Ta-Nehisi Coates fala sobre 'Pantera Negra' e criar um quadrinho que reflita a experiência negra

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Ta-Nehisi Coates fala sobre 'Pantera Negra' e criar um quadrinho que reflita a experiência negra

Falamos com o aclamado jornalista a autor sobre como ele transformou 'Pantera Negra' num reflexo arrasador do mundo de hoje.

Ilustração por Armando Veve .

Algumas combinações fazem sentido logo de cara. O anúncio de que Ta-Nahisi Coates vai escrever os quadrinhos do Pantera Negra para a Marvel foi uma delas. Para os leitores do trabalho de Coates na Atlantic, onde ele é colunista, ou só no Twitter, esse parece um desenvolvimento natural, quase mágico. Quadrinhos aparecem por toda parte no discurso dele – mas não é isso que torna essa notícia mágica. É quem Coates é e quem o Pantera Negra é também.

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Ta-Nehisi Coates não é apenas um fã de quadrinhos, mas um dos principais escritores abordando negritude e antinegritude nos EUA. Enquanto isso, Pantera Negra não é apenas o rei de Wakanda, uma nação africana afrofuturista, mas também o primeiro super-herói negro a aparecer nos quadrinhos do mainstream norte-americano. É até difícil pensar numa união mais perfeita, e os revendedores se animaram preparando as prateleiras para o lançamento.

Dito isso, essa união veio num momento turbulento para os quadrinhos e os EUA, quando grupos marginalizados estão pressionando com força e raiva visíveis, do Black Lives Matter ao #OscarSoWhite. Alguns podem apontar para as tentativas da Marvel de representar a negritude nas páginas, mas Coates continua um dos únicos roteiristas negros trabalhando para a companhia, que recebeu críticas ano passado pelo modo como lida com questões negras.

Com esse fundo de excitação, mágica é críticas, liguei para Coates para discutir seu trabalho em Pantera Negra, escrever sobre a experiência afro-americana, sua opinião sobre as controvérsias e se podemos esperar ver T'Challa num protesto do Black Lives Matter.

VICE: Seu livro mais recente, Between the World and Me, abre de um jeito que, para mim, é muito importante. Ele começa com a palavra "filho". O público é seu filho, um jovem negro. Se o público branco escolher ouvir, ele pode, mas você deixa claro logo no começo: Isso foi escrito sem pensar nele. Tenho que admitir: na verdade eu me esquivava de ler seu trabalho até esse livro. Eu sabia que você não estava escrevendo para o público branco, mas ainda achava que seu trabalho não era "para mim" – considerando sua plataforma mainstream, eu achava que você não estava escrevendo nada que eu, uma mulher negra, não soubesse. Eu costumava acreditar que me desafiar era o único caminho, mas desde então aprendi meus limites. Aprendi que às vezes, preciso de afirmação. Então tenho uma pergunta sobre o público que provavelmente vai soar mais polarizada do que eu gostaria: Pantera Negra é para nós? Ou foi feito com o público branco em mente?
Ta-Nehisi Coates: [ Risos] Essa é uma ótima pergunta. Sabe, aprendi alguma coisa com Between the World and Me. Acho que era algo que eu já sabia e provavelmente deveria seguir sempre: Você consegue o universal através do específico.

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Sou negro. Sou de West Baltimore. Vivi em comunidades negras minha vida inteira; essa é a experiência que conheço. Não consigo evitar de me basear nisso. É parte de mim, mas acho que há uma noção de que escrever sobre a experiência afro-americana significa necessariamente que mais ninguém vai querer ver isso – essa provavelmente é uma dicotomia falsa. Então eu diria: "Sim, é 'para nós'", mas no curso de ser "para nós", isso se torna para todo mundo.

"Temos um beijo entre duas mulheres na primeira edição, e eu escrevi para o Brian: 'Não pode ser como um pornô softcore. Tem que ser carinhoso. Tem que ser lindo. Tem que ser humano'. Tivemos que falar sobre como isso pareceria para as mulheres, não como pareceria para nós."

Você pode pegar Zora Neale Hurston em Their Eyes Were Watching God como exemplo. Ele foi escrito firmemente baseado na experiência negra, mas não acho que tem nada naquele livro – e acho que o tempo prova isso – que impeça pessoas não negras de lê-lo, de gostar dele, de inalá-lo. Tive sorte de assistir Creed: Nascido Para Lutar de Ryan Coogler algumas semanas atrás – ele vai dirigir o filme do Pantera Negra – e Creed é um filme profundamente enraizado na experiência afro-americana. E é claramente um filme norte-americano.

Então acho que não reconheço essa dicotomia. Acho que escrevemos com base nas nossas experiências se escrevemos direito. Se estamos escrevendo com qualquer outra coisa, não estamos sendo verdadeiros.

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Uma página de 'Pantera Negra' #1, roteiro por Ta-Nehisi e arte por Brian Stelfreeze. Cortesia da Marvel Comics.

É preciso muito cuidado quando retratando corpos negros – nossos corpos são políticos e como são usados, visualmente, tem tido um papel que pode ser de vida e morte na nossa realidade. Você pode falar um pouco mais sobre o seu processo de desenvolvimento com o artista Brian Stelfreeze?
Talvez eu tenha sido muito confiante nisso, mas não estava muito preocupado com os corpos dos caras negros. Senti que eu estava num terreno muito melhor que isso.

Em vez disso, falamos muito – eu, o Brian e nosso editor Will Moss – sobre as coisas que tínhamos que fazer sendo três homens trabalhando nisso. Quatro, incluindo nosso editor associado, Chris Robinson. (Temos uma mulher na nossa equipe criativa, a colorista Laura Martin.) Havia um ângulo com que lidar, por falta de palavras melhores, sobre as questões feministas nesse quadrinho. Eu queria ter muito, muito cuidado com o retrato dos corpos das mulheres por causa de onde a narrativa estava indo. Eu não queria ter mulheres no centro da minha história, as ter num papel de liderança, e ter um retrato delas, bom, problemático.

Eu só queria ter certeza que estávamos retratando as pessoas do jeito certo. Não apenas em imagens, mas mesmo no modo como escrevo. Temos um beijo entre duas mulheres na primeira edição, e eu escrevi para o Brian: "Não pode ser como um pornô softcore. Tem que ser carinhoso. Tem que ser lindo. Tem que ser humano". Muitos caras vão ler esse livro com um olhar masculino, tipo "Ah, duas mulheres beijando!" e tivemos que falar sobre isso: como isso pareceria para as mulheres, não como pareceria para nós.

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"Minhas políticas são minhas políticas. Você provavelmente não verá T'Challa num protesto do Black Lives Matter. Isso não quer dizer que o Black Lives Matter não é importante, mas não está no topo aqui."

Na primeira edição, mulheres e a experiência queer estão no centro da narrativa se desdobrando. Isso é um alívio, considerando como essas coisas são deixadas de fora da equação em todos os frontes, mas especialmente porque a representação queer na Marvel foi questionada recentemente . Você pode falar um pouco sobre essa escolha?
Lembro de uma conversa que tive com Axel. Axel é fã do Dora Milaje – o time de guarda-costas formado só por mulheres do Pantera Negra – e eu não era um fã inicialmente. Mas quanto mais lia, mais eu gostava delas. Mas sendo franco, alguma coisa na origem delas me incomodava quando eu pensava no mundo real. As Dora Milaje são criadas para serem guarda-costas do Pantera Negra, do rei de Wakanda, mas segundo algumas rendições, elas também são criadas para se tornar esposas dele. E quando você escreve histórias, você tenta tirar coisas da vida real, certo? Você pensa "OK, vamos trazer isso o mais perto possível da realidade. Mesmo reconhecendo que é uma história em quadrinhos, como seria? O que isso significaria?". Considerando o que sei sobre os homens no mundo real e o que sei sobre homens historicamente, essa é uma situação muito propícia ao abuso. Então me ocorreu que algumas das Dora Milaje podiam ter problemas com isso também.

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Às vezes as pessoas estão dispostas a ceder partes de si ou seu desejo de ter certos direitos se você dá segurança a elas. Mas todo esse caos aconteceu em Wakanda; apesar de terem dito que esse lugar nunca seria conquistado, Wakanda não parece ter a segurança que prometia. O rei falhou nisso.

Então você pode ter duas pessoas que se amam, mas nunca puderam mostrar abertamente essa relação, mas que dizem "OK, aceito essa perda pelo meu país". Mas o que acontece quando elas não têm mais seu país?

Então, sim, pensei nisso do ponto de vista da narrativa. Claro, a política está no fundo, e não estou dizendo que política é alienada aqui. Mas eu não estava pensando "Vou fazer uma declaração", sabe? Eu estava tentando imaginar uma sociedade o mais completa possível.

Essa é a questão da representação, certo? Refletindo corretamente o mundo em que vivemos, você acaba fazendo isso de qualquer jeito.
Sim, você não pode escapar disso. Um dos grandes argumentos em favor da diversidade e representações diversas é que quando você não faz essa representação, você não está realmente refletindo o mundo. Representação tem um impacto na narrativa. Não é apenas uma questão de justiça social – na verdade é uma questão de boa narrativa.

Uma página de 'Pantera Negra' #1, roteiro por Ta-Nahisi Coates e arte por Brian Stelfreeze. Cortesia da Marvel Comics.

Eu queria mesmo falar sobre o trabalho com a Marvel aqui, porque eles foram criticados ano passado por seu histórico de contratação de criadores negros , sua apropriação do hip hop em capas alternativas e por ignorar críticas negras no geral. Como essas polêmicas impactaram sua decisão de trabalhar com eles?
Não impactaram. Quer dizer, adorei as capas de hip hop! Estou te dizendo isso sentado num escritório da Marvel, mas sou eu falando.

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Você tem que entender – e, na verdade, já escrevi sobre isso antes de ser contratado pela Marvel – nasci nos anos 70 e cresci nos 80. A Marvel era um dos poucos lugares onde você podia ver heróis negros. Eles não estavam na TV ou nos filmes, mas estavam nos quadrinhos da Marvel e estranhamente (ou talvez haja uma sinergia aqui) no hip hop.

Foi na Marvel que vi Rhodey. Foi na Marvel que eu vi a Tempestade. A Marvel tinha Luke Cage – mesmo com o retrato problemático dele na época. Na Marvel vi Misty Knight. Eram pessoas negras. Essa foi minha experiência. Você pode continuar batendo na mesma tecla de como esses caras eram retratados e ter críticas sobre isso, mas eles também não existiam em nenhum outro lugar. Essa não era uma conversa na época, digamos, no horário nobre da TV. Isso nem chegava ao nível de "como esses caras estão sendo retratados?", porque eles não estavam lá. Para mim, em termos de diversidade, a Marvel era um dos pontos altos.

Quando era garoto, eu tinha quadrinhos e hip hop. E quem sabe alguma coisa de hip hop sabe que o gênero emprestou muito dos quadrinhos por anos – especificamente da Marvel. Qualquer um que já ouviu um disco do MF Doom sabe que ele está sampleando dos desenhos da Marvel. E isso sem falar no Wu Tang, com Ghostface Killah se chamando de Tony Stark, Homem de Ferro e tudo mais.

Entendo por que as pessoas podem não ter gostado de ver uma corporação usando isso para vender suas coisas, mas para mim pareceu uma coisa natural. Não achei bizarro ou estranho. Me pareceu bem apropriado. Mas, claro, por trás disso tem a questão "Bom, a Marvel está fazendo isso, mas como é a equipe de criadores deles é?"

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Sou parte de outra organização, a Atlantic, de maneira muito mais profunda, e tenho que te dizer: Todos lutamos com isso. Comparando quem está escrevendo e desenhando para a Marvel com quem está escrevendo e editando a Atlantic, não sei se é muito melhor. O que não quer dizer que isso é OK. Mas é uma luta bem maior, acho.

"Representação tem um impacto na narrativa. Não é apenas uma questão de justiça social – na verdade é uma questão de boa narrativa."

Estou curiosa, considerando sua base jornalística e de crítica, como é tirar a teoria do seu trabalho e colocá-la em prática na narração com o dever adicional de entreter?
No jornalismo, a narrativa está sempre ali. Tem sempre uma narrativa. Tem sempre uma história, mas, claro, o ponto político onde você está tentando chegar é muito mais central. Mas quando você está escrevendo ficção, a política tem que ficar um pouco de lado. Não vou sair do meu caminho para mostrar X, Y e Z – a discussão está misturada à prosa. Primeiro e principalmente, quero escrever um quadrinho empolgante e profundamente envolvente. Minhas políticas são minhas políticas. Você provavelmente não verá T'Challa num protesto do Black Lives Matter. Isso não quer dizer que o Black Lives Matter não é importante, mas não está no topo aqui. Estou tentando contar uma boa história. Essa tem que ser a coisa mais importante.

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Tradução: Marina Schnoor

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