Os torcedores turcos que são acusados de terrorismo

FYI.

This story is over 5 years old.

VICE Sports

Os torcedores turcos que são acusados de terrorismo

Falamos com os líderes da torcida do Besiktas para entender como protestar contra o governo local se encaixa em ato terrorista.

Foto: Murad Sezer/Reuters

"Unidos contra o fascismo!", gritavam centenas de fãs de futebol pelas ruas de Istambul, na Turquia. Os torcedores dos times Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş, rivais de longa data nos campos, protestavam juntos para impedir que um empreendimento fosse construído em um dos últimos espaços verdes da mais populosa cidade turca.

A história começa em maio de 2013, quando o governo do país anunciou suas intenções de demolir o parque Gezi para construir um shopping. De uns meses para cá, com o aumento do movimento dos manifestantes, as autoridades intensificaram suas forças de contenção. A brutalidade da polícia exagerada e, nos últimos meses, as passeatas para salvar o parque se transformaram em ato de revolta contra o presidente Recep Tayyip Erdoğan.

Publicidade

Os atos contra o Partido da Justiça e Desenvolvimento (APK), que detém uma parcela majoritária do parlamento turco, tomaram vários dias em diversas cidades ao redor do país. Oito pessoas mortas e outras oito mil foram feridas pelos policiais.

A Çarşı, torcida organizada do Beşiktaş JK, foi um dos grupos mais influentes nos protestos. Trinta e cinco membros – incluindo o fundador do grupo, Cem Yakışkan – foram levados à Justiça, acusados por tentativa de instaurar um golpe de estado, terrorismo doméstico, resistência às autoridades e participação em manifestações ilegais.

O promotor Adem Meral lutou pela prisão perpétua de vários membros da Çarşı. Também quis sentenças de três anos para outros integrantes do grupo. Embora em 29 de dezembro de 2015 os acusados tenham sido julgados inocentes, o Sr. Meral recorreu ao Supremo Tribunal. Cem Yakışkan acredita que, apesar do perdão recente, o grupo ainda voltará à corte. "Rimos da situação para não chorar", explicou. "O juiz disse: 'Vocês estão aqui por tentar instaurar um golpe de estado'. Se tivéssemos poder para promover um golpe, usaríamos para tornar o Beşiktaş campeão!" Yakışkan e outros membros da Çarşı esperam ser imputados mais cedo ou mais tarde: "Não podemos esquecer, estamos na Turquia. Vamos ver o que rola no Supremo Tribunal; o processo ainda não acabou."

O parque Gezi, em Istambul, virou um inferno com a repressão policial, em maio de 2013. Foto: Yannis Behrakis/Reuters

A Anistia Internacional já havia destacado a natureza brutal do sistema penitenciário da Turquia, bem como o caráter invasivo das agências de inteligência do país. Segundo os estudos anteriores da ONG, esses departamentos do governo agem com impunidade total. O nome Çarşı – que, em turco, significa "mercado" – veio do bazar local do bairro do Beşiktaş, onde os torcedores se encontram para assistir aos jogos time. Yakışkan é dono de um bar no coração do mercado. "Para entender por que participamos das manifestações, é preciso entender o Çarşı primeiro", explicou Yakışkan. "Não seria normal ignorar os protestos do parque Gezi porque tudo está acontecendo bem aqui do lado. "No passado, lutamos contra a construção de uma represa hidroelétrica em Hasankeyf cuja edificação teria destruído uma cidade da Antiguidade e colaboramos com doação de sangue após o terremoto de Van, em 2011. Sempre nos oporemos a ações injustas e violência."

Publicidade

Uma imagem fora do comum no futebol turco: fãs dos times Galatasaray, Fenerbahce e Besiktas se unem para protestar contra o governo.Foto: Murad Sezer/Reuters.

Os fãs futebolísticos da torcida Çarşı são reconhecidos na vizinhança por sua consciência social e ideologia anarquista, ambas simbolizadas pelo logo da organização. O famoso lema do grupo – "Çarşı, her şeye Karşı" – pode ser traduzido como "Çarşı, antitudo". "Nem a anarquia nos basta", disse Yakışkan. "Geralmente, os logos têm o 'A' [anarquista] dentro de um círculo. O nosso 'A', a nossa batalha, vai além. Quando há injustiça, sempre nos posicionamos ao lado daqueles que sofrem. Armênios, curdos, ativistas pelos direitos dos animais, a comunidade LGBT, feministas…" Para Yakışkan, a perseguição aos membros da Çarşı se deve às suas ações sociais. Não é a primeira vez que o governo turco interfere no território do futebol. Em 2012, para poder comprar os ingressos, os fãs tiveram que assinar um contrato que aceitava a proibição de determinados lemas e slogans. O governo comentou que as medidas foram tomadas para impedir protestos contra si durante partidas esportivas. A acusação formal levantada contra a Çarşı explica que o grupo tentou ocupar o gabinete do ex-primeiro ministro, hoje presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan. Erdoğan disse que essas ações foram tomadas "para enfatizar as aparentes fraquezas do governo". "Tentaram exibir uma imagem que evocava as mudanças no governo ocorridas durante a Primavera Árabe. Tentaram derrubar o governo estabelecido da República da Turquia usando métodos ilegais", sentenciou.

Publicidade

Outro documento também alega que o grupo roubou uma escavadora para atacar viaturas policias próximas aos locais onde gás lacrimogêneo e canhões de água foram usados contra os manifestantes. O processo os acusou de posse de máscaras de gás, tochas e munição. Também estava sublinhado que, durante uma conversa via telefone entre manifestantes, eles pediram comida para sustentar "as pessoas que estavam na zona de protesto". A defensora de direitos humanos Emma Sinclair-Webb disse que as acusações que condenam os torcedores de futebol como inimigos de estado são "falsas e ridículas" e acredita que "jamais deveriam ter sido levados a julgamento". Murat Çekiç, diretor da Anistia Internacional na Turquia, também exprimiu preocupação com casos como o da Çarşı e da Solidariedade Taksim, coletivo que planejou os protestos de Gezi, também acusado de ser uma organização terrorista. Yakışkan está muito contente com a reação dos demais fãs de futebol. "Recebemos muito apoio de fora do grupo. Borussia Dortmund, St. Pauli; até times ingleses nos contataram." "Os torcedores do Galatasaray e do Fenerbahçe demonstaram apoio no início, mas não foi honesto", contou Yakışkan. "Não foram ao tribunal conosco. Em vez disso, aceitaram as injustiças. Em Gezi, nós nos unimos em prol de um futuro melhor, mas assim que a liga começar… Bem, todo mundo quer ser campeão." Um ano após a revolta, o governo turco implementou um novo sistema de acesso aos estádios, chamado Passolig – todo torcedor recebe um cartão com número de identificação e um assento marcado.

"Aceitamos a medida, mas se uma pessoa gerar tumulto, vão punir o coletivo. É um método bem esquisito", explicou o líder da Çarşi. "Mas acho que não poderiam fazer melhor. É parecido com a Europa – nosso governo sempre vai na cola deles. Implementaram a proibição de cigarro, impostos sobre bebidas alcoólicas e lançaram programas de controle mais restritivos para adotar os procedimentos europeus."

A solidariedade entre os times de Istambul foi surpreendente, embora o líder da Çarşı tenha dito que não durou muito. Foto: Murad Sezer/Reuters

O presidente Erdoğan frisou sua intenção de "caçar os traidores" responsáveis pelos protestos de Gezi e pela corrupção dentro de seu próprio partido. Durante esses julgamentos, policiais, advogados e juízes – incluindo dois magistrdos inicialmente convocados para o caso Çarşı – foram presos ou julgados por violação do Código Penal turco e de artigos da lei antiterrorista. A absolvição dos membros da Çarşı ocorreu logo após os 26 membros da Solidariedade Taskim, organizadores dos protestos de Gezi, também serem soltos. Yakışkan continua a defender o valor desses protestos: "O governo foi derrotado pela primeira vez. Podemos atribuir a vitória à nossa sociedade, podemos atribuir o sucesso aos indivíduos que participaram. Vimos como a nossa juventudE é inteligente e solidária", disse. Apesar dos partidos políticos que se opõem ao governo atual não terem se aproveitado da siuação, Gezi foi muito importante para a Turquia."