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Música

Ando com vontade de converter infiéis dos Cure

E vou usar o Three Imaginary Boys como água benta.

Ultimamente ando com uma vontade anormal de converter infiéis dos Cure. Apetece-me pedir quinze minutos da atenção do infiel, meter as favoritas dos Cure a tocar num leitor qualquer, enquanto explico o que aprecio nelas em particular. Podia até ter um pequeno quadro branco e um marcador muito escuro (claro) e ir escrevendo coisas tipo “atmosfera”, “dinâmica” e “eco” enquanto desenhava bolinhas à volta das palavras e gesticulava muito. Sim, tenho pensado bastante nos Cure (a fazer compras, a andar de carro) e ocorre-me que se aguentaram muito bem para uma banda que já está mais perto dos quarenta do que dos trinta anos. Há muitos casamentos que não duram metade disso. Pá, os casamentos do Tom Cruise, por exemplo, não chegam sequer a ter um quarto dessa duração. Um matrimónio de quarenta anos tem, inevitavelmente, altos e baixos — os Cure tiveram discos mais excitantes e outros mais chatos (Wild Mood Swings, 4:13 Dream). Mas os Cure podiam ter lançado Three Imaginary Boys e a trilogia Seventeen Seconds, Faith, Pornography e arrumado as botas logo depois, apenas para viver do mito. Ficavam com quatros discos quase perfeitos para render em digressões de reunião e provocar os entrevistadores com a hipótese de um dia virem a gravar o sucessor de Pornography que teria o título provisório de Shame (isto estou eu a inventar). Seriam noticiados por essa provocação mediática muitas mais vezes do que aquilo que são pelo facto de terem realmente música nova para dar a conhecer. Parece que o público gosta mais de imaginar os discos do que tê-los na mão quando estão acabados. Estranhos prazeres. Adoro os My Bloody Valentine e ainda mais os Pixies, mas as duas bandas gozaram muito dos benefícios do mito e do facto de terem apenas dois e quatro álbuns, respectivamente. É porreiro rentabilizar o mito num período pós-carreira sem música nova. As bandas nunca se arriscam a soar desactualizadas ou desajustadas. Tocam apenas o tempo que lhes deu toda a glória. Dois ou quatro álbuns são uma paixão, um namoro que não oferece grande margem para falhar — mas nunca um casamento. Quem casou com os Cure arrisca-se por vezes a estar mais aborrecido com a pessoa que ali está a dormir ao lado na cama, mas deve-lhe também um carinho especial por ter decidido ficar por ali ao longo de todos estes anos. Os Cure representam uma eternidade de óptimas canções e eu já peguei no marcador muito escuro para explicar o que adoro nesta mão cheia de favoritas. Dêem-me quinze minutos, por favor.

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Não devem existir canções muito melhores que esta sobre a sensação de ter 18 anos (ou o espírito dessa idade) e ficar em casa num sábado à noite — o serão que toda a gente escolhe para sair. A guitarra mantém um andamento entediado e circular (como um gajo às voltas num quarto) até lhe dar o “vaipe” que é um solo carregado de fúria contra o tédio. Um solo que foi muito imitado desde aí. São raras as noites de sábado caseirinhas em que não escuto esta.

Mais um solo de guitarra absolutamente clássico, naquele que era apenas o primeiro disco dos Cure (o impressionante

Three Imaginary Boys

). Faz todo o sentido que esta faixa-homónima surja no final de um álbum que começa com um atrofio caseiro e termina num cenário de “sinto-me tão só que já comecei a imaginar que estou acompanhado por pessoas”. Os três rapazes imaginários, portanto.

Os Cure são também conhecidos por uma série de canções que dão vontade de saltar de prédio em prédio, ou de árvore em árvore. “Burn”, a fabulosa malha da banda sonora d’

O Corvo

, estimula essa primeira vontade, mas “Hanging Garden” puxa mais para saltar de liana em liana como o Tarzan. É óbvio que o salto por aqui é entre estados vários da consciência e marcas deixadas pelo passado (e futuro), como se percebe pela letra quase impressionista de “Hanging Garden”. Seja como for, há uma energia enorme para aproveitar na imparável secção rítmica desta grande canção dos Cure.

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Provavelmente uma das canções mais sensuais que conheço. O

loop

é pura lascívia e faz-me sempre imaginar duas ou mais pessoas a comerem-se em cima de um sofá, num canto refundido de uma discoteca. Quando o clima está em alta e os corpos já estão próximos, esta é o tema certo para lançar numa festa ou DJ set. O álbum que a inclui,

The Head in the Door

, nem sempre é o mais badalado na carreira dos Cure, embora seja equilibradíssimo enquanto conjunto de canções em que praticamente todas mereciam ser um single.

The Head in the Door

vale também por uma “Close to Me” intacta e ainda sem o apêndice de sopros que haveriam de lhe acrescentar (um pouco a martelo) para que soasse mais alegre nas rádios e na televisão. Em disco, parece muito mais claustrofóbica e intimista. Muito melhor também.

Apesar de todos os seus

radio edits

e versões de vídeo para a MTV, “Pictures of You” não deixa também de ser um

single

que, na sua forma original e não truncada, começa com aproximadamente um minuto e cinquenta segundos puramente instrumentais — reparem: um

single

em que voz surge apenas perto da marca dos dois minutos. Deve ser um marco quase inédito na história da música pop. Ainda assim, os Cure nunca parecem prolongar a linda guitarra que abre “Pictures of You” para alcançar uma marca olímpica ou um feito do género, a canção é constantemente natural na forma como se constrói até ser um daqueles épicos românticos que deve ter preenchido a vida de muita gente que se ama à distância. As guitarras de Modest Mouse foram buscar muito do que se escuta por aqui, isso é certo.