FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

As Alegrias e as Tristezas de se Produzir um Circo de Esquerda

A artista/ativista Jennifer Miller cria apresentações que misturam circo e justiça social nos parques de Nova York há décadas. Porém, sua criação mais recente poderá ser muito bem sua última.

Todo mundo conhece Jennifer Miller – ou pelos menos parece conhecer, enquanto estamos sentados na frente da casa dela, conversando numa tarde de setembro. Vizinhos acenam. O chefe de um coletivo de mídia queer aparece para fazer algumas perguntas. O filho do dono de uma deli do antigo bairro dela menciona que ela não aparece faz tempo. Tempo demais, na verdade, porque agora a deli foi fechada.

"É a barba." Ela rola os olhos e aponta para o queixo. "Eles não esquecem."

Publicidade

Hoje professora no Pratt Institute, Miller já trabalhou como "a mulher barbada" do Sideshow by the Seashore, em Coney Island. Na verdade, o circo tem sido sua vida nos últimos 30 anos. Em vários momentos, ela foi palhaça, malabarista e aberração; hoje, é a líder em pernas de pau do espetáculo político anual gratuito conhecido como Circus Amok, que junta muito glitter, um pouco de música típica judaica e uma história complexa sobre justiça social contada através de marionetes, malabarismos e acrobacias. Em todo mês de setembro há 20 anos, o circo apresenta um novo show em parques de cinco distritos – no entanto, a mais recente encarnação do circo pode ser a última, Miller me diz.

"Mas muita gente vai te dizer que já falei isso antes", ela suspira, com um olhar contrariado. É claro que ela ama o circo; mas montar o show ano após ano, após ano, tem um preço.

O Circus Amok começou no Performance Space 122 em 1989 como a Stratospheric Circus Company. Miller veio para Nova York de São Francisco no começo dos anos 80 com experiência em teatro de rua, clown e dança pós-moderna vinda de sua infância em Hartford, Connecticut. Desde o começo, ela sabia que queria criar o tipo de circo ao ar livre gratuito como o que ela tinha trabalhado na Califórnia, mas com uma inclinação política mais pronunciada.

Por que combinar circo e justiça social? Parcialmente, porque as duas coisas são interesses de Miller, mas a combinação também faz sentido historicamente: o circo é tradicionalmente uma forma populista, atraindo artistas que são marginalizados pela sociedade. "É uma linguagem que consegue falar com todo tipo de pessoa em todos os níveis", opina Miller. "E eu sabia que dança moderna não ia segurar as pessoas na plateia."

Publicidade

Então, ela alugou um loft barato em Williamsburg, com vista para Manhattan, e começou a realizar "Domingos de Circo" informais.

"A gente levava café, doces da loja hassídica da esquina, maconha, peixe defumado, pepino e café. Já mencionei café?", destaca o coreógrafo e artista performático Scotty Heron, um dos membros originais do circo. "Ah! E Joan Armatrading e Nina Simone no toca-discos."

Uma figura de membros longos e um pouco atrapalhada, é fácil imaginar Heron como palhaço, mas ele só se tornou artista de circo depois de conhecer Miller. Uma história comum entre as pessoas que a conhecem. Apesar de se chamar de "uma malabarista que se odeia" por conhecer as limitações da forma, Miller é, sem dúvida, uma evangelista do circo. (Contando tudo: mais ou menos dez anos atrás, ela me ensinou a andar na corda bamba e de pernas de pau – pelo menos o quanto minha capacidade de aprendizado permitiu.) Ela está no palco há tanto tempo que a atividade já pertence à sua identidade. Até a cadência de sua fala tem o ritmo de um mestre de picadeiro, te atraindo com um sussurro ou uma longa pausa, para depois entregar suas palavras finais com um floreio. Essa energia permeia tudo que ela faz, atraindo elenco e público como um ímã.

Jenny Romaine, diretora musical do circo, conheceu Miller através de uma organização lésbica feminista antiguerra. Formada em dança moderna, Romaine achou o processo solto do Circus Amok muito diferente do seu para se juntar ao grupo como artista. "Mas eu queria tanto estar no circo!", ela lembra com uma risada. "Então, fingi ser música." E ela deve ser uma ótima mentirosa, já que hoje é um dos membros ativos mais antigos do grupo, tendo participado de todos os shows desde 1994. Romaine guia músicos, encaixa embates e fanfarras nas partituras, ajuda a escrever o texto, faz os acessórios e ocasionalmente aparece usando as pernas de pau. Talvez mais do que qualquer um, ela viu o circo e Miller crescerem e mudarem com os anos.

Publicidade

"Ela é uma artista americana injustiçada", lamenta Romaine de repente enquanto me conta sobre as últimas décadas de trabalho do circo. A frustração em sua voz é clara. "Ela é alguém, uma artista, que tem sido profundamente injustiçada pelo descaso estrutural das artes", ela repete.

É uma coisa sistemática, ela me conta. Miller trabalha em uma das tradições mais antigas dos EUA, há décadas criando performances gratuitas e aclamadas, e as trazendo para as pessoas da cidade, tanto para educar como para entreter – e, ainda assim, ela tem de perseguir financiamento, na corrida sem fim de todo artista sem fins lucrativos dos EUA. "Se ela estivesse em Montreal", suspira Romaine, "isso não aconteceria".

O fato de Miller não sonhar em transformar o Circus Amok no Cirque du Soleil – ela realmente queira que o circo continue a ser uma forma de arte popular, barata e acessível –, paradoxalmente, não ajuda os críticos a entenderem seu trabalho. Sem uma aspiração elevada como um tipo de desculpa para a forma em si, os críticos relegam o circo a um status vulgar, com que poucos deles querem se envolver, o que torna difícil levantar fundos para o Circus Amok.

Pregando outro prego no caixão da cena artística de Nova York, penso comigo mesmo. A cidade se tornou um lugar difícil, esse é o refrão que escuto a todo momento. Miller discute abertamente as realidades de se fazer arte grátis, politicamente engajada e com grande apelo na Nova York de 2015. "Isso me desgasta profundamente", ela suspira. "Levantar o dinheiro, fazer a logística, conseguir as pessoas, ligar para lá, pra cá, etc."

Publicidade

E tudo isso aparece no trabalho, porque ela torna os problemas financeiros parte de sua arte. "Só posso fazer uma peça se encontrar um caminho para isso", ela me explica. "Uma das coisas com que estou lutando nesse circo é com a idade."

O principal impulso em seu show mais recente foi uma meditação sobre as mudanças climáticas. Miller é a mais velha das duas deusas no show, um espírito da natureza amargurado mas ainda esperançoso. Sua colega a lembra dos sucessos de vários movimentos de justiça social – apesar de essa lista incluir coisas como "Só estamos linchando um negro por semana".

Isso destaca uma dura verdade: a justiça social é como uma dança arrastada, sempre dando dois passos para frente e um passo para trás. Mudanças climáticas, brutalidade policial, gentrificação – olhando para os 25 anos de shows do Circus Amok, certas questões sempre retornam, como acontece com a própria cidade. Na esteira do assassinato de Eric Garner pela polícia ano passado, Miller considerou trazer de volta um esquete relacionado ao caso Amadou Diallo de brutalidade policial, mas decidiu ficar apenas com a questão das mudanças climáticas, já que havia muita organização acontecendo ao redor da People's Climate March. São tantas batalhas que é difícil escolher apenas uma para lutar.

"Desespero é um pecado!", brinca Miller quando pergunto como ela consegue continuar. Depois, suspira. "Está ficando difícil para a alma. Difícil para a energia."

Publicidade

E se tem uma coisa que o circo exige, é energia. No momento em que ela sobe ao palco, o elenco já está saltando, girando, dançando e mergulhando. É o açúcar que ajuda a engolir seu remédio de justiça social. Mas a energia constante deles também é, por si mesma, uma mensagem sobre a rejeição ao desespero. Mudanças se baseiam na esperança. Isso são os planos que fazemos e a energia que usamos para realizá-los; isso nos levanta quando caímos e nos guia quando temos sucesso.

E Miller tem muito disso. Quando pergunto se ela se mudaria para Nova York agora, se fosse jovem e quisesse fazer esse mesmo tipo de trabalho, ela faz uma pausa por um longo tempo. Tenho feito muito essa pergunta ultimamente, já que estou começando a ter uma segunda opinião sobre a cidade, e conheço essa pausa. Ela significa: "Estou procurando um jeito certo de dizer não".

Mas, como a grande mestre de picadeiro que é, Miller me surpreende. "Devo me encorajar a ficar." Ela tem ressalvas – mantenha a cabeça baixa, esteja disposto a fracassar – e não acredita que nenhum artista precisa estar aqui. Se você quer, venha, mas, não importa o que aconteça, faça alguma coisa. Faça aulas. Seja aprendiz. Ou pegue um amigo, arranje um grande espaço em algum lugar barato e faça você mesmo.

E ela não está sozinha nessa opinião. Nenhum dos membros do Circus Amok com quem conversei estava pronto para encorajar seu hipotético eu mais jovem a sair da cidade ainda. Eles veem sinais de esperança em toda parte, do desenvolvimento da "economia solidária" no Brooklyn ao novo comissário do Departamento de Assuntos Culturais apontado pelo prefeito Bill de Blasio. O trabalho deles está enraizado na história de Nova York tanto quanto na história do circo, e o amor que eles sentem pela cidade é evidente em seu trabalho – porque eles continuam, mesmo com pouco dinheiro, ano após ano.

Publicidade

O que coloca a questão: vai haver um circo neste ano? Miller não se compromete nem de um jeito nem de outro, mas suspeito que o circo vai se apresentar de novo. "Às vezes, fico de saco cheio disso tudo", Miller me confessa em certo ponto; mas, alguns segundos depois, ela está me dizendo o quanto tem sorte. "Que benção é trazer essa coisa linda, alegre e significativa de graça para os parques."

É isso que a faz continuar e nos atrai para assistir-lhe. Miller vê esse trabalho como uma benção – não uma benção que ela nos dá, mas uma benção que recebe de nós. É o sentimento de uma artista compulsiva que não consegue deixar de criar o trabalho que ama, e é isso que a torna digna de atenção: criar uma grande arte com um grande significado para uma grande cidade. Enquanto os parques continuarem lotados com públicos ansiosos, suspeito que Jennifer Miller estará lá para encontrá-los, de um jeito ou de outro.

Siga o Hugh Ryan no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor