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Comida

Comi Reto de Cavalo no Cazaquistão

Com a ajuda do guia de bolso que continha informações e frases úteis, percebi que tinha acabado de consumir "qarta": reto de cavalo cozido e frito, servido sem tempero ou enfeites.

Astana. Todas as fotos por Mark Hay, menos a imagem do reto do cavalo.

Antes que o Cazaquistão ascendesse ao palco global como um jogador rico, ambicioso e modernizador, o país era um dos bastiões mais teimosos do nomadismo no mundo. Hoje, Astana, a capital recém-construída do país, é um lugar repleto de arranha-céus e arte moderna, aparentemente criada com um saco de grana e peças de Lego. Apesar do crescimento raivoso, o Cazaquistão se preocupa em preservar sua herança. Para isso, designers têm criado domas futuristas de 150 metros na forma de alegres tendas nômades; artistas salpicaram as ruas com camelos de pedra, yurts de topiário e esculturas modernistas de arqueiros montados, e tanto chefs como clientes de restaurantes parecem ter um gosto apurado pela cozinha pesada, intrincada e um tanto excessivamente carnívora nômade. Um prato popular em especial — que me foi recomendado por um amigo cazaque antes de minha chegada — é o cavalo.

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Um yurt topiário.

Muito do gosto culinário do país é compartilhado por toda a Ásia Central. Os restaurantes cazaques pegam pesado no beshbarmak (carneiro cozido em caldo de cabeça de ovelha, com macarrão tipo talharim, batata e/ou cebola para acompanhar), assim como muitas comidinhas quirguízes e uzbeques. No entanto, diferente da culinária de outros países da Ásia Central, os cazaques costumam exagerar um pouco na carne de cavalo. Na verdade, isso é um baita eufemismo — eles são o maior consumidor per capita do mundo e os terceiros em produção, atrás somente da China e do México. Logo, ansioso para ver o que os chefs da nação tinham para me oferecer, entrei num restaurante chique no centro e pedi o qazy: uma linguiça de intestino feita não de miúdos, mas da melhor costela de cavalo, cortada em fatias finas e servida acompanhada de misteriosos anéis brancos de carne.

Qazt e qarta. Imagem via.

O qazy desceu bem. Um pouco duro e seco — como já era de se esperar de um animal de carga — mas ainda assim rico, um pouco farinhento e com um ligeiro gosto defumado. Depois de devorar o prato principal, fiquei com os misteriosos aneizinhos carnudos. Em vez de perguntar ao garçom o que era aquilo em meu prato, analisar bem as possibilidades ou mesmo (e, em retrospecto, isso teria sido prático) dar uma boa cheirada naquilo, joguei um dos anéis na boca despreocupadamente. Aquilo tinha o gosto exato do cheiro de um pasto. Depois de um minuto, o cheiro terroso de feno em decomposição tinha se infiltrado em minhas narinas. Primeiro, achei que estava tendo um derrame. Depois, com a ajuda do guia de bolso que continha informações e frases úteis, percebi que tinha acabado de consumir qarta: reto de cavalo cozido e frito, servido sem tempero ou enfeites.

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Como muitas tradições da culinária nômade, a comida cazaque usa todas as partes do cavalo. Além da qarta, o cardápio de muitos dos restaurantes modernos cazaques contém zhal (banha de pescoço de cavalo defumada) e quyrdak (uma mistura de coração, fígado e rins de cavalo, ovelha e vaca, além de diversos outros miúdos). Mas reto sem tempero ainda é algo raro neste mundo. Um dos poucos exemplos conhecidos (graças a Anthony Bourdain, http://www.vice.com/pt_br/munchies/anthony-bourdain — o atleta da comida chocante) é o ânus de javali cozido no carvão da Namíbia.

Pulmões de ovelha, servidos crus, no Mercado Osh.

Há uma tendência popular em ver pratos assim — especialmente em casos tão extremos — como filhos bastardos da necessidade. Eles seriam um exercício de eficiência primal, uma expressão de frugalidade e o resultado de certa pobreza. Talvez haja um grão de verdade nessa visão, mas, na maior parte, é só uma besteira derivada de uma intuição irracional: o reflexo do vômito. O fato é que muita gente no Cazaquistão está a uma ou mais gerações afastada das circunstâncias nômades; muitos cazaques são incrivelmente ricos e, ainda assim, são conhecidos por seu amor pelos miúdos — especialmente o qarta. E não por uma simples obrigação cultural, mas porque há alguma coisa — que vim a entender após meu choque inicial — especial, única e apreciável em comer um reto.

Antes de chegarmos às qualidades literais do reto de cavalo, vamos ser dolorosamente claros acerca do que estamos falando. O reto de cavalo não é o tecido muscular do ânus propriamente, como você encontra no dalkttongjip (esfíncter de frango frito e temperado) coreano. E também não é equivalente ao esponjoso chitterling (feito de pequenos intestinos) da cozinha norte-americana. O qarta consiste nos últimos centímetros do trato intestinal, diretamente anterior ao esfíncter muscular. É um segmento particularmente grande e complexo, com camadas de tecido forte por fora e gradações de membrana mucosa macia e massa gorda por dentro.

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A proveniência comum das tripas do qarta e do chitterling, ou seja, de dentro do trato intestinal, leva a problemas similares com cheiro ou gosto de fezes. No chitterling, esse problema em geral é resolvido por meio de rodadas criteriosas de branqueamento, seguidas por fritura no óleo (o que, como o This American Life provou recentemente, é uma ótima maneira de esconder os sabores mais difíceis do ânus do porco). Mas, no caso do qarta, eles simplesmente lavam o reto sem remover a gordura, virando ele do avesso para esfregar o interior. Apesar de os cozinheiros terem a opção de defumar o reto por 24 horas e/ou secar o reto por mais 48, muitos simplesmente fervem o tecido em fogo baixo por duas horas, cortam em rodelas, cozinham com caldo de carne por meia hora e o servem acompanhado de sal, pimenta verde e endro. Acredite em mim, esse processo curto de limpeza e cozimento não disfarça muito a questão do gosto do tecido, inerente a vários pratos intestinais. Mas Alma Kunanbaeva, antropóloga da cozinha nômade na Universidade de Stanford, é expressamente contra cozinhar o reto em excesso.

Linguiças de carne de cavalo.

Parcialmente explicada a questão do gosto, Kunanbaeva salienta que o qarta era originalmente degustado em combinação com o qazy, da maneira como primeiro consumi o prato (apesar de, preferivelmente, não sozinho e no final da refeição). No entanto, Kunanbaeva explica: “a influência europeia de se ter aperitivos, especialmente junto com álcool [a vodca se tornou muito popular sob o domínio czarista e soviético], transformou o qazy e o qarta em porções separadas”.

Mesmo fora de seu contexto emparelhado original, o qarta retém algum poder e se sobressai não por seu gosto, mas por sua textura, quando preparado com esmero. É um prato que necessita de tempo e esforço, já que, idealmente, a carne deve vir de um cavalo jovem, imediatamente depois do abate, e deve ser idiossincraticamente cozida para garantir que não fique muito dura. Mas, quando executada apropriadamente, essa estrutura do reto, as camadas de tecido macio e duro de gordura densa variada, é o que Kunanbaeva acredita tornar o prato irresistível: “A combinação do interior crocante, do meio mais borrachoso e o modo como isso derrete na boca” é o que funciona para muitas pessoas.

O mercado de carne de Almaty.

Apreciar a comida pela textura em vez do sabor é algo para o qual meu paladar ainda não está bem treinado. Mas o gosto da gordura derretida e do tecido muscular frito crocante, com apenas um toque leve de especiarias, jogado contra aquele fundo de pastagem, força uma concentração e apreciação que em geral não experimentamos em carnes. No entanto, está cada vez mais difícil encontrar um bom qarta. Em muitos lugares, as restrições à carne de cavalo — como a proibição do abate, exportação e venda para consumo humano na Califórnia em 1998 — mataram a culinária baseada em cavalo. Outras pessoas têm preocupações de saúde sobre intestinos. Mas mesmo em países sem esses melindres, Kunanbaeva adverte que “a obsessão moderna pela segurança dos alimentos muda o paladar… [os cazaques] estão cozinhando o qarta até a morte, tentando alcançar a proteína despedaçada da carne ressecada e cozida em excesso a que eles estavam acostumados”. O resultado é tosco e decepcionante. Ainda assim, se o prato não lhe parece visceral demais ou se você não tem aversão ao odor específico de pasto, e se você procura superar o gosto e aprender a apreciar a sensação do alimento na boca, peça reto de cavalo.