O Mundo Adormecido das Pessoas com Alzheimer
​"Dona Olga*, dá um sorrisão para a câmera!" Crédito: Guilherme Santana/VICE

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O Mundo Adormecido das Pessoas com Alzheimer

A doença de Alzheimer atinge pessoas idosas, podendo raramente acontecer em pessoas jovens. É uma doença multifatorial, sem cura e ladra de lembranças.

Seguindo a rodovia Raposo Tavares para os lados de Granja Viana, em São Paulo, existe uma casa conhecida como ​Toca das Horttênsias, no meio de uma estradinha de terra, chamada Rua Patriarca, cujos moradores são portadores de uma doença degenerativa. Dona Ângela* quase não fala, mas, quando se comunica, gosta de responder em francês ou em inglês. Ela gosta de ver vestidos bonitos em revistas e guarda muitas fotografias de viagens em cima de uma cômoda que herdou da família.

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Ela não se lembra dos rostos presentes nas fotografias. Nem mesmo do rosto do marido, já falecido, sorridente num grande retrato do dia do casamento em cima da sua cama. São histórias que ficaram para trás.

Ela vive lá exatamente por causa dessa falha na memória. A doença degenerativa dos hóspedes é amplamente conhecida como Mal de Alzheimer. Além dela, atualmente, a Toca cuida de mais três pessoas nessas condições: Seu Raimundo, Dona Eugênia e Dona Olga.

A Toca das Horttênsias, um lar de pessoas com Alzheimer no meio de uma estradinha de terra. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Dona Eugênia é a menos comunicativa e não quis conversar conosco quando chegamos – preferiu tirar um cochilo na poltrona da sala. Seu Raimundo estava vendo carros nas páginas de uma revista que segurava nas mãos. Também quase não quis conversar, somente nos cumprimentou, mas posou alegremente para o fotógrafo.

Dona Olga, ao contrário dos colegas, ficou muito alegre de receber visitas. "Tenho tanta coisa para contar", ela disse abrindo um grande sorriso para a câmera. "Fiquei bonita?", perguntou sem nem piscar enquanto posava para a foto. Tanto ela quanto dona Ângela são mulheres ainda bastante vaidosas – estavam de unhas pintadas. A cuidadora Cida disse que foi a própria dona Ângela que escolheu a cor de seu esmalte. Dona Olga ficou muito empolgada com a cor do meu batom: "Vou pintar igualzinho amanhã, para um domingo de festa".

As mulheres da Toca são vaidosas. A própria dona Ângela escolheu a cor de seu esmalte. Crédito: Guilherme Santana/VICE

"Toquei piano há muito tempo, sempre gostei de violino", foi uma das coisas que ela nos contou. Perguntou várias vezes de onde viemos e para onde íamos depois de tomar um cafezinho em sua companhia. Ela se lembrava do bairro de Moema e também contou que fez teatro na escola. Também lembrava de algumas partes ruins de ser mulher "quando tem essa menopausa aí é uma desgraça", disse ela, fazendo todos rirem.​

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Nossa conversa foi feita desses flashes de memória e curtos momentos de lucidez. Assim é uma conversa com alguém que tem Alzheimer. A Toca existe há 22 anos e é uma das poucas casas especializadas em cuidar de pessoas com essa doença. A diretora do local, Lilian Alicke, se aposentou em 1992 e achou que seria bom alugar os quartos restantes da grande casa na Granja Viana para pessoas que precisassem. Com a dica da terapeuta Maria Auxiliadora Cursino Ferrari, da faculdade de terapia ocupacional da USP, começou a receber esse tipo de paciente. A única condição que ela exige da família que deseja levar um ente para lá é que faça visitas uma vez por semana. "Eles de vez em quando ficam deprimidos quando a família não vem, mesmo quando eles não ficam muito lúcidos", ela conta.

A casa já chegou a receber 16 pessoas simultaneamente. Uma equipe de cuidadores, enfermeiros, auxiliares e terapeutas lida com as crises e as graças de cada um desses idosos. O ambiente é decorado pensando em uma casa familiar, com livros em estantes, muitos quadros e poltronas confortáveis, além dos banheiros que são todos adaptados para eles. Lilian pede para os familiares enviarem objetos de valores sentimentais para que cada um guarde algum resquício de lembrança da vida que passou. "Não é que eles não lembram, eles sabem que estão na frente de alguém querido, emocionalmente a pessoa se relaciona, ela estende a mão, sorri", ela conta. O toque e o olho no olho são muito importantes no cuidado de alguém com Alzheimer.

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Lilian Alicke é fundadora e administradora da Toca das Horttênsias e acredita que a casa tem essa missão específica. Crédito: Guilherme Santana/VICE

O grupo presente hoje na casa quase não dá trabalho para dona Lilian. Apenas seu Raimundo deu dor de cabeça quando chegou. "À medida que a pessoa vai sentindo confiança, vai vendo que a gente não vai ser agressivo, que a gente entende tudo que ele faz, que ele pode dizer mil vezes uma coisa que a gente concorda, então tudo isso vai ajudando", diz. Ela explica que a chave para o cuidado é ter paciência e compreender muito bem o que está acontecendo, uma vez que o próprio paciente não entende muito bem o que rola ao seu redor. Inclusive por essa falha, não existe muita rotina dentro da casa, as refeições seguem o ritmo dos moradores. São feitas seis refeições por dia e atividades são programadas de acordo com a vontade que eles apresentam de fazer alguma coisa.

Dona Lilian disse que uma das atividades mais animadas é a musicoterapia, que acontece duas vezes por mês. "Alguns até dançam, eles gostam de músicas dos anos 70, 80, MPB das antigas, Roberto Carlos."

A terapeuta ocupacional, doutora Maria Helena Morgani de Almeida, da faculdade de medicina da USP, diz que esse tipo de atividade é muito importante de ser estimulada em pessoas com Alzheimer. "Com base na história do paciente, é feita uma análise das atividades que são significativas para o paciente e elas são adaptadas para que elas estejam ao alcance da pessoa realizar e elas acabam sendo um exercício pra que ele mantenha as capacidades pelo maior tempo possível", diz a doutora.

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Seu Raimundo foi caminhoneiro e gosta de ver carros em revistas. Ele ainda lembra seu nome completo. Crédito: Guilherme Santana/VICE

A terapia ocupacional também auxilia muito o trabalho dos cuidadores, "para que eles possam exercer essa função com menos desgaste e menos sobrecarga possível", afirma a doutora Maria Helena.

Cida, Renato e Rose são os cuidadores que estavam presentes na tarde de segunda-feira em que visitamos a Toca. Cida já tem 20 anos de casa, sempre cuidou de pessoas com Alzheimer. "É divertido, eles são divertidos. Eu não sei fazer outra coisa, só cuidar deles", diz ela. Rose e Renato começaram a cuidar de pessoas com a doença porque cuidaram de familiares que já se foram. Renato tem apenas sete meses de experiência na Toca e cursa enfermagem, "por enquanto não achei nenhuma dificuldade ainda [em cuidar], mas sempre a gente aprende coisa nova". Rose trabalha lá há oito anos e não vê nenhuma dificuldade em cuidar das pessoas com Alzheimer. "É só carinho e amor, cada um tem seu jeitinho", ela diz, sorrindo.

Renato começou a cuidar de pessoas com Alzheimer por causa de seu pai. Hoje estuda enfermagem e está há 7 meses na Toca. Crédito: Guilherme Santana/VICE

A doença de Alzheimer atinge principalmente pessoas idosas, os pacientes da Toca têm entre 68 e 78 anos. A ​​Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz​) estima que existem 35,6 milhões de pessoas com Alzheimer no mundo, sendo 1,2 milhão no Brasil. É uma doença ainda sem cura e ainda muito difícil de compreender. Rodrigo Rizek Schultz, diretor científico da Abraz, explica que o diagnóstico é feito a partir da história das pessoas, além dos exames de avaliação de funções cognitivas. "Uma história típica de doença de Alzheimer não tem muito segredo no diagnóstico, às vezes, algumas doenças, elas podem simular, mimetizar, mas por isso os exames são feitos", diz.

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A professora Sonia Brucki, do departamento de neurologia da faculdade de medicina da USP, explica que os primeiros sintomas são, na maior parte dos casos, a perda de memória recente e o comprometimento funcional. "A pessoa vai tendo dificuldades para fazer atividades a que está acostumada, como se organizar para fazer várias tarefas ao mesmo tempo, e a piora é progressiva."

O que causa o Alzheimer pode ser uma combinação de fatores: genéticos e ambientais. O doutor Rodrigo explica que "alguns desses fatores ambientais desfavoráveis fazem com que certos genes se expressem". Fatores como colesterol, triglicérides elevados predispõem a doença, por isso é importante manter níveis adequados ao longo da vida, além de manter atividades físicas e cognitivas frequentes. "Existe uma hereditariedade, mas isso ocorre em menos de 5% dos casos. Não é comum, não, é exceção", ele avisa.

Essas combinações de fatores levam a um acúmulo de proteínas no cérebro que não é muito bem compreendido ainda pelos médicos como acontece, exatamente por ser uma doença multifatorial. O doutor Rodrigo afirma que esse acúmulo de proteínas é anormal e leva a um prejuízo na comunicação entre os neurônios. "Há uma reação do organismo em relação a isso. Como consequência desse prejuízo, tem todo o quadro clínico conhecido. Isso acaba evoluindo pra morte celular e, como resultado, você tem uma atrofia cerebral", ele explica.

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Crédito: Guilherme Santana/VICE

Essa dificuldade de entender como e o que acontece exatamente na cabeça das pessoas também torna complicada a descoberta por uma cura. O trabalho acaba sendo numa possível prevenção, que, de acordo com a dona Lilian, começa aos 20, 30 anos através de "exercício físico, alimentação balanceada, não álcool, não cigarro, não drogas, ter uma vida social relativamente boa, ativar a mente constantemente, não é só fazer palavra cruzada", e no tratamento, através do trabalho de terapia ocupacional e medicamentos que podem retardar os efeitos de perda da memória.​

Quanto mais recente a lembrança, menos a pessoa se recorda dela. É impressionante como alguns idosos se lembram de acontecimentos muito antigos, mas não conseguem lembrar onde encontrar um relógio ou um celular. "Quanto mais para trás a pessoa vai, mais a gente sabe que a doença está avançando. Ele vai perdendo contato, ele vai esquecendo o que é próximo e chega um ponto em que não lembra de mais nada", diz Lilian.

O Alzheimer pode acometer pessoas mais jovens, a partir dos 50 anos. O filme Para Sempre Alice, baseado no livro da neurocientista Lisa Genova, que estreia hoje nos cinemas brasileiros, conta a história de uma professora universitária que é diagnosticada com a doença aos 50 anos. Juliane Moore ganhou Oscar esse ano de melhor atriz pela interpretação da protagonista Alice. A história é contada de uma forma bonita e tocante, um filme feito para se chorar. Felizmente, esses casos de pessoas jovens são bem raros. "Geralmente, está relacionado a casos hereditários, mas é exceção", afirma o doutor Rodrigo.

Ao irmos embora da Toca das Horttênsias, dona Olga agradeceu nossa visita com muito carinho: "Eu vou dormir de noite sonhando com vocês".

*Alguns nomes dos pacientes foram trocados para proteger a privacidade a pedido de Lilian Alicke.