​A luta para sair do último degrau do futebol brasileiro

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VICE Sports

​A luta para sair do último degrau do futebol brasileiro

Jogadores de Lusa Santista e Desportivo Brasil fritam ao sol das dez horas da manhã para saber quem é o melhor na divisão que ninguém quer ficar: a quarta do paulista.

Faltam dez minutos para as nove da manhã, e a calçada em frente ao estádio Ulrico Mursa, em Santos, está lotada de homens de verde e vermelho acumulando latas de cerveja e as arremessando em sacos de lixo. Um deles, com a camisa de uma organizada, é repreendido por um torcedor: "Esconde essa camisa senão a polícia não deixa entrar!".

"No jogo passado, contra o Taboão da Serra, tacamos bambu, fumaça, sinalizadores", diz o comerciante Bruno Rezende, 29 anos, também da torcida organizada, mas vestido à paisana em meio à febre por uma cerveja do tio do isopor antes do jogo de logo mais, o mais importante da história de um deles (o Desportivo Brasil, de Porto Feliz) e da tão esperada espiada do fundo do poço da tradicional Portuguesa Santista depois de seis anos."Os caras ficaram loucos."

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Foto: Guilherme Kastner

Acontece por ali a final do último nível do futebol brasileiro. Da Segunda Divisão paulistana, equivalente à quarta divisão do Estado (a Federação Paulista considera as séries A1, A2 e A3 como primeira divisão), o clube precisa mirar ainda mais sete estágios para chegar à Série A do Brasileiro. Isso significa galgar acessos em três níveis estaduais, chegar entre os melhores da primeira divisão paulista para só então sonhar com uma Série D nacional.

Neste ano, 32 clubes duelaram por longos seis meses em chaves eliminatórias e cruéis. Boas campanhas na primeira fase eram mortas por desempenhos medíocres na etapa seguinte. Melhor do campeonato, a Portuguesa Santista superou duas fases de grupos e dois mata-mata até o acesso. Ficaram pelo caminho clubes tradicionais como XV de Jaú e América de Rio Preto.

Foto: Guilherme Kastner

Um homem de cabelos brancos e aparentando pouco mais de 50 anos está assustado com o volume de pessoas que vê na porta do pequeno estádio para pouco mais de 5.000 pessoas. A PM não chega, e é ele quem tem que controlar o público com ingresso na mão, que pressiona para entrar. Alguns minutos depois, a polícia permite o acesso por apenas um dos portões. O cavalo-doido abre uma corrida louca rumo ao "Bar da Briosa", que vende cerveja mais ou menos gelada. Forma-se uma fila de mais de 15 pessoas para tomar a primeira do dia. Em meia hora, o estoque acaba e só resta a quente. A fila continua.

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O alto-falante do estádio desfila patrocinadores como uma padaria, uma casa de ferragens, uma loja de armarinhos e um supermercado, entre outros. "Vou atrás de todos eles durante a semana", diz o locutor Walter Dias, 81 anos, que jura ter narrado o milésimo gol do Pelé no Maracanã, em 1969. Ele ajeita o microfone e vende as delícias do estádio: "Coma a pipoca da tia Alê, o amendoim do seu José e o melhor pastel dos estádios brasileiros".

Foto: Guilherme Kastner

Ainda não são dez da manhã, mas a reportagem decide fazer o teste das iguarias. A pipoca não faz feio às rivais das saídas de igreja. O amendoim do seu Zé supera a qualidade da média dos servidos em estádios. E o pastel… bem, Walter foi muito bacana com quem o fritou.

Na tenda armada com produtos da Portuguesa Santista, duas jovens mulheres estão vestidas de "cachepinhas", tradicionais lusitanas que inspiram a mascote da Briosa. Se todos os jogos elas vão assim? "Não!", diz uma delas. "É que hoje é o dia da tradicional feijoada do clube."

Foto: Guilherme Kastner

Dentro de campo, as histórias dos dois clubes contrastam. O Desportivo Brasil é cria da Traffic, empresa de marketing esportivo que já deteve os direitos de competição dos maiores torneios do Brasil e da América Latina. Hoje, seu fundador, J. Hawilla, passeia de tornozeleira eletrônica pelos Estados Unidos, depois de delatar à Justiça daquele país o esquema da máfia que conduzia o futebol mundial por meio de confederações nacionais e continentais e pela Fifa.

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Antes do escândalo estourar, Hawilla havia vendido o clube para o grupo chinês Luneng, dono do Shandong Luneng, hoje treinado pelo alemão Felix Magath, mas que já teve os brasileiros Cuca e Mano Menezes recentemente no comando. A boa estrutura, no entanto, continuou. "A gente tem estrutura de time grande, de ponta", afirma o diretor-executivo do clube, José Carlos Brunoro, técnico medalhista de prata com o vôlei brasileiro na Olimpíada de Los Angeles (1984) e executivo da Parmalat na era da cogestão com o Palmeiras, nos anos 90.

Foto: Guilherme Kastner

Como o jogo era na manhã do domingo, os atletas do Desportivo Brasil ficaram concentrados no luxuoso Mendes Hotel, na praia do Gonzaga. Lá receberam o café da manhã às sete da manhã e ouviram a palestra motivacional do técnico Adailton Ladeira. Seus adversários da Portuguesa Santista tiveram regalia menor: passaram a noite no modesto Carina Flat. O auxiliar-técnico, o ex-jogador santista Marcelo Passos, só chegou ao hotel às cinco da manhã de domingo – ele cumpre jornada dupla, dividindo os jogos da Portuguesa com os do time sub-23 do Santos.

Os times estão perfilados, e seu Waldir alerta para o hino nacional: "Atenção para o hino executado pela Banda da Polícia Militar. Quem souber, canta; quem não souber, respeita". Começa o jogo. O estádio está tomado, com gente de pé como não se vê mais nas novas arenas. Os rivais locais são o volante e capitão Deda e o meia Edson Pio. Ambos já jogaram na Santista, mas não foi apenas por isso a escolha. "Eles provocaram nossa torcida no jogo da segunda fase", diz o técnico Ricardo Costa. "Eles mostraram até o pinto pra gente!", diz o estudante Thomaz Alves, 19 anos. "E os caras foram formados aqui no clube!"

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Foto: Guilherme Kastner

O coração santista está dividido entre as duas estrelas do elenco. De chuteiras pretas, cabeça raspada, mais inspiração que respiração, está Ricardinho, 40 anos. Seu perfil corpulento é o oposto do resto do time, obrigado pela Federação Paulista a respeitar o limite de apenas três jogadores com idade superior a 23 anos. Ricardinho passou por grandes clubes, como Palmeiras e São Paulo, onde ficou conhecido como "Ricardinho da fita" – formado pelo Nacional da capital, foi contratado por um dirigente em 1999 depois de uma bela edição de seus lances em uma fita VHS. Os são-paulinos juram que foi o primeiro caso da história.

Ricardinho, 40 anos. Foto: Guilherme Kastner

O franzino Willian, 22 anos, vai completar seu primeiro ano de São Paulo em janeiro, depois de contratado pelo Santos do Central de Caruaru (PE). Calça chuteiras verde-limão com detalhes em azul e tem o cabelo raspado nos lados e levemente tingido de loiro. "Minha família está toda em Juazeiro do Norte (CE). Ainda não deu tempo de buscá-la", diz o artilheiro da Segunda Divisão, com 19 gols e uma promessa de ser integrado ao time principal do Santos em 2015. É dele o primeiro gol: um balão para o alto que encontrou sua cabeça ainda no primeiro tempo. Na comemoração, arranca a camisa e exibe uma outra: "Meu amor não tem divisão".

William, 22, comemorando o primeiro gol. Foto: Guilherme Kastner

O jogo é tudo aquilo que os modernos desprezam. Sem tática, com chutões, bolas longas, pancadas, quase uma pelada. Coisa linda. Ainda no primeiro tempo, Eric, da Portuguesa Santista, levou cartão amarelo por acertar uma paulada de uma só vez em dois jogadores do Desportivo Brasil. "Tá errado", diz um torcedor ao lado da reportagem. "Se você olhar no replay, vai ver que ele acertou só um jogador, e não dois. Merecia meio cartão."

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A torcida do Desportivo Brasil está confinada nos cantos, protegida por dois policiais. Não existem bandeiras nem camisas do clube, mesmo que, no jogo do acesso, contra o XV de Jaú, uniformes tenham sido distribuídos pelos dirigentes. "A gente começou só agora a relação com a prefeitura, o município. Atua nos Jogos Abertos do Interior, fez uma escolinha na cidade", afirma Brunoro, embora a atuação do Desportivo Brasil na cidade já exiba 12 anos desde a fundação. O clube-ostentação provoca ciúmes ("os rivais têm mais vontade de nos vencer porque sabem que nós temos dinheiro", diz o executivo) e na torcida. Em meio à parte coberta do Ulrico Mursa, um caixãozinho com o símbolo do rival é exibido, e a torcida lusitana chama os adversários de "pasteleiros" – uma referência aos investidores que vieram da China.

Brunoro, do Desportivo Brasil. Foto: Guilherme Kastner

Ricardinho parece cansado. Um grito do meio da arquibancada pede que ele apareça. Em meio a um bate-rebate no meio de campo, semelhante ao de um jogo de churrasco, a bola sobra para Willian, que tromba no começo da área. Ricardinho, o sumido, dribla o goleiro e escolhe o canto, entre dois defensores do Desportivo Brasil. Ele corre para a região do alambrado onde a reportagem estava. Um torcedor que jura apenas torcer para a Portuguesa Santista (o estádio recebe um público com camisas dos quatro grandes do Estado de São Paulo, com predominância do vizinho Santos) o agarra pela camisa. O alambrado resiste.

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Ricardinho após o segundo gol. Foto: Guilherme Kastner

Ainda haveria espaço para o terceiro gol, que consagraria o título da Portuguesa Santista, o primeiro desde a conquista da Divisão Especial em 1964, equivalente à segunda divisão na época. Seu Waldir, no alto-falante, informa o público de cerca de 5.000 pessoas. O presidente da Briosa, Lupércio Conde, diz que o estádio acanhado está com os dias contados. Um namoro entre a Portuguesa Santista e o Santos trouxe mais de uma dezenas de jogadores para o clube no início da competição, além de dois integrantes da comissão técnica – além de Marcelo Passos, o ex-meia Robert. "Vamos fazer um acordo para que eles construam o novo estádio aqui, e nós, uma arena pouco menor atrás", diz. Parte da torcida reage: "Arena é o caralho!"

Eric fez o terceiro gol e passou a régua. Foto: Guilherme Kastner

O jogo acaba, e a Portuguesa Santista é a campeã da quarta divisão paulista. Marcelo Passos, que dispensou o próprio filho do elenco durante a competição, diz que é seu último jogo com a Portuguesa Santista e no dia seguinte se reapresentará no Santos. Ricardinho não sabe se estenderá a carreira – em novembro, ele completa 41 anos. Ricardo Costa, agora sem contrato, afirma o desejo de ficar. "Nosso objetivo é permanecer na terceira divisão", diz Ricardo Costa. No túnel que dá acesso do vestiário para o campo, agora liberado, é possível ver as cartolinas exigindo que o elenco dê valor àquele jogo: "Vão ficar no quase ou entrar para a história?" O recado foi assimilado. A crueldade da quarta divisão não é para ser esquecida.

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Foto: Guilherme Kastner

Abaixo, mais fotos do dia inesquecível para os torcedores da Portuguesa Santista. Todas são de Guilherme Kastner.