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Maré Vermelha

​Quem Matou Claudia Rocha? Favela TV e a Resistência Audiovisual no Complexo da Maré

Em tempos de guerra urbana, a realidade é mais estranha que a ficção.

Acima dos tanques de guerra, o sol carioca esquenta os capacetes de ferro dos homens da Força de Pacificação. Conhecidos no Complexo da Maré como "periquitos", eles andam para todos os lados com armas em punho e sem falar muito. Um clima pesado fica no ar quando eles passam, uma sensação constante de que algo ruim vai acontecer.

Soldados do Exército observam o movimento no alto do Morro do Timbau. Foto: Felipe Larozza.

A história que estava na boca de geral era a seguinte: semanas antes, um dos homens do tráfico gritava "Sobe, periquito!" de dentro dum beco no alto do morro enquanto esticava a mão e o fuzil pra fora. Um soldado do Exército não pensou muito e atirou, rasgando as ruas da favela. Os tiros resvalaram nas paredes e deixaram marcas. A zueira no Rio é foda. Mais uma vez, o grito veio lá de cima: "Sobe, periquito!". Outra rajada sai de baixo e, junto, a prova de que as infinitas horas de treino no CPOR local (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), que fica ao lado de uma creche, ensinaram alguma coisa. O traficante perdeu quadro dedos.

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Pixação em um dos becos do Complexo da Maré, que tem seu território ocupado por três facções criminosas, além da PM e das Forças de Pacificação do Exército. Foto: Felipe Larozza.

Estima-se que 300 mil pessoas vivam hoje na Maré. Pessoas que vão ao trabalho, à escola, andam pelas ruas, vão à padaria, voltam do trabalho. A guerra urbana entre traficantes e o Estado vai deixando memórias que não se apagam, já que esses moradores estão pagando o preço.

Na última terça-feira (14), exato dia em que fui embora do Complexo da Maré, a moradora Claudia Rocha foi mais uma vítima. A comerciante morreu dentro de casa ao ser atingida durante um confronto entre membros da Força de Pacificação e criminosos. Ela levou um tiro de fuzil na cabeça. A polícia ainda não sabe quem apertou o gatilho. Claudia é a quarta vítima de bala perdida no Rio de Janeiro em 15 dias.

Diogo Santos no cenário do curta Quem matou Gilberto?. Foto: Felipe Larozza.

Assim que recebi a noticia da morte de Claudia, me lembrei de um cara que conheci dias antes: Diogo Santos, morador da Maré que se define como "um comediante meio desempregado no momento", montou o NA Favela, uma espécie de produtora de vídeos de humor que criticam ou representam de forma muito sagaz os fatos do dia a dia no Complexo.

Lembrei, porque seu filme mais famoso, Quem Matou Gilberto?, conta, através da visão de uma jornalista, a história de um jovem que foi morto em uma troca de tiros: a mesma história de Claudia.

O filme seria rodado na rua principal na mesma época em que um cabo do Exército havia sido morto em um confronto. Todas as ruas estavam fechadas.

Os soldados do Exército foram categóricos: "Não vai gravar bagulho aqui com vocês vestidos de farda. Tá maluco? Tem de pedir autorização".

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Tanques de guerra nas ruas da Maré. Foto: Felipe Larozza.

Diogo voltou desanimado e avisou que não iria rolar de gravar. A galera simplesmente tacou um foda-se e decidiu filmar mesmo assim. "Peguei as fardas de uns amigos que são ex-militares, fizemos as armas de isopor, enrolamos com fita preta, pintamos e fomos gravar. Botamos dois moleques na ponta de cada beco e avisamos: 'Quando o jipe do Exército vier, vocês gritam que a gente se esconde aqui'".

Logo, todos os moradores da rua aderiram ao "protesto" e os figurantes apareceram.

Dizem que estava rolando uma festa em uma das casas no momento da gravação e que 30 pessoas que estavam no rolê foram ao beco participar da filmagem com o simples argumento de que estava sendo gravado um filme para tirar uma onda com os soldados.

O curta chegou a ganhar um prêmio, mas a galera do NA Favela continua sem equipamentos e sem conseguir gravar as infinitas histórias que estão na cabeça.

Diogo nunca estudou teatro, muito menos cinema. Não tem câmera, nem microfone. Tudo é feito na base do "desenrolo".

No dia em que conhecemos, ele "desenrolou" com a VICE: Emprestamos as câmeras e ainda botamos o nosso parceiro Mauricio Fidalgo para figurar em uma nova história que vem por aí.

Renata, Josinaldo, DDD, Diogo e Saulo, que só queria um Guaraviton, conferindo as imagens do novo curta-metragem. Foto: Felipe Larozza.

O novo curta conta a história de uma jornalista que vem até o Complexo para reportar um tiroteio. Ela tenta entrevistar os moradores e é completamente ignorada, ninguém aceita falar.

Na favela, impera a lei do silêncio.

Diogo continua falando e seus filmes seguem sendo feitos com muita ginga e bom humor. Claudias e Gilbertos continuam morrendo e cada vez mais fuzis e menos câmeras chegam na Maré.