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Entretenimento

Esta série gay faz furor em Marrocos

Em Marrocos, o código penal castiga a homossexualidade com penas que podem ir dos seis meses aos três anos de prisão.

Hamza tem 22 anos. Tinha 14 quando beijou pela primeira vez um rapaz, nuns banhos públicos, em Casablanca, e cada vez que recorda o episódio esboça um sorriso: "Ficámos sozinhos, nus. Ele acariciou-me as costas e acabámos por beijar-nos". Depois veio o pior. A apenas 14 km de distância está Espanha, um país onde os homossexuais podem casar-se e ter filhos. Ser homossexual em Marrocos significa ir para trás das grades, enfrentar a exclusão social e familiar, e violência. Muita violência.

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Hamza é insultado na rua: "Chamam-me zamal (maricas) e até já fui atacado com uma faca. Olha, aqui", conta em conversa com a Vice NEWS, mostrando uma pequena cicatriz no braço. A sua vida, entre beijos proibidos e golpes na pele, converteu-o num activista. O seu testemunho, sempre de cara tapada, tornou-o no protagonista do primeiro capítulo da série "Kaynin", que o activista LGBT Marwan Bensaïd publica no youtube, e que em dariya – o dialecto árabe que se fala em Marrocos – significa "Existimos". Já tem quase 300.000 visitas.

Com uma montagem bastante simples e dois locais de filmagem, a medina de Rabat e o interior de um apartamento da capital, Hamza vai construindo a cena ao largo de quase sete minutos: conta que na escola os professores o envergonhavam e os colegas o perseguiam - houve uma vez em que teve que mudar o caminho de regresso a casa porque lhe atiravam pedras - , e então decidiu procurar novos amigos, noutros bairros. Mas o que mais lhe custa é a reacção da sua família.

O irmão pisou-lhe a cabeça, partiu-lhe dois dentes e avisou-o que não podia viver mais em sua casa, tinha de ir embora. Há uns meses voltou a casa e o pai e o irmão esperavam-no à porta, com paus. "És uma desgraça para a família", disseram-lhe. "Não posso ir à polícia, porque perante a lei, o criminoso sou eu", conta no vídeo. Em Marrocos, o código penal castiga a homossexualidade com penas que variam entre os seis meses e os três anos.

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"É a primeira vez que uma acção LGBT em Marrocos causa tanto burburinho", explica, satisfeito, Bensaïd, estudante de 23 anos e fundador de uma revista LGBT online, "Aswat". Começou a série porque "sabia que um documentário em jeito de série teria muito mais impacto. Queríamos colocar em evidência a homofobia que existe na sociedade marroquina".

Uma sondagem realizada em Novembro de 2014 pela TNS, para o semanário Tel Quel, revela que 83% dos marroquinos não são nada tolerantes com a homossexualidade, como podemos comprovar por alguns comentários que o pessoal que viu a série deixou no youtube: "Vocês estão doentes", "Isto é haram" (pecado) ou "Que o façam, mas que seja dentro de casa".

Bensaïd não se importa muito com isso. Pelo menos as pessoas falam: "Os meios de comunicação marroquinos, salvo algumas excepções, tratam o assunto de forma cruel enfocando sobretudo o escândalo. Temos a certeza que agora, quando publicam algo sobre Kaynin, o fazem para ter mais clicks. Com a série no youtube criou-se uma espécie de debate social", diz o realizador, que tem recebido também comentários animadores, como por exemplo: "Não estou de acordo com vocês, mas sou contra a violência de que são alvo". Também chegam cartas de pais cujos filhos são gays, agradecendo-lhe por normalizar uma tendência sexual para além da hetero.

Depois dos primeiros capítulos, o primeiro protagonizado por Hamza e o segundo por Houssem, um jovem de Fez que esteve na prisão, Bensaïd queria uma rapariga para o terceiro: "Falámos com ela, mas depois ficou com medo. Também conhecemos alguns transexuais, mas isso ainda está bastante estigmatizado. Estão muitos escondidos. Os únicos que "saíram do armário" nem estão em Marrocos".

Uma das primeiras associações marroquinas que luta pelos direitos dos gays, lésbicas, transexuais e bissexuais teve que atravessar a fronteira e ir até Espanha, para conseguir a legalidade. Chamam-se "Kif Kif" (Iguais) e o seu porta-voz, Samir Bargachi, decidiu deixar os meios de comunicação durante uns tempos porque continua a receber ameaças. Hamza e Marwan não temem uma possível detenção em Marrocos: "Para já, nada do que fazemos é legal. Eu sou activista, é o que faço", conta Marwan. "Há sempre ameaças, claro", continua Hamza. "Mas temos que estar orgulhosos daquilo que somos e fazemos".

Hamza teve um namorado marroquino que lhe dizia que estavam doentes, não aceitava a sua opção sexual, uma atitude muito frequente entre os homossexuais marroquinos. Muitas vezes recorrem à ajuda de um psicólogo porque acreditam que o que estão a sentir é uma doença. E, além disso, existe a religião. No Corão, dois suras condenam explicitamente a população de Lot, os sodomitas. Mas investigadores como Abdennur Prado interpretam estes textos de outra forma: não se trata de condenar a homossexualidade mas sim as violações e "perversões sexuais" que se praticavam em Sodoma.

Também se pensa que o homossexual activo não é considerado homossexual: um homem só é gay se for afeminado ou passivo. É parte da linguagem esquizofrénica de Marrocos, um país considerado pelos guias turísticos como "gay friendly" desde que sejam discretos.

Para os marroquinos não é uma questão de discrição. Existem, vivem ali, mas, por agora, têm que viver escondidos. As novas tecnologias, as aplicações para telemóveis e, por exemplo, o Bluetooth, facilitaram imenso as coisas, mas o encontro cara-a-cara continua a acontecer em parques ou em ruas desertas. Pedimos a Marwan para nos contar a sua experiência pessoal, como é para ele ser gay em Marrocos: "Não vos posso contar. Não é seguro para mim".