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Pode, em Portugal, haver um grande governo de esquerda?

Fomos perguntar a um politólogo do ISCTE.

A tão querida paz social ficou ameaçada com o rasto de destruição que as últimas manifs deixaram. É sobretudo em alturas como esta que se pergunta se partidos como o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista conseguem governar o país (na asa do Partido Socialista). Aproveitei o mais recente livro de André Freire, A Esquerda Radical em Portugal e na Europa, para tentar compreender este e outros fenómenos. Vamos começar. O que o levou a escrever este livro?
Há pouca análise cientificamente enquadrada sobre este tema em Portugal. Há um debate na esfera pública muito pouco informado, muito baseado no que se acha e sem base empírica a sustentar as posições e por isso pensei que havia um espaço para um livro deste tipo e sobre este tema. Aqui em Portugal a discussão é muito paroquialista. É como se não houvesse experiências radicais na Europa. Este livro é uma coisa comparativa e quisemos preencher uma lacuna no mercado editorial, produzindo um livro que pudesse simultaneamente servir de base para os estudantes, mas também informar o debate político e jornalístico com estudos. E o que é, exactamente, a esquerda radical?
A categoria geral é a da esquerda radical na qual se incluem todos os partidos que estão à esquerda dos socialistas e sociais-democratas na Europa e que incluem os comunistas ortodoxos, ou seja, aqueles que não se renovaram após a queda do Muro de Berlim, os comunistas renovadores, outros grupos como as chamadas alianças verdes e vermelhas, os socialistas libertários, os socialistas de esquerdas… Existem várias designações e a todo esse grupo nós chamamos esquerda radical. Neste livro, o co-autor Luke March faz uma distinção entre esquerda radical e extrema-esquerda. Pode aprofundar?
O Luke March fez uma sub-divisão entre os partidos da esquerda radical propriamente ditos e os partidos da extrema-esquerda. Os primeiros são partidos que pretendem uma mudança substancial no sistema político e no regime capitalista, mas são mais moderados porque têm uma atitude mais conciliadora face à formação dos governos, por um lado, e uma atitude mais crítica quanto à liderança do totalitarismo soviético e chinês, por outro — ao contrário dos comunistas conservadores que não fizeram essa auto-crítica. A esquerda radical propriamente dita (a subcategoria, portanto) combina contributos da chamada velha esquerda, os temas da distribuição da riqueza e do papel do estado e etc, com temas da chamada nova esquerda, com coisas como a liberalização de costumes, a defesa de maior participação dos cidadãos no processo de tomada de decisão política, a protecção do ambiente, os direitos das minorias. Além disso, é potencialmente menos cooperante face à formação dos governos. Mas é claro, isto é a tipologia, depois podemos na prática verificar se todas estas situações acontecem como previsto. E em Portugal, como é?
Em Portugal, o Bloco de Esquerda encaixa-se mais na ideia de esquerda radical excepto na questão que à governabilidade diz respeito. Por outro lado, o PCP encaixa-se globalmente e de uma forma genérica na extrema-esquerda. Mas relativamente ao BE, o que me parece é que o partido fez essa viagem da extrema-esquerda para a esquerda radical. Vejamos, hoje o BE é um partido mais moderado e vimos como na última convenção esteve sempre em debate uma possível coligação com o PS.
A esquerda radical portuguesa, até mais o Bloco do que o próprio PCP, não é propriamente extremista. Muitas das suas bandeiras até são as bandeiras da velha esquerda social-democrata. Podemos é discutir se são adaptadas aos tempos da globalização ou não, mas isso é outra questão. Mas todas as tentativas de cooperação com o PS tiveram maus resultados. Onde começa o problema?
A dificuldade, do meu ponto de vista, da esquerda radical se entender com os socialistas é mais um problema de inflexibilidade que estes partidos apresentam quando vão negociar. Na última convenção do Bloco verificámos que há o estabelecimento de um caderno de encargos para haver entendimentos que no fundo são as grandes balizas do programa do Bloco de Esquerda. Para um partido mais pequeno, numa eventual negociação, naturalmente que isso dificulta. Não estamos a exigir demais, isto é, não estará no âmago destes partidos não a governação, mas o protesto?
Eles dizem que querem ir para o governo, mas isso são declarações. É preciso estar disposto a fazer concessões significativas. Na verdade, em termos de atitude revela que se estabelece à cabeça um caderno de encargos que sendo muito fechado dificulta os entendimentos com os socialistas. O próprio Congresso das Alternativas, não sendo ligado a nenhum partido, tentou fazer pontes entre as esquerdas e também padecia um pouco desse problema. Repare, no seio da família socialista portuguesa, o máximo que se encontra são pessoas que são críticas mas que não querem necessariamente fazer uma ruptura, querem renegociar profundamente mas não rasgar, até pode haver pouca distinção mas… Mas essa é a posição do Bloco. Aliás, o professor Boaventura Sousa Santos anda a dizer desde o primeiro dia que devemos renegociar este memorando.
Se for ler as declarações do Bloco eles não dizem “renegociar”. Dizem “rasgar” ou “renunciar”. Até no tipo de termos utilizados acho que há falta de cuidado e depois há uma certa inflexibilidade. As responsabilidades são repartidas?
É claro. O próprio PS também não me parece genuinamente interessado em fazer pontes, caso contrário também faria aproximações e também se esforçaria um pouco mais. Por um lado, pelas posições substantivas que toma e, por outro, por algumas propostas que faz, como a questão da redução do número de deputados — sobretudo como ponto de partida. E depois declarações várias, como a do João Assunção Ribeiro ou do Francisco Assis. Eu acho que há aqui múltiplas causas neste desencontro entre as esquerdas e que, aliás, contrasta com o que se passa por essa Europa fora. Isso é descrito no livro e enfim, também acho que é uma questão de vontade. Ainda agora, no congresso do PCP, também se aponta neste sentido, porventura de forma ainda mais fechada do que no caso do BE: o caderno de encargos do PCP para uma aliança de esquerdas para governar Portugal passa muito pelos pontos-chave do programa do próprio PCP, com o qual os outros devem convergir sob pena de não haver alianças possíveis. É, no mínimo, indicador de que não há muita vontade de estabelecer os compromissos essenciais em qualquer democracia. Tanto mais que o PCP é um pequeno partido com pouco mais do que 7% dos votos. Mais palavras para quê? Na Grécia também não quis fazer…
E depois foi penalizado. Mas também o próprio Syriza, segundo os meus amigos gregos e estudiosos destas matérias, também só não cresceu mais porque à cabeça recusou uma aliança com o PASOK a não ser que fosse nos termos que eles próprios definiram. Mas sondagens recentes dizem-nos que se as eleições fossem hoje o Syriza seria o primeiro partido.
Admito que sim, mas nós sabemos que há uma diferença entre fazer sondagens e depois na hora ir ao boletim de voto. Não é que isso não tenha qualidade, mas aí a pessoa não está a fazer um exercício teórico. A votar mesmo, as pessoas pensam na formação do governo. Não é claro qual seria o resultado se se renunciasse o acordo da troika, ponto. Voltando ao nosso país. No seu livro, diz-nos que o PS é dos partidos da família socialista europeia mais ao centro. Também na apresentação deste livro o deputado António Filipe disse que, no essencial (PECs, troika, cortes na área da saúde e da educação), o PS esteve sempre ao lado do PSD. O PS ainda é de esquerda?
Nós, os cientistas políticos, somos muito acépticos. Quer dizer, se um determinado actor políticos se auto-classifica como sendo de esquerda ou de direita nós em princípio aceitamos… Mas o cientista vive de factos…
Mas esse é o ponto de partida. Há uma grande variabilidade no seio da família socialista e social-democrata. Nesse domínio, o PS é um partido mais centrista mas faz parte desta família. Há outros centristas como o New Labour ou os sociais-democratas dinamarqueses. A família socialista europeia, em geral, tem feito, desde a ascensão do neo-liberalismo, uma certa movimentação para a direita no sentido de adoptar crescentemente orientações associadas ao neo-liberalismo. Tanto no PS como no PSD o discurso raramente é concordante com as políticas que se praticam. Em traços gerais, votar no PS ou no PSD conduz-nos ao mesmo fim. Até quando aguentaremos este problema?
Pois, essa é uma boa questão. Também não tenho uma resposta. Mas de facto há um problema de legitimação. Nas recentes manifestações a expressão “não nos representam”, ou variantes, foi das mais ouvidas. Será por este não-entendimento, a falta de legitimação ou pelo espaço político que está por ocupar de que falámos há pouco?
As pessoas estão zangadas com os partidos em geral e eu não excluiria daí o BE e o PCP, também por eles não serem capazes de gerar alternativas. Nós já temos quase 40 anos de democracia e eles estão fartos de dizer que têm alternativas, mas nós ainda não vimos nada daquilo ir à prova de fogo. E quem não tem maioria, faz uma coligação. Ou então não quer ir para o governo, quer protestar. Quer dizer que tem óptimas soluções, mas só pode aplicá-las se forem só aquelas soluções. Aqui há semanas assistimos ao rompimento de uma nova barreira social, com as cargas policiais da manif de dia 14. Estamos próximos de uma ruptura?
Isto pode, de facto, degenerar em situações incontroláveis. Eu acho que sobretudo os partidos deviam pensar bem nesta situação, que é muito grave. Há de facto um nível de descrédito, desconfiança e falta de estima face aos partidos que é negativo numa democracia. Os partidos são essenciais numa democracia e deviam tentar combater este sentimento. Estas contestações são positivas e trazem-nos um dos aspectos que eu acho positivo na crise que é a politização das pessoas. Agora, numa democracia representativa, estas movimentações podem fazer pressão sobre o sistema político e levá-lo a inflectir neste ou naquele sentido, mas no fim do dia quem toma as decisões e quem muda as coisas (a não ser que haja uma revolução, mas não vejo isso como uma possibilidade) são os partidos. Portanto, ou há novos partidos ou então estes terão que se entender. Qual é o potencial destes movimentos não-orgânicos?
É um potencial limitado pelo que lhe disse. Na verdade, as soluções têm que vir dos partidos propriamente ditos. Aí há um limite para estes movimentos exercerem influência no poder. A não ser que estes movimentos se tornem partidos, o que não creio porque há uma atitude larvar anti-partido que caracteriza também esses movimentos e talvez seja o seu lado menos positivo. Embora perceba que há boas e fortes razões de crítica quanto aos partidos, também é verdade que não há democracia sem partidos e para quem como eu estuda estas coisas, devo alertar para o risco das derivas populistas anti-partidos que não são boas para ninguém. Mas é curioso porque grande parte dos coordenadores destes movimentos têm militância partidária.
Não sei, mas eu falo sobretudo das pessoas em geral e não dos líderes dos movimentos. Aí encontra muitas vezes esse discurso anti-partidos.