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Como Matar Pessoas Corretamente

É legalmente correto matar certas pessoas. Mas não de qualquer jeito. Nem com qualquer arma.

É legal matar certas pessoas. Mas não de qualquer jeito. Nem com qualquer arma.

Desde 1864, a lei da guerra diz como podemos nos matar mutuamente no mundo em que vivemos. Esse be-a-bá foi feito na Suíça, há 150 anos, inspirado por um comerciante católico chamado Henry Dunant, que viria também a ser o criador da Cruz Vermelha. Grandes costeletas, ele tinha. Algo precocemente hipster, pode-se dizer, quando olhamos a foto de Dunant hoje.

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A lei inspirada por ele diz que, numa guerra, você pode matar outro soldado, desde que este soldado não esteja, entre outras coisas, com as mãos levantadas, a cabeça enfaixada ou desde que ele não apareça boiando, ferido no mar, ainda vivo, depois de ter naufragado. As quatro Convenções de Genebra têm recorde de ratificações entre os países. Quase ninguém se opõe a elas. Pelo menos, na teoria.

Dizer como as pessoas podem se matar na guerra é algo que pode ser visto como o outro lado de uma moeda. Em sua face mais suave, essa moeda determina quais são as pessoas protegidas no campo de batalha. Na face mais dura, diz quem pode morrer legalmente.

No lado suave, a lei da guerra isola sob um manto protetor (1) as pessoas "que não participam das hostilidades", como mulheres, crianças e idosos civis e (2) as pessoas "que já não participam mais das hostilidades", como combatentes feridos, rendidos e capturados. No lado duro da moeda, a lei afirma, de maneira implícita, quem pode ser legitimamente morto: combatentes, guerrilheiros e rebeldes de grupos armados organizados que portem armas abertamente, civis sublevados em armas e agrupados sob estruturas de hierarquia militar etc.

É curioso aprender que um combatente pode até ser tomado como prisioneiro de guerra por uma força inimiga, no entanto, pela lei, ele não pode ser julgado pelo simples fato de ter matado combatentes do lado oposto – desde que as mortes provocadas por ele não tenham sido sob execução sumária, por exemplo; isso, sim, um crime passível de julgamento. Na verdade, além de não ser punido, o soldado em questão será normalmente premiado com medalhas.

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A coisa toda parece complicada. E é por isso que os manuais das forças armadas usam desenhos para explicar a norma a seus soldados. A julgar pela quantidade de violações cometidas, ele não tem funcionado muito.

É estranho pensar que a iniciativa que criou todas essas normas é a mesma que criou a Cruz Vermelha. As duas coisas são frutos da mesma árvore. Pela lógica, se você regula a guerra, você admite a existência da guerra. E se você admite que há mortes legais e sofrimentos justificáveis diante de objetivos militares legítimos, então, você não é exatamente pacifista, o que talvez soe forte quando aplicado à lógica da Cruz Vermelha.

Toda a ideia sobre como matar de maneira legal é a mesma para o uso de armas químicas, por exemplo, na Síria. Um ditador poderia matar rebeldes com armas convencionais num conflito aberto. Mas não pode usar armas químicas, nucleares ou biológicas para fazer isso. No fundo, do ponto de vista de quem morre, não há diferença entre ser baleado ou fungar gás mostarda. No fim, você morre. A diferença é que, de acordo com a lei da guerra, não é possível usar armas que causem danos extensivos e indiscriminados ou “sofrimento desnecessário” – note que não se trata de uma lei pacifista sob hipótese alguma. Ela reconhece que é ok causar algum sofrimento ou eliminar oponentes para que se alcance um objetivo militar justificável.

É por isso que artefatos como as minas antipessoal são proibidos por um tratado da década de 1990, o Tratado de Ottawa. Não se pode espalhar explosivos que matarão indiscriminadamente. Qualquer um que pise numa mina, morrerá. Isso não é legal. O ataque deve ser dirigido a alvos legítimos. Além disso, as minas permanecem no terreno por décadas, até que uma vaca ou uma criança pise nelas inadvertidamente. Vacas não são objetivos militares legítimos. Crianças até podem ser quando recrutadas como soldados.

A maioria das pessoas dedicadas ao tema detesta ver a coisa exposta desta forma. Há um esforço para dar mais destaque às pessoas protegidas pelas Convenções de Genebra do que às pessoas legitimamente postas na alça de mira. Tanto é assim que esse ramo do direito é conhecido como Direito Internacional Humanitário (DIH). Os militares preferem chamar de Lei da Guerra mesmo ou Direito Internacional dos Conflitos Armados (Dica). Cada um põe a ênfase onde prefere. É sempre bom saber de que lado da moeda se está. Fica a Dica.

Siga o João Paulo Charleaux no Twitter: @jpcharleaux