na minha última entrevista, um homem de Sukenya chamado Olegelumo Olaise começou a me contar que a "Thomson é do bem, porque tenta nos ajudar". Mas durante a conversa, contou que o "coração dele doeu" quando a empresa tomou a terra, porque a família de Olaise dependia daquela área para o pasto. Ele disse que ainda vai até lá, apesar da proibição, e já teve o gado "preso" pelos seguranças da empresa várias vezes. Contou que corre quando um veículo da Thomson Safaris se aproxima, com medo de que, se pego, "posso ser baleado, punido ou preso".

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Guerreiro massai atravessa a planície no distrito de Loliondo, na Tanzânia.

Depois de ir embora da Tanzânia, eu sabia que tinha de conversar diretamente com Judi Wineland e Rick Thomson. Mas é mais fácil falar do que fazer. Normalmente eles negam pedidos de entrevista e já processaram um blogueiro anônimo de um site que publicava matérias sobre as alegações que eu estava apurando. (Foi feito um acordo há pouco tempo no caso dessa ação e o site foi tirado do ar.) Trocamos vários e-mails antes de aceitarem conceder uma entrevista. Assim como o comissário distrital, eles perguntaram se eu tinha sido contratada pelo grupo de Maanda ou alguma outra ONG com um interesse pessoal nessa briga. "Estou muito preocupada de conversar com você", escreveu Judi em uma das primeiras mensagens. "Você já considerou que a história que foi perpetuada é totalmente fictícia? […] Alguma coisa não está certa, Jean."

Mas eles por fim consentiram e nos ligamos por Skype: eu, de casa, no Vietnã, eles, de um "lugar tempestuoso", segundo disseram. "Não contamos para ninguém onde estamos quando viajamos."

Conversamos por mais de duas horas. Eles começaram pelo começo: o amor de longa data de Judi por viagens e intercâmbio cultural, que teve início com "uma guitarra e um grupo de mulheres" nas alas para queimados do Japão, da Coreia e de Guam no fim dos anos 60. Ela criou a Overseas Adventure Travel em 1978 com US$ 300 em um apartamento quase do tamanho de um banheiro na Harvard Square. A empresária contou que era a única mulher a tocar uma agência de aventura nos Estados Unidos na época e conseguiu levar as pessoas para fazerem mochilão e mergulharem nas culturas do Nepal, Quênia e Peru.

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A ligação do casal com a Tanzânia começou no início dos anos 80, perto do Lago Natron, uma área massai não muito longe de Loliondo, onde ainda hoje há uma placa celebrando Judi e um grupo de mulheres como as fundadoras da primeira escola da região. Ela falou sobre os "bons amigos massai" e lembrou que já teve "discussões que duraram dias com os anciões" sobre educação, patriarcado e o futuro do povo massai. "Eles tinham clareza de que o turismo seria positivo", afirmou.

O anúncio visto no jornal em 2006 sobre a propriedade em Loliondo foi, portanto, "apenas a oportunidade de continuar o trabalho e a paixão que começou no Lago Natron". Eles já tinham outros três negócios na Tanzânia, mas nenhum tão próximo de povoados rurais massai, onde, acreditavam, as pessoas seriam muito beneficiadas pelo trabalho filantrópico que o casal planejava promover.

Perguntei a Judi se ela havia pesquisado a história daquela terra e da região antes de comprar. "Se sabíamos que havia uma disputa? Não, não sabíamos", contou. Eles não visitaram o lugar para consultar a população local antes de comprar o título. Quando Judi finalmente ouviu dizer que algumas pessoas achavam que a terra pertencia à comunidade e não deveria ter sido vendida para o casal, eles não deram importância. "Existem milhões de histórias por aí", afirmou. Ela destacou a transparência da venda, citando uma investigação do governo tanzaniano que concluiu que a compra da terra pela empresa estava dentro da lei.

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Judi insistiu sobre as longas conversas com os "anciões locais" sobre os planos do casal para depois da compra do título, explicando os benefícios esperados para as comunidades. "Eles ficaram muito animados" nas reuniões, relembra o casal. "Foi um grande estímulo para nós."

Sobre as alegações de abuso, eles insistiram que os vigias são "muito gentis com as pessoas" e sabem que, se encostarem um dedo em um pastor, serão demitidos. A polícia só se envolve se há alguma ameaça à equipe ou aos hóspedes, segundo os empresários. Quanto às acusações de abuso e ataques com arma de fogo, eles me desafiaram a encontrar um caso que fosse indiscutivelmente "verdade". Expliquei que eles estavam certos: os registros hospitalares de ferimentos não provam se os seguranças da empresa eram os agressores. Quem poderá afirmar que aqueles que foram presos por invasão não estavam prestes a jogar lanças nos hóspedes ou em membros da equipe? Não há nenhum registro escrito documentando que tenha sido algum funcionário da empresa a dar a ordem para a polícia incendiar a boma de Lemgume em 2006. Fiz uma longa apuração, mas não há provas palpáveis que liguem o ataque a Timan ao policial chamado pela Thomson Safaris. Em todos os casos, é a palavra da vítima contra a da empresa. Tudo poderia ser uma conspiração bem elaborada.

Homens massai se reúnem na Suprema Corte da Tanzânia em Arusha.

Mas quando se trata do porquê alguém ou algum grupo faria tudo isso para minar a credibilidade da Thomson Safaris, os fundadores da empresa não sabem dizer. Eles reiteraram as possibilidades de divisão de clãs e o papel dos provocadores.

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A essa altura, também estava difícil apostar minhas fichas. Em Loliondo, me disseram que a Thomson Safaris se aproveita das tensões históricas entre os clãs, e não o contrário. Quanto às acusações de que os ativistas locais tinham interesse financeiro na resistência, eu já tinha investigado as alegações de Yamat, o gerente, e nenhuma se comprovara. A ONG de Maanda deu à VICE acesso a todos os documentos financeiros da organização, e eu também conversei com os doadores. Não descobri nenhuma prova sobre as alegações de estarem usando a disputa para enriquecimento próprio. E Maanda nunca foi contratada por uma empresa de safáris concorrente, como acusou Yamat. O gerente tinha me dado várias outras "dicas" que não levaram a lugar nenhum – como a ideia de que a ferida de Timan não poderia ter sido causada por uma bala, teoria refutada por um patologista forense que consultei nos Estados Unidos.1

Mesmo assim, eu queria ouvir o casal Judi e Thomson. Eles afirmaram que a prova de que não eram culpados de nada era o fato de ainda funcionarem e serem inclusive aplaudidos pelo governo tanzaniano. (A empresa foi condecorada três vezes pelo órgão oficial do Turismo na Tanzânia: Operadora de Turismo do Ano em 2001, Humanitária do Ano em 2005 e vencedora do Prêmio de Conservação da Tanzânia em 2009.) Contaram sobre a "investigação" do governo, um documento de centenas de páginas com a conclusão de que a compra da propriedade pela Thomson Safaris estava dentro da lei.

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Citei para o casal uma conversa tida em Arusha com um especialista em disputas de terra, que prefere não ter seu nome divulgado. "Não há dúvida de que o governo está do lado da Thomson Safaris", afirmara. "[O governo] tem um tipo de respeito com os investidores desde que eles paguem os impostos e tragam dinheiro de turista. Para a população, o governo usa o raciocínio do meio ambiente acima de tudo. Mas os investidores podem violar até direitos humanos e o governo não vai investigar nem puni-los por isso."

"[Se tivesse] alguma coisa de ilegal", Thomson respondeu, "teria sido interrompido há muito tempo e teríamos sido expulsos".

Em seguida, Judi afirmou que sempre foi o objetivo da empresa fazer mais do que apenas construir escolas. Eles pretendem "passar o bastão" para os moradores locais no futuro, mas essa transferência de poder ainda está longe de acontecer. "Precisamos conseguir ensiná-los a fazer isso", afirmou a empresária. O primeiro passo foi levar um grupo de massai para o Quênia para conhecer modelos alternativos de turismo de base comunitária, nos quais os povoados têm voz nas operações. Outra ideia é ensinar gestão da fauna silvestre a membros da comunidade antes de transferir o controle. Ninguém em Loliondo me falou sobre essa perspectiva de longo prazo. Judi disse que o conflito com a comunidade os deixa de mãos atadas. "São nove anos com dificuldade de conseguir dar o "start" para fazer tudo isso acontecer", afirmou Thomson.

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Antes de terminar a ligação, eu queria lançar mais uma teoria sobre como, depois de quase uma década, era possível haver uma situação de duas realidades tão contrastantes. Em Loliondo, várias pessoas me disseram que chegaram a conhecer Judi ou Thomson e que eles pareciam ser mesmo boas pessoas. Talvez, disseram os moradores de Loliondo, a situação tenha se desvirtuado por um excesso de imposição na região. Talvez Judi e Thomson não soubessem.

O casal, no entanto, foi rápido em contestar isso. Eles afirmaram que vão a Enashiva várias vezes por ano e sempre pedem a Yamat e aos vigias – em quem confiam plenamente – relatórios detalhados sobre tudo que acontece.

"Mas", perguntei, em todos esses anos "vocês alguma vez já tentaram conversar diretamente com algum dos indivíduos [que fazem as alegações]?".

"Alguns você não consegue nem encontrar!", interrompeu Thomson, murmurando sobre afirmações da polícia de que os boletins de prisão teriam sido falsificados com nomes fictícios.

"Mas outros, consegue", afirmei, "porque eu falei com eles".

Houve uma pausa e então Judi respondeu: "Pessoalmente?", perguntou. "Não."


1 A Polícia Regional de Arusha não respondeu a nenhuma das alegações apresentadas nesta matéria. Um oficial afirmou apenas que "não tinha tempo de falar com jornalista sobre crime". Ele também disse que "a única coisa que jornalista faz é enganar as pessoas". O comissário distrital, Elias Wawa Lali, se aposentou em fevereiro. Quando pedi um comentário dele, a resposta foi: "Estou aposentado e sou um senhor de idade. Não preciso mais ser incomodado".

Homem massai faz juramento antes de dar depoimento na Suprema Corte da Tanzânia.

Em frente ao prédio de um andar da Suprema Corte em Arusha, em uma manhã agradável de dezembro, Makko, o chefe do povoado de Mondorosi, estava reunido com Ndekerei e vários outros moradores de Loliondo. Maanda estava a caminho. Um pouco antes das nove horas da manhã, os homens, vestindo shukas e ternos de segunda mão, marcharam em fila por um corredor estreito forrado de prateleiras desorganizadas cheias de pastas de arquivo, seguidos de advogados em longas togas pretas. Foi difícil passar: a porta para a sala do julgamento estava parcialmente bloqueada por um cortador de grama velho deixado no meio do caminho.

Acompanhei os primeiros dias da ação movida por três povoados de Loliondo contra a Thomson Safaris. "O caso se baseia em um princípio legal conhecido como 'adverse possession' [equivalente ao usucapião]", explicou Rashid S. Rashid, advogado dos massai. "Se o dono de uma terra não proíbe uma pessoa de entrar e não faz nada para contestar o uso da terra por um certo período de tempo – na Tanzânia, são doze anos –, esta propriedade se reverte para a pessoa. É como o direito dos posseiros, mas muito mais forte." Rashid argumenta, em defesa dos massai, que a cervejaria que vendeu o título para os donos da Thomson Safaris havia abandonado a propriedade 16 anos antes de Judi e Thomson verem o anúncio no jornal. A venda, portanto, teria sido ilegal, segundo sua argumentação, e o título da terra deveria ser devolvido aos seus donos legítimos, os povoados. Judi e Thomson se recusaram a comentar sobre qualquer coisa relacionada ao julgamento e não autorizaram o advogado da empresa na Tanzânia a dar entrevista para esta matéria.

Seja qual for o resultado, essa batalha judicial tem uma importância muito maior do que o destino dos 4,85 mil hectares no centro geográfico da África. "Esta não é uma história excepcional de conservação maligna", afirma Ben Gardner, antropólogo que chefia o programa de estudos africanos na Universidade de Washington. A diferença, avalia, é que os autores defendem a ideia mais polêmica da política de conservação: o retorno da terra para os donos originais. "Se uma coisa está à venda e você compra, como é possível ser culpabilizado por qualquer delito que seja? Os investidores têm um véu de pureza moral. Você não precisa justificar nenhuma história de desapropriação ou colonialismo, nem as consequências do trabalho de conservação."

Como grande parte do mundo natural no norte do planeta já passou de um ponto que não tem mais volta, e enquanto os efeitos das mudanças climáticas se multiplicam todo ano, cada vez mais áreas no hemisfério sul estão sendo isoladas a serviço de um patrimônio global com pouca relevância para as vidas das pessoas mais próximas da terra. O efeito colateral social dessas políticas conservacionistas traz um enigma, uma Escolha de Sofia. Quais direitos são mais importantes: os da natureza ou os das pessoas que sempre viveram mais perto dela?

Muitas vezes, grupos autóctones são expulsos e depois, como os massai, obrigados a se adaptar. "Temos a tendência a culpar a vítima e nem percebemos o que estamos fazendo", afirma Charles Geisler, professor de sociologia do desenvolvimento na Universidade de Cornell, especialista em refugiados da conservação. "O ônus é sempre para o refugiado da conservação mudar. Impomos pastagens limitadas ou direitos hídricos restritivos… Aos poucos, eles ficam sem escolha e acabam utilizando o ecossistema em excesso. Ou vão embora e, ao perder a terra, perdem também a identidade."

Os meninos não podem apertar a mão dos mais velhos até serem circuncidados na adolescência. Até lá, cumprimentam os pais com uma reverência.

Os massai estão tentando manter um equilíbrio delicado entre as escolhas que lhes foram dadas, e também não há consenso entre eles. Depois da viagem, fiquei refletindo sobre a reunião com a comunidade organizada pela Thomson Safaris para nós. Apesar da fama de guerreiro, o grupo foi extremamente educado no trato um com o outro. Foram as expressões faciais, barulhos sutis e protestos silenciosos no encontro (um contingente de mulheres foi embora durante o discurso de um homem, por exemplo) que me fizeram perceber porque o religioso de Sukenya que entrevistei no primeiro dia quis sentar em uma vala. Era uma comunidade à beira do colapso.

Nem sempre é tão difícil assim. Existem modelos de turismo de base comunitária na Tanzânia e em outros lugares do mundo onde as pessoas mantêm os direitos sobre a terra e conseguem negociar o que é mais importante para elas, seja o direito ao pastoreio, área agricultável ou acesso à pesca. Por exemplo, a poucos quilômetros de Sukenya, a empresa &Beyond arrenda uma área para a comunidade local onde operam passeios. Os membros da comunidade limitam o rebanho e fazem a fiscalização. Não é um plano perfeito, explicam a empresa e os moradores, mas os dois lados se beneficiam de uma coexistência pacífica. Existem outros modelos de conservação em que os grupos autóctones administram seus próprios projetos de negócios – turísticos ou não – na área preservada. O sucesso desses projetos será essencial para a saúde tanto do meio ambiente quanto de comunidades indígenas em uma era de mudanças climáticas e população cada vez maior.

Mas Loliondo pode estar muito além desse acordo. A essa altura, existem duas saídas possíveis. O tribunal pode apresentar uma deliberação justa agora em maio. Se os povoados ganharem, Judi e Thomson dizem que vão entrar com recurso. Mas se mesmo assim não conseguirem, afirmam que vão respeitar a decisão e deixar a região. Se os povoados perderem a ação na justiça, provavelmente será impossível assistir a um final tranquilo para a situação. Vários moradores de Loliondo me disseram que, apesar de terem orgulho de entrar com a ação, não confiam no desacreditado sistema judiciário da Tanzânia, ainda mais corrupto que os políticos do país. Se o lado com mais poder e mais dinheiro sair por cima, é provável que ninguém consiga acalmar os massai. "Não vamos mais ser caçados", disse-me o ancião de Lemgume no dia do nosso encontro. "Agora estamos caçando. A terra é nossa, e vamos tomá-la de volta."

Confira mais imagens abaixo.

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Andando de carro em terra massai em Loliondo, perto da fronteira com o Quênia.

Homem massai arrebanha o gado à beira da propriedade da Thomson, desafiando as regras e as práticas de intimidação da empresa. É comum enviarem seguranças para confiscar os animais e, segundo testemunhas, espancar os pastores. Mas os moradores continuam a arriscar um contato violento porque afirmam não ter outro lugar para o gado pastar em meio às planícies secas.

A sociedade massai é considerada uma das mais patriarcais do mundo. Os homens podem ter várias mulheres, muitas vezes escolhidas ainda na infância, aos dez anos de idade. As mulheres passam a maior parte do dia recolhendo lenha, cozinhando e cuidando das crianças.

Comunidades massai pobres vivem ao lado do luxo.

Tradução: Aline Scátola