Esportes

Nic Von Rupp: da Praia Grande às maiores ondas do Mundo

“A pressão existe e é muita. Às vezes, é preciso lembrarmo-nos do porquê de fazermos isto. Que estamos aqui por motivação própria e não exterior; que não é preciso reinventarmo-nos todos os dias.”
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Fotografia de FELIX GÄNSICKE.

O surfista Nicolau Von Rupp teve um 2019 em cheio. Foi nomeado para os 2019 Surfer Awards na categoria de Heavy Water; esteve em destaque na entrega dos Prémios Ondas XXL EDP Mar Sem Fim, tendo vencido nas categorias Onda da Temporada, Maior Wipeout e Melhor Tubo; competiu no Men’s Big Wave em Jaws, tendo sido derrotado nas meias-finais com 5.16 pontos somados e ainda lançou uma marca.

Gravou dois vídeos sobre as suas viagens, Rail Road e Indo Dreams e publicou uma versão impressa, em livro, do primeiro. Tudo isto sem nunca parar os treinos, o surf e as viagens. Ainda assim, no meio desse ano passado apinhado de desafios, arranjou tempo para se sentar connosco a uma mesa e responder a todas as perguntas que tínhamos para ele.

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O Nicolau é um dos nossos grandes, daqueles nomes que dizemos de boca cheia e que nos enche de orgulho patriota por ser português. Não hesita em elogiar, constantemente, os seus colegas de profissão e olha para o futuro com optimismo.

Conversámos sobre surf, a marca Brusco e sobre como foi viver a vida inteira a gerir expectativas, numa busca constante por uma onda ainda maior do que a anterior.

VICE: Tens uma carreira diferente do normal, não escolheste a trajectória típica. Porquê as ondas grandes em vez do campeonato mundial?

Nicolau: Competi durante muitos anos, dos 12 aos 25. Quando se escolhe uma carreira de surfista profissional segue-se a norma, que é competir. Hoje em dia, através das redes sociais e também com a Nazaré aqui ao pé, surgiram oportunidades de carreira que saem um bocadinho do comum. Em 2016 fui vice-campeão mundial do World Surfing Games, por isso tive essa carreira de competidor. Só que a minha paixão são as ondas grandes, o que requer seguir um caminho um pouco diferente - partir para a aventura, viajar pelo mundo inteiro à procura das melhores ondas e conseguir autorização dos patrocinadores para o fazer.

A verdade é que sempre foi isso que me destacou. Mesmo quando competia, fazia isto on the side, fora da época competitiva. Agora, chegou a altura em que decidi focar-me apenas nisso. Em 2018 qualifiquei-me para o Circuito Mundial de Ondas Grandes, ou seja, continuo a competir mas nesta vertente.

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Como é que reagiste à notícia de “cancelamento” do campeonato pela WSL, logo no ano em que entraste como wildcard?

Antigamente era ACP agora é WSL, está constantemente a mudar. Por ser um desporto muito recente, ainda estão a tentar encontrar os melhores parâmetros para a competição. Antes, nas ondas grandes, faziam-se três etapas (Nazaré, Jaws e Mavericks); este ano a WSL decidiu não fazer o circuito, apostar numa só etapa em Jaws e num campeonato de tow in na Nazaré. O circuito para o que eu me qualifiquei é de remada - sem assistência de motas de água, homem contra a Natureza-; o campeonato que vão fazer é de tow in (puxado por motas de água). Realmente, na Nazaré chega a uma altura em que já não se consegue remar, por isso é compreensível que tenham decidido fazer só tow in. É para bater recordes, surfar a maior onda de todos os tempos.

A minha qualificação de 2018 e a preparação que tive para depois saber que não iria haver um circuito e seria apenas uma etapa, confesso que foi um bocadinho frustrante, mas não foi em vão. Fui considerado o sexto melhor surfista de ondas grandes da temporada. Independentemente de onde for o circuito e de qual for o destino das ondas grandes, vou sempre fazer parte desta elite. E isso já fala por si, já é recompensa pelo meu esforço.

Pensas em voltar a competir?

Estes circuitos são competições. Além disso, quando estou a surfar ondas gigantes, a sensação também é de competição. Estamos constantemente a querer superar-nos a nós mesmos, a querer bater recordes, surfar a maior onda do ano… Portanto isso é a minha competição, continuo a ser uma pessoa competitiva. E tem sido bom focar-me numa só coisa. Podia estar a treinar para os Jogos Olímpicos, mas não é o que me vai no coração nem é aí que o meu talento sobressai.

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Quando competias, sentias que tinhas amigos nos campeonatos ou a competição entre surfistas era demasiada para criar amizades verdadeiras?

A minha geração (Kikas, Vasco, etc.) viajámos o mundo inteiro juntos, com o objectivo de sermos melhores e competir contra os grandes nomes internacionais. Éramos a família uns dos outros. Um apoio fora de casa. Isto numa altura em que Portugal não estava ainda no mapa como destino de surf conceituado, o que nos tornou ainda mais unidos, portugueses contra o mundo. Podemos competir uns contra os outros, mas somos grandes amigos acima de tudo. A competição fica dentro de água.

E agora, nas competições das ondas grandes, acho que ainda se sente mais esta amizade entre surfistas. A partir do momento em que a sobrevivência entra na equação, essas amizades aprofundam-se muito mais porque, se as coisas correrem mal, estamos dependentes do nosso próximo para sobreviver.

Qual foi a tua viagem mais marcante? Qual é a próxima?

Acho que foi a primeira vez que fui ao Havai, que é o benchmark da cultura do surf das ondas grandes a nível internacional. Antigamente, tudo o que era surf de ondas grandes era lá. Para evoluirmos e aprendermos, tínhamos que lá ir. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que lá estive, com 14 anos. Não conhecia ninguém, tivemos que dormir na praia, ninguém nos estendia a mão. Não tínhamos carro, nem bicicleta, nada. É engraçado comparar com as nossas idas de hoje. Naquela altura ninguém tinha interesse em Portugal, foi a Nazaré que veio mudar esse panorama, por ser a maior onda do mundo e a mais consistente. A onda no Havai quebra uma ou duas vezes por mês, enquanto a Nazaré quebra 20 ou 30, quase todos os dias está enorme. Agora, toda a gente vem para cá e quer o nosso apoio quando cá chega. O que é engraçado, porque quando eu fui para o Havai em puto não tive apoio nenhum, ninguém me dava uma mota de água, nem me filmava… Agora, quando vou, tenho tudo o que quero. Isto deve-se muito à credibilidade que a Nazaré trouxe ao surf português. O que, por sua vez, é hipócrita - eu continuo a ser o mesmo surfista com o mesmo talento.

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Quanto à próxima viagem… Antigamente andava sempre de um lado para o outro, mas agora já não preciso de ir a lado nenhum. O mundo do surf, neste momento, centra-se muito em Portugal, por isso estou bastante focado no que se passa aqui. A minha carreira hoje em dia é Nazaré, preparar-me para as maiores ondas e ser um embaixador desta costa.

Qual é a tua praia preferida em Portugal?

A Praia Grande. Onde cresci, onde aprendi, a praia mais bonita… É onde me sinto em casa. Mas a costa portuguesa inteira é a minha preferida, é difícil escolher uma só praia. Temos tanta variedade de ondas, desde a Caparica, à Ericeira, à Nazaré. Fora de Portugal é difícil encontrar uma onda sem ninguém, mas aqui há tantos sítios onde consegues surfar sozinho. Temos uma costa abençoada, com ondas de grande qualidade e as pessoas estão a começar a perceber isso. Cada vez há mais surfistas internacionais a virem viver para Portugal, porque aqui as condições são fora do normal.

Tens algum ritual antes de entrar no mar? Em que é que pensas nesses momentos?

O meu ritual é agir como se fosse só mais um dia. Tentar não meter na cabeça que é uma ondulação muito grande, agir sempre como se fosse normal. É complicado, claro, até porque os media têm esse poder sobre nós. Começa-se a falar das tempestades que estão a chegar e isso fica-nos na cabeça. Lembro-me que, quando fui apanhar a tempestade Hércules à Irlanda, uma semana antes já se andava a falar daquilo como sendo a maior tempestade alguma vez vista no Atlântico. São frases que nos ficam na cabeça e contribuem para os nervos. Mas a minha rotina é exactamente essa, tentar agir como se fosse um dia normal. Tomar o meu pequeno-almoço e nem olhar para as ondas - entrar água e entrar no flow.

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Nos dias anteriores sinto mais o stress, mas quando chega a hora já estou tão focado no que quero atingir, no que vou fazer, que acaba por me sair natural. Tendo passado 20 anos no Mar, nós sentimos uma conexão com ele. Parece que fala connosco. Há imensos dias em que, simplesmente, não sentimos essa conexão, em que temos uma sensação estranha ou que o mar não colabora. Surfar ondas grandes é tão bruto e intenso, que nós agimos por instinto. Dentro de água, o modo de sobrevivência entra em acção e é o que nos guia. É uma sensação que nunca senti em terra. Por isso é sempre preciso darmos ouvidos ao nosso instinto.

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Fotografia de Francisco Santos.

Quando é que o respeito passa a medo? Já alguma vez sentiste que a tua preparação não foi suficiente para as condições que encontraste?

Constantemente. O medo é constante e quem disser que não tem medo está a mentir. Principalmente na Nazaré, que é o topo da montanha. Medir a força humana com a da Natureza a esse ponto é, de certa forma, um caminho nunca antes explorado. Quando estás debaixo de uma onda, com aquela força tão superior à nossa, nunca sentes que estás preparado.

Mas a vontade de superação é sempre maior do que o medo e faz-nos voltar, dia após dia. Ainda assim, se as coisas correrem verdadeiramente mal não existe preparação suficiente. Essa é a realidade.

Qual foi o maior wipe out que já tiveste? Depois de um wipe out pensas em apanhar logo outra onda ou só queres sair de dentro de água?

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Tive um na Irlanda há uns anos. Levei com a onda, bati com o joelho, com as costas e com a cabeça na pedra, fiquei imenso tempo debaixo de água e quando vim ao de cima tinha quatro motas à minha volta, a verem se estava tudo bem. Quando medes forças com a Natureza e consegues sobreviver, esses são os momentos em que te sentes mais invencível. A adrenalina ao rubro - arriscaste, correu mal, mas sobreviveste. A sensação é incrível, é quase melhor do que surfar a onda como deve ser. Eu sou apologista dos wipe outs, acho que cair é sinal de que estás a puxar os limites do desporto. Costumo dizer que um bom wipe out é melhor do que uma boa onda.

Qual foi a melhor onda que já surfaste?

Isso é uma pergunta difícil, mas talvez Mavericks. É uma onda que já é surfada desde os anos 70. Nas ondas grandes, tens que sentir uma energia entre vários surfistas para sentires que consegues superar o desafio. Já houve vários surfistas a puxarem os limites em Mavericks mas, no ano passado, fizemos uma sessão histórica: a esquerda de Mavericks. Para ti isto não quer dizer nada (risos), mas em Mavericks nunca ninguém faz a esquerda. A energia toda da onda vai para a esquerda, tem um canal super perigoso que te empurra para baixo, por isso há o perigo de te afogares. Mas juntou-se ali uma nova geração de surfistas, Nathan Florence, Lucas Chumbo, tudo surfistas mais ou menos da minha idade, que também têm este background de competição e começámos todos a surfar a esquerda. Foi incrível.

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Contra que surfistas é que gostavas de competir num heat?

O Lucas Chumbo, que é um dos grandes talentos das ondas grandes. Para ser surfista de ondas grandes é preciso muita coragem, antigamente havia muito risco envolvido. Agora é um desporto muito mais seguro, por causa das equipas de segurança. Até há uns anos morria muita gente, até que se chegou a um ponto em que era preciso mudar alguma coisa, porque se não ia continuar a morrer gente. Ao se ter tornado mais seguro, o interesse das novas gerações com talento cresceu, como é o caso deste Lucas Chumbo. Ele é um surfista que já ganhou o Nazaré Challenge duas vezes, tem imenso talento. É um avariado, mete-se nas piores posições e consegue surfar as ondas de uma maneira única, dropar na zona mais crítica. Surfei com ele na Nazaré e disse-lhe que ia ficar ao lado dele. Fizemos uma onda os dois, eu atrás dele. E depois ainda fomos para Mavericks, onde aconteceu a tal "sessão histórica", como lhe chamaram.

Quem são os surfistas que mais te inspiram?

Neste momento, quem mais me inspira é o João Macedo. Comecei a fazer surf com ele há 20 anos, foi meu treinador até aos 15. Ele é um grande surfista de ondas grandes, sempre foi - viveu uns anos nos EUA, surfou Mavericks -, mas nunca foi profissional. Cá em Portugal não existia tal coisa como ser surfista de ondas grandes. Entretanto, a Nazaré trouxe uma nova vida a muitos surfistas. O João Macedo, que tem agora 43 anos, está no front run das ondas grandes, neste momento é quem puxa mais os limites em termos de remada. Eu conheço-o há muitos anos, sempre soube que ele era passado na cabeça e muito corajoso, mas agora é que as pessoas se apercebem que ele, realmente, tem qualquer coisa de especial. É uma inspiração para mim não só pela história que nós temos, como pelo que tem feito pelo surf nacional.

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Tens a sorte de fazer profissionalmente aquilo que mais gostas de fazer na vida pessoal, mas é uma carreira que exige mais de ti do que as carreiras convencionais. Muitas viagens, muito treino, muita preparação. Como é viver a vida assim?

O surf é a minha paixão. O meu tempo de lazer é passado a fazer surf, mas todos os momentos profissionais também são passados a fazer surf. Ter uma barreira entre trabalho e lazer é confuso. Quando acabo a temporada, quero descansar e fazer outra coisa completamente diferente, mas tudo o que me vem à cabeça é surf. Diria que a parte mais complicada de viver assim é a ausência de rotinas - hoje estou aqui, mas amanhã ligam-me a dizer que vai entrar uma ondulação no Taiti e eu faço as malas e vou. Não sei dizer se estou cá daqui a uma semana. É uma instabilidade que a sociedade não compreende; os meus pais não percebem porque é que eu não me posso comprometer com um evento de família, uns anos de uma avó, etc. Lidar com as expectativas das pessoas que estão à nossa volta é muito duro. Houve alturas em que, depois de passar meses a fio no Havai ou na Austrália, eu voltava a Portugal e sentia que já não me identificava com os meus amigos, com a minha família. Mas, a verdade é que faço aquilo que gosto, tenho liberdade e, por sorte, hoje em dia tenho a minha carreira à porta de casa, na Nazaré.

Fala-me sobre a Brusco. Qual o objectivo, a ideia que lhe deu origem e o posicionamento de marca?

O meu agente costumava dizer-me que estou sempre de um lado para o outro, sempre ocupado, sempre em stress, que não sou capaz de parar quieto. E é verdade, eu cavo os meus próprios buracos. Mas a Brusco vem de um desejo enorme de criar algo verdadeiramente português. Quando cresci, tudo o que era bom era de lá de fora. Tínhamos que viajar pelo mundo, falávamos de Portugal e ninguém conhecia a nossa cultura de surf ou as nossas praias. Hoje, o surf europeu e Atlântico é reconhecido a nível internacional. Por isso acho que chegou a altura de criar algo português e expandir para o Mundo.

A Brusco é o reflexo do que nós somos: surfistas bruscos. Acordamos de madrugada, deixamos a família em casa e entramos no mar frio. É uma atitude brusca. O Oceano Atlântico também é brusco, perfeito mas tempestuoso. Por isso, a partir dessa ideia passámos dois anos a trabalhar com a Pacífico, uma óptima agência de design do Porto, a criar um conceito com o qual eu me identificasse. O nosso objectivo é que o pessoal do core do surf percebesse a marca e a recepção, até agora, tem sido incrível. Queremos produzir conteúdo constantemente e ser uma inspiração para a nova geração de surfistas portugueses. Temos, em Portugal, condições para formar campeões do mundo. Quero que esta marca seja um veículo e uma motivação.


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