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Prender Manifestante com Bomba de Chocolate É Padrão no Brasil

A “fé pública” pôs Rafael Lusvarghi e Fábio Hideki na cadeia. Mesmo errada, a palavra dos policiais bastou para a Justiça decretar prisão cautelar. E esse tipo de erro se repete por todo país.

Manifestante em cana depois de protestos. Palavra da polícia vale mais que a do acusado.

No dia 23 de junho, a polícia confundiu um frasco de chocolate e uma lata de um produto doido com bombas incendiárias e prendeu os manifestantes Rafael Lusvarghi e Fábio Hideki Harano. Os dois já passaram mais de 40 dias em cana, apesar de a perícia do Instituto de Criminalística ter concluído que o frasco de Nescau era apenas um frasco de Nescau e o frasco de Fix, para fixar tecidos, era só um produto esquisito mesmo.

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Mas como que os dois manifestantes estão presos há tanto tempo com base numa prova tão frágil? Isso é comum? Conversei com quem entende do assunto para saber se prisões assim são corriqueiras ou não.

O lance é que decisões com base em depoimentos (muitas vezes errados) da Polícia são um padrão no Brasil e bastam para manter uma galera em prisão cautelar por tempo indeterminado, quando há chancela e conivência da Justiça. Em outras palavras, os policiais têm a tal “fé pública” para acusar.

“A polícia se utiliza dessa prerrogativa na hora da prisão de um manifestante como forma de dar o recado”, diz o advogado criminalista Guilherme Madi Rezende, do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Ele explica que a prisão cautelar funciona daquela maneira muito questionável, mas conhecida por todos: prende-se primeiro e somente depois se investiga.

E é nessas que surgem os casos mais absurdos. Em abril, um menor de 17 anos foi tirado no meio da noite de dentro de casa, da cama onde dormia, em seu apartamento no bairro da Bela Vista, por um grupo de PMs que buscava os responsáveis por um roubo de automóvel ocorrido a dois quilômetros dali. Os policiais acharam, com base numa longa cadeia de suposições equivocadas, que o moleque em questão era um dos assaltantes. Bastou a suposição para que ele acabasse internado na Fundação Casa, com aval de um delegado, um promotor e um juiz, todos crentes na palavra dos PMs. A casa só caiu pro lado da polícia depois que a história foi exposta pelos jornalistas Bruno Paes Manso e André Caramante. Depois de muita pressão, o menor enfim foi solto.

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Apesar disso, a Justiça tem como padrão acreditar em tudo que os policiais falam. Consta em papel: “a palavra judicial de um agente da Lei (policial) merece irrestrita credibilidade”, diz um dos votos de um acórdão [decisão dada por um colegiado de juízes] registrado em abril pelo relator da Primeira Câmara Criminal Extraordinária do Tribunal der Justiça de São Paulo, Airton Vieira. A “necessidade de prestigiar o testemunho do agente público” também é realçada pelo relator Vaz de Almeida num acórdão semelhante de maio do ano passado.

As prisões cautelares são usadas principalmente com base na lei de drogas e na manutenção da chamada ordem pública.

Todo mundo no chão. Manifestantes dançam na mão da PM em São Paulo.

A socióloga Julita Lemgruber fez uma pesquisa sobre o assunto no Rio de Janeiro e diz que “em 93% dos casos não se justificava a manutenção da prisão provisória e em 65% das decisões de manutenção da prisão provisória a fundamentação era a manutenção da ordem pública. Para piorar a cena, dos pedidos de liberdade feitos no DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais), o percentual de sucesso era de 9,6%.

O cenário em outros estados é tão cabreiro quanto no Rio. “Em São Paulo, 35% da população carcerária encontra-se em prisão provisória. Já no Piauí, este índice chega a absurdos 70%”, de acordo com a ONG Conectas Direitos Humanos.

Um estudo do NEV (Núcleo de Estudos de Violência), da Universidade de São Paulo, mostra que dos 52 mil presos por tráfico em 2011, 52% não tinham antecedente criminal e 59% eram negros e pardos – o que fala muito sobre o tipo de clientela policial no Brasil.

Na maioria dos casos, estas prisões são baseadas em flagrantes, não em investigações. “Os detidos geralmente apanham da Polícia Militar no momento em que são presos. ‘Vagabundo’ e tapa na cara é o básico. Fica claro que há muito autoritarismo, chancelado nas prisões em flagrante”, disse o advogado criminalista André Kehdi na apresentação de um estudo sobre o tema, em 2012, na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

O que nos leva de novo ao dia 23 de junho e o caso de Lusvarghi e Hideki: eles são só mais dois a virarem número nessa engrenagem bizarra que prende antes e pergunta depois, pouco importando a veracidade das provas iniciais ou até a superlotação dos presídios.

Mesmo que os advogados de defesa tenham sucesso e livrem os dois das acusações de incitação ao crime, associação criminosa armada, resistência, porte de artefato explosivo e desobediência, ambos manifestantes terão amargado um longo período atrás das grades. É o que a “fé pública” da análise de policiais sobre latas de Nescau e produtos diversos causa no Brasil.