Como é Ser um Abutre da Vida Real

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Como é Ser um Abutre da Vida Real

Acidentes brutais, muitas horas e pouco sono. Muito poucos fotojornalistas querem fazer o que Victor Biro faz na maioria das noites.

Victor Biro. Fotos por Jake Kivanc.

Chuva pesada batia no para-brisa da minivan de Victor Biro enquanto estávamos num estacionamento perto da Yonge-Dundas Square, Toronto. Os outdoors de LED piscando à distância pintavam a água escorrendo pelo para-brisa em várias cores à medida que seu scanner do rádio dos paramédicos e bombeiros interrompia nossa conversa.

"Chegamos à cena, e há uma mulher", um paramédico dizia pelo rádio. "Ela está SVA."

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"SVA significa 'sinais vitais ausentes'", explicou Biro depois de colocar o cinto de segurança e girar a chave na ignição. "Pode ser alguma coisa, pode não ser nada. A gente nunca sabe."

Biro é o que as pessoas chamam de "nightcrawler", um fotojornalista que roda a cidade depois do anoitecer ouvindo as chamadas de rádio da polícia ou dos bombeiros, tentando chegar a cenas de crimes e acidentes o mais rápido possível a fim de tirar fotos que ele possa vender para meios de notícias. Ele me contou que o apelido, que se popularizou pelo filme de Jake Gyllenhaal de mesmo nome [O Abutre, em português], não representa o que ele faz.

"Não sou um sociopata. Isso não tem a ver com vaidade ou sensacionalismo", ele me disse, jogando seu cigarro pela janela. "Essas são questões que afetam as políticas sociais e a percepção do público. Alguns caras fazem isso só pela adrenalina, mas muita gente, não."

Daily VICE, 21 de novembro.

Do Toronto Star ao Metro, do National Post ao Sun, as fotos de Biro de acidentes de carro, cenas de crime e perturbações noturnas da ordem aparecem nas primeiras páginas de jornais e sites de notícia de Toronto há cinco anos. Algumas de suas imagens mostram os restos distorcidos de veículos envolvidos em acidentes fatais; outras, a fita de segurança iluminada pela luz vermelha e azul dos carros da polícia numa cena de tiroteio.

Até 2008, Biro trabalhava na indústria de telecomunicações. Apesar de adorar câmeras desde criança, ele colocou sua paixão por fotografia de lado depois de entrar no mundo lucrativo de vendas na área. Em seu auge na indústria, Biro fazia muito dinheiro – acima de seis dígitos, ele me relatou –, porém o trabalho não o deixava satisfeito.

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"Não era o que eu queria fazer", ele comentou. "Eu não estava contribuindo com nada que eu achasse significativo para a sociedade e não estava gostando do que estava fazendo. Claro, o dinheiro era bom, mas eu não estava sendo verdadeiro comigo mesmo."

Biro aprendeu a usar scanners de rádio como parte de seu trabalho no setor de telecomunicações. Quando ouviu falar sobre fotojornalistas tentando acompanhar os primeiros a responder a chamados de emergência usando o mesmo tipo de ferramenta com que ele estava tão familiarizado, ele revela ter sentido a necessidade de tentar também. Depois de alguns meses aparecendo em cenas aleatórias com sua câmera – que ele comprou através de um anúncio no quadro de avisos de seu escritório –, Biro começou a fazer contato com os jornalistas e aprender as manhas da perseguição de notícias na madrugada. Coisas como prever e julgar a gravidade de uma chamada pela urgência da voz do telefonista ou não ficar tempo demais numa cena quando não há mais nada para conseguir são apenas algumas das coisas que ele absorveu trabalhando com esses profissionais. Em 2010, ele decidiu fazer isso em tempo integral.

Agora com 50 anos, Biro reconhece e aceita a troca de seu emprego bem pago de colarinho branco pela arte brutal do jornalismo freelancer noturno, sacrificando uma casa grande e um carro novo por longas horas de trabalho e pouca grana. Na média, ele faz de US$ 50 a US$ 200 por foto, dependendo da publicação e de isso chegar a ser impresso no jornal ou ficar apenas online. No entanto, em algumas noites – muitas noites –, nada acontece, e ele não tem nenhuma foto para vender.

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"Com a gasolina, todo o tempo gasto e o custo dos equipamentos, você está basicamente no negativo toda noite a menos que encontre algo realmente grande", ele frisou. "Ninguém entra nisso pelo dinheiro. Só se for idiota."

Biro me pegou por volta das 22 horas. Ele geralmente termina sua noite por volta das 3 ou 4 da manhã, dependendo do movimento no scanner. Seu trabalho é ficar sentado em zonas da cidade que ele descreve como de grande acesso – lugares perto de onde a ação tende a acontecer ou próximos das principais artérias urbanas –, esperando seu scanner se acender com algo que chame sua atenção.

Às vezes, isso significa ficar sentado por horas em seu carro sem nada para fazer a não ser beber café, fumar e acompanhar os tuítes da polícia de Toronto. Outras vezes, ele pode responder a duas, três, até quatro chamadas numa noite, correndo de cena em cena junto com meia dúzia de outros jornalistas e equipes de filmagem.

Quando estamos chegando ao local do acidente com SVA, Biro me conta que vamos desistir da chamada. Ele diz que, considerando a falta de conversa e mais detalhes no rádio, isso provavelmente foi apenas uma queda ou um ataque cardíaco. Conferindo a rua por cima do ombro e girando rapidamente o volante, Biro dá meia-volta no Ford em direção ao centro da cidade.

Isso já tinha acontecido antes e iria acontecer de novo: alarmes falsos, acidentes não fatais e qualquer coisa que não vá virar notícia é perseguição inútil para Biro. Por mais que quisesse fotografar tudo, ele aponta que há sempre uma história para contar no final do dia.

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"Você tem de pensar na imagem maior sobre a narrativa que está tentando passar. Posso não estar escrevendo a matéria, mas essas fotos precisam acompanhar o que é escrito, e, se não há nada para acompanhar, ninguém vai comprá-las."

Um dos principais desafios de Biro no último ano tem sido o silenciamento dos scanners da polícia. Desde 2014, a Polícia de Toronto e a dos municípios em volta vêm trocando suas frequências de rádio por comunicação digital criptografada. São duas razões para a mudança. Primeiro, eles não querem criminosos ouvindo suas comunicações e antecipando seus movimentos. Segundo, eles não acham que jornalistas têm o mesmo direito que os policiais de saber o que está acontecendo. Isso segundo Mark Pugash, diretor de comunicação do Serviço de Polícia de Toronto, com quem falei no começo do ano para uma matéria do Canadaland.

"Há informações [nos scanners] sobre prisões, mandados sendo executados, detalhes pessoais, e achamos importante que essas informações continuem confidenciais", ele me disse durante uma entrevista por telefone. "Nossa principal preocupação é a segurança da informação. Temos situações em que a mídia chega à cena antes da polícia, e isso interfere com a segurança dos oficiais e das pessoas em volta."

Quando acompanhei Biro pela primeira vez em julho, ele contava somente com as transmissões de rádio dos paramédicos e bombeiros para caçar as notícias. O mecanismo que deveria fazer a ponte entre polícia e jornalistas – a conta no Twitter Operações do Serviço de Polícia de Toronto (TPSO, em inglês) – não era tão usado e geralmente não fornecia atualizações sobre as operações da polícia em tempo real.

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Nos cinco meses seguintes, as coisas mudaram significativamente. Agora, o TPSO tuíta mais regularmente – uma grande melhora se for comparada aos hábitos antigos, que muitas vezes deixavam os jornalistas no escuro por seis ou sete horas sobre certas notícias –, mas outros impedimentos surgiram. Um exemplo é como os bombeiros são menos ativos no rádio depois da implementação de terminais de dados móveis, o que permite ao serviço de bombeiros comunicar detalhes específicos num sistema particular, usando o rádio apenas para contatar os paramédicos. Isso dificultou ainda mais o serviço de Biro.

Sem contatos confiáveis nos serviços de emergência – cujos funcionários preferem ficar de boca fechada para manter o emprego –, ele tem de ligar informações dos tuítes vagos da Polícia de Toronto, que geralmente dão a localização aproximada em vez de o endereço exato; trechos de comunicação entre os bombeiros e os paramédicos; e o que ele ouve de outros repórteres pelo rádio. No final das contas, Biro consegue menos cenas e chega a elas depois do que costumava.

Quando esse fotojornalista consegue juntar informação suficiente para identificar uma localização e chegar à cena, não há garantia de que o caso seja quente o suficiente para ser comprado pelas publicações. No caso de tiroteios envolvendo a polícia – como o de Andrew Loku, no começo do ano –, a Unidade de Investigações Especiais tem a prerrogativa de invocar um mandado que impede a polícia de dar detalhes sobre um crime. Isso não só impede tuítes sobre um incidente até que seja tarde demais mas também evita que Biro consiga fotos válidas para as publicações. Em última análise, ele me diz que essa é uma prática cansativa, que exige muita paciência, tempo e, principalmente, sorte.

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Em certo momento em julho, Biro e eu chegamos a uma pequena batida em Etobicoke. Um cinegrafista de um canal de TV nacional, com quem ele falou para conseguir o endereço exato do acidente, tinha chegado antes de nós e já estava filmando. Com uma câmera grande na mão e um DSLR pendurada no ombro, Biro circulou a cena e tirou fotos com precisão. Uma foto da polícia, do caminhão dos bombeiros e do carro, e outra para capturar a cena toda.

Quando voltamos para o carro, ele passou as fotos para seu computador e abriu um software de edição. Biro melhorou a iluminação para deixar as coisas um pouco mais visíveis, porém não tocou em mais nada. Depois, jogou tudo na lixeira. Quando perguntei o porquê, ele respondeu que aquilo não tinha chance de ser publicado, mas estava otimista de que conseguiríamos mais alguma coisa.

Às vezes, esse otimismo compensa. Quando ouviu chamados pelo rádio falando sobre um motorista que estava dirigindo na contramão da Highway 427 em agosto, ele não tinha muita certeza se isso era um incidente sério, já que não é raro as pessoas errarem as rampas de acesso na região à noite, percebendo o engano logo depois e dando meia-volta. Só que dessa vez foi diferente. As chamadas não pararam.

"Nesse caso, as várias chamadas vinham de cruzamentos diferentes", me disse Biro. "Foi quando eu soube que aquilo não era uma ocorrência normal."

O motorista acabou batendo de frente com um veículo que entrava na Highway 427 vindo da QEW, destruindo uma van onde estavam mãe, pai e a filha de 16 anos. A mãe e o motorista do outro carro sofreram ferimentos graves e foram levados para o hospital, mas o pai e a filha morreram na hora.

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Biro e alguns outros jornalistas chegaram à cena quando o pai e a filha estavam sendo retirados do carro pelo pessoal da emergência. Ele tirou fotos dos corpos sendo liberados das ferragens, da área do impacto e dos investigadores forenses chegando à cena. É uma experiência que ele tem frequentemente, o que não quer dizer que ele já esteja acostumado.

"Foi muito triste", ele frisou. "Você sabia que isso não ia terminar bem só de ver o estado do carro. Foi bem feio… já chorei fazendo esse trabalho."

O fotojornalista também me contou que perdeu várias oportunidades. Um dia antes da batida de frente, aconteceu o infame tiroteio no clube noturno Muzik, em Toronto. Biro, sem pegar nada nos scanners por horas, já tinha dado a noite por encerrada. Ele estava longe da cena quando tudo aconteceu, e isso o consumiu por vários dias depois.

Quando perguntei se ele pretendia continuar fazendo isso – com todo o sono irregular, pouco dinheiro e os acidentes horríveis –, Biro admitiu para mim que, por mais que ele ame isso, a atividade está se tornando uma ideia difícil de justificar.

"Acho que isso não vai durar muito mais – para ninguém, não só para mim. Há muitas restrições, pouca informação, pouco mercado para o estamos fazendo. É importante trabalhar e torcer para que as coisas não precisem ser assim."

"Enquanto as chamadas continuarem, vou estar lá sempre que conseguir. Quando tempo isso ainda vai durar, não tenho certeza."

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Tradução: Marina Schnoor.

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