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Música

Rock'n'roll, bifanas e calimotxo

A ressaca é tramada.

Afinal, o mundo não acabou no dia 21 de Dezembro. No entanto, aparentemente ninguém avisou a CP disso. Durante horas não havia sinal de vida inteligente na estação de Setúbal. Três carreiras de seguida suprimidas até surgir, finalmente, um comboio. Aquelas velhas que aparecem nas reportagens dos telejornais de cada vez que há greve dos transportes são quem tem razão: isto é uma falta de respeito, deviam era fazer greves ao domingo à noite, quando não maçassem ninguém. Com esta brincadeira, quando entrei no salão d'Os Penicheiros, que este ano acolheu o Barreiro Rocks (em vez do habitual pavilhão d'Os Ferroviários), já os Asimov tinham tocado. Afinal, acabei por não ver aquela banda que eu tinha vaticinado, no texto de antecipação ao festival, que poderia ser a surpresa deste ano. Perguntei a uns amigos, gente confiável e de bom gosto, como tinha sido o concerto. “Foi giro.”. E fiquei sem perceber se a falta de ênfase na resposta tinha sido por falta de entusiasmo pelo concerto ou se ainda eram resquícios do álcool no sangue ainda presente desde a última noite, quando os Los Santeros e os Los Saguaros (que lançaram no Barreiro Rocks o seu muito recomendável disco de estreia) abrilhantaram a “grandiosa festa de abertura” do festival. Quando chegámos ao Barreiro Rocks, já estavam então a tocar os Tracy Lee Summer. Numa sala ainda semi-vazia, este power-trio barreirense já tinha agarrado nos Stooges, no Billy Childish (referência devido à versão de “Troubled Minds”) e nos Oblivians (outra referência pela cover de “Bad Man”), levado-os para o fundo da garagem e estavam a espancá-los com a sua colecção dos Nuggets. No final, uma certeza: esta banda rende muito mais em espaços mais pequenos, atafulhados e suados. Os Dirty Coal Train têm tudo para ser a nossa nova banda favorita. Com um EP de estreia em vinil como cartão-de-visita, estes lisboetas não só têm pinta e um nome muito fixe, como mostram que sabem o que fazem. E o que fazem é um horror-rock metade Cramps (mas com mais fuzz), metade Sonics (mais uma referência preguiçosa, devido à versão imaculada de “Have Love, Will Travel”), cheio de referências sci-fi xunga. Mas depois há outro lado mais garageiro e mais punk que lhes fica bem, o tal lado Sonics, mas que também lembra, por exemplo, os Gories: ou não houvesse também uma cover de “Nitro Glycerene”. Os Greasy & Grizzly foram a primeira banda espanhola a pisar o palco do Barreiro Rocks, justificando o epíteto de edição ibérica. Bateria e guitarra minimal, rock'n'roll primitivo e visceral e mais atitude do que música, na maior parte das vezes. Finalmente, o salão d'Os Penicheiros começava a encher e viam-se os primeiros espanhóis perto do palco. E quando vemos espanhóis no Barreiro Rocks sabemos que em breve vamos ver… calimotxo. Muito calimotxo. Quando Fast Eddie Nelson subiu a palco, já o salão estava bem compostinho. E ainda bem, porque o bluesmen barreirense sacudiu tudo e todos, com umadas grandes actuações desta edição do Barreiro Rocks. De forma aparentemente displicente e sem grande esforço, Fast Eddie (acompanhado à bateria por Frank The Crow na bateria, em vez de Phil D., com quem gravou um dos melhores pedaços de música que 2012 ouviu) sentou-se (que a puta da idade é tramada), agarrou na guitarra e deixou todos de boca aberta com o seu blues redneck (chama-se bluegrass, eu sei) e rock'n'roll cheio de ginga. Parecia aquele momento uau, em que o Jools Holland levou um tipo que parecia sem-abrigo ao seu programa e ele, com uma guitarra com cordas a menos e uma caixa de madeira, arrasou com toda a gente presente. Esse tipo é o Seasick Steve e, depois deste Barreiro Rocks, passou a ser conhecido como o Fast Eddie Nelson norte-americano. Depois de um compasso de espera, que deu para ir ao bar trincar uma bifana e atestar de calimotxo, a pandilha nortenha atacou o Barreiro Rocks. Primeiro, os ALTO!, que junta malta dos saudosos Green Machine ou dos Black Bombaim, e que soa aos The Fall em ácidos. Ou então é João Pimenta, o vocalista, que está sob o efeito de qualquer coisa, na forma como se enrola nos cabos, simula felácios ao microfone ou copula com as colunas do palco. Há tensão sexual a mais no palco e rock'n'roll a menos. Para equilibrar os pratos da balança vieram os Glockenwise, recuperando o espírito hedonista dos Black Lips e convencendo-nos pela milésima vez de que, com o rock, é fixe ser jovem para sempre. Amén! Os Jesus Racer R'n'R Trio já tinham estado no Barreiro Rocks e, por isso, não nos surpreenderam por serem, afinal, um duo(!). Humor em formato guitarra+bateria, com um baterista a tocar em pé à Gene Krupa e a alternar à vez na voz, numa fórmula repetitiva que se esgotou ao segundo tema. Tinha feito mais sentido se o alinhamento tivesse trocado com os Greasy & Grizzly. Os concerto dos Act-Ups começam a ganhar o estatuto de acontecimentos. Apesar de serem uma das melhores bandas  nacionais (os Glockenwise partilharam a mesma opinião), tocam ao vivo cada vez menos. E isso deixa-nos tristes e é uma razão pela qual Portugal está em crise. Crise de valores, entenda-se. Por isso, as expectativas eram muitas. Mais punk do que costume (Nick Nicotine, o frontman e um dos responsáveis pelo próprio festival, estava rouco e isso contribuiu também), os Act-Ups pecaram por uma actuação curtinha. Fizeram-nos água na boa e depois deixaram-nos de mãos a abanar. Malditos sejam! E, por fim, Los Chicos! Aquela banda que Beck, o próprio, apelidou certo dia de a melhor banda ao vivo do mundo tinha a seu cargo o encerramento desta edição ibérica do Barreiro Rocks. Na memória (e no corpo, já que aquela marca no joelho não nos deixa esquecer), ainda tínhamos a after-party de 2007. E os espanhóis não defraudaram as expectativas. Dando uma nova definição ao party-rock, os Los Chicos estenderam as dimensões do palco ao resto da sala, transformando-o em salão de dança: espreitem a página do festival no Facebook e vejam a foto de capa. Por vezes, falta mais alguma música, mas compensam (e em dose industrial) com atitude e à-vontade. Foi em tom festivo que terminou o Barreiro Rocks, rés-rés com a chegada da polícia. Em ano que se procurou contornar a crise com uma edição (mais ou menos) local, o Barreiro Rocks saiu, novamente, vencedor. E com dois pontas-de-lança que contribuíram para a vitória: o primeiro, o próprio salão d'Os Penicheiros, mais uma daquelas colectividades que parece existir no Barreiro, com uma acústica como deve ser, um palco do tamanho do Rock in Rio e as paredes cheias de murais com camponeses, foices e comunistas; e o segundo, a cerveja, que não era Tagus: e que dá uma ressaca brutal. Esperamos que para o ano o Barreiro Rocks se mantenha pelo mesmo local. Ou então que, pura e simplesmente, se mantenha. Não pedimos mais, somos gente simples e humilde. Fotografia por Vera Marmelo