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cantoras

Teresa e os seus amigos imaginários

Como a múltipla personalidade pode ser divertida.

A primeira vez que falei com a Teresa Gabriel foi no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, há cerca de 15 anos. Enquanto estava na fila para entrar para um concerto, ouvi na rádio que iam oferecer bilhetes aos dez primeiros que chegassem com uma bandeira do Canadá aos bastidores (para conhecer a artista). Corri como nunca e fui o primeiro… logo seguido pela Teresa. “Sou a primeira!”, disse ela, com aquele tom afectado característico do pessoal de Lisboa.
“Ouve lá, então por que é que a tua mão está por cima da minha, ó porca?”, respondi. E foi assim, uma história de amor à primeira vista. Longe estava eu de imaginar que esta miúda mitra, baixinha, de óculos se ia revelar numa das maiores e mais talentosas amigas que tenho a sorte de conhecer. Com apenas 21 anos, a Teresa foi convidada para abrir o concerto da Beth Gibbons (sim, a alcoólica que, nos tempos livres, é a vocalista dos Portishead). Esta tão singular voz da música portuguesa, com as suas letras espiritualmente carregadas, há já alguns anos que faz parte do cartaz de muitos dos festivais portugueses: de Vilar de Mouros ao Sudoeste, do Andanças ao Boom Festival (onde é presença assídua com as suas sessões de cura pela voz). Há umas semanas passou por Guimarães e deu um concerto na Casa Amarela e dois outros no número 50 do Guimarães noc noc. Encontrei-me com ela e fiz-lhe umas perguntinhas. VICE: Além de teres começado a fazer música para mostrar ao teu irmão mais velho como se faz, houve mais alguém que te iniciasse nas lides musicais?
Teresa Gabriel: Ahahah, não, ninguém me iniciou. Com nove anos pedi uma guitarra aos meus pais. Tive aulas durante uns meses, nos quais aprendi alguns acordes. Depois desenvolvi tudo por ouvido e por iniciativa própria, na minha exploração musical (ou seja, muitos anos de colanço). Os teus pais imaginavam, na altura, que ias andar a viajar pelo mundo com isso?
Penso que eles já tinham a ideia que eu era um pouco estranha. Um dia, quando tinha sete anos, peguei num saco e enchi-o de roupa e disse à minha mãe que ia viajar. Só fui até à esquina e voltei. Mas acho que foi profético. Nem eles, nem eu imaginávamos o caminho que eu ia tomar. Nunca ponderei fazer da música a minha vida, era uma espécie de mundo interior que eu tinha. Algumas pessoas ouvem vozes, tu tens orquestras na tua cabeça. As tuas letras têm uma ressonância muito própria. Achas que, nos dias de hoje, a mensagem é algo esquecido na música?
Tal como existe o Macdonald's, existe a música macdonaldizada, estandardizada, formatada. Felizmente, com a internet podemos encontrar muitos artistas geniais que não passam na TV, nem na rádio. Existem muitos artistas com grandes mensagens, talentos e visões, mas que, por alguma razão, nem sempre chegam ao mainstream. Na minha opinião, compete ao público fazer a triagem e escolher a música que quer ouvir. Para mim, procuro sempre expressividade, originalidade, ser de alguma forma tocada. Mais do que fama, procuras, então, encontrar pessoas compatíveis para troca de experiências/conhecimento e, quem sabe, mandar umas quecas tântricas?
Ahah. Para mim, cada concerto é uma experiência tântrica. Tantra é expansão, logo, sempre que tenho a oportunidade de partilhar a minha música e a minha filosofia, conheço pessoas, troco ideias e também me enriqueço muito, a nível pessoal. Diria mesmo que a maior dádiva de poder tocar, compor, dar concertos, é a oportunidade de ter uma família de amigos por todo o planeta. Mas sim, já aconteceu conhecer pessoas em concertos por quem me apaixonei, sim. E com quem vivi histórias, digamos, tântricas. O maior tantra é, sem dúvida, quando as pessoas se unem numa mesma ressonância. Aí, atingimos uma espécie de êxtase colectivo que nos dá força e fé a todos. Acredito que existe um campo invisível, uma espécie de teia-de-aranha, que nos une a todos. Onde os sonhos colectivos se encontram. Em algumas das tuas músicas, existe um cariz épico na intensidade com que as cantas. Como se as várias vozes viessem de um lugar profundo do teu interior. Às vezes, não pensas: "Foda-se, fui eu que acabei de cantar isto?"
Quando componho ou quando dou concertos sinto que, em certos momentos, entro numa espécie de estado alterado de consciência. Muitas ideias, melodias ou bocados de letra, surgem espontaneamente, em sonhos, em meditações, ou em momentos de "stream of consciousness". Como sou muito ligada ao yoga e ao xamanismo, acho que, quando estou em palco, acabo por me ligar a todas as minhas influências. Então, isso expressa-se, por vezes, na forma de crescendos, progressões, variações de acordes, improvisações intencionais… Muitas vezes é como se eu já estivesse a ouvir o que vou cantar a seguir, como se estivesse a sonhar. O som abre outras dimensões. Durante a tua vida, o conhecimento xamânico fez parte do teu desenvolvimento como artista. Para os que pensam que todas as drogas são pecado e Deus castiga, que lhes podes dizer para explicar a origem das tuas experiências com psicoactivos ou alucinogénicos?
Em Vilar de Mouros de 2001, tu deste-me cogumelos mágicos e eu nunca mais fui a mesma pessoa. A origem foste tu! A nível xamânico existem muitas tradições diferentes, umas usam psicoactivos, outras não. O xamanismo defende que toda a natureza é sagrada e toda a natureza nos ensina. Colocar tudo no mesmo saco e chamar-lhes "drogas" é uma visão extremamente redutora e ignorante, baseada em propagandas de controlo da mente espalhadas no século XX. Convenhamos que plantas sagradas de poder e cura como o san pedro, peyote, ayahuasca, ou cogumelos são utilizadas há milhares de anos em cerimónias de cura sagrada, havendo inúmeros registos de pessoas que se curam tanto de doenças físicas, como psicológicas. É mais acertado dizer que a indústria farmacêutica vende "drogas", porque estas apenas tratam sintomas, e nada curam, e criam dependência por parte das pessoas, porque é um grande negócio, e faz parte do "sistema". Para quem se interessar por esta questão, eu aconselho que leiam "O pão dos Deuses" do Terence Mckenna, um antropólogo absolutamente visionário, que, na minha opinião, devia ser estudado em todas as universidades. Mas o que procuraste nestas experiências?
O que busquei nas minhas experiências foi, acima de tudo, ter muito respeito e humildade pela sabedoria e pelo poder curador das plantas. É difícil colocar por palavras uma experiência que nos liga à vida de uma forma tão pura e profunda que está além de qualquer conceito ou palavra, mas que é uma presença tão forte e tão infinita, que deita por terra todos os nossos medos e ilusões de separação. Como bissexual, achas que é importante assumir uma posição relativa a assuntos LGBT ou, nos dias de hoje, já não há necessidade para ser redutor na definições que utilizamos?
Acho que o amor é algo que transcende idade, nacionalidade, religião ou género, e que cada vez mais pessoas se permitem sentir um amor sem fronteiras. O grande limite a isto é, a meu ver, o receio da opinião e do juízo dos outros, porque até acho que muitas pessoas se estão a abrir cada vez mais. Mais do que atracção, o amor é, também, ligação, e isso nós podemos sentir com qualquer alma, independentemente do seu sexo. A minha posição relativamente a este assunto é que todos nos devemos libertar do receio do juízo dos outros, pois isso é uma escolha baseada no medo que só nos faz andar para trás. No meu caso pessoal, a partir do momento em que me aceitei, perdi muitos falsos amigos e fiz muitos amigos verdadeiros, o que me permite ter uma vida muito mais autêntica, sincera e feliz. Vários dos meus casos foram com mulheres, que até me conhecerem se julgavam heteros. O que quer dizer que talvez por me sentirem tão confortável e aberta com a minha sexualidade, conseguiram sentir-se à vontade para se deixarem levar de forma espontânea e se permitem sentir a vida tal e qual ela é, sem limites de género, e explorar a sua própria sexualidade. Já tive namorados e namoradas e o meu amor é igual. Não há diferença. O que achaste de vir a Guimarães tocar dentro da casa de alguém durante o noc noc?
Acho a iniciativa excelente, já tinha participado no Caldas Late Night em 2010, e acho revolucionário que a cultura chegue a todos, de forma tão intimista, acolhedora e cúmplice. Há algo de muito mágico em conversas com as pessoas sem fronteiras, sem egos e sem máscaras. Acima de tudo, vejo eventos como este, como exemplos de que basta vontade para tudo se mobilizar, para que algo aconteça. As pessoas comunicam, conhecem-se, partilham. Deixa de haver separação, alienação, e as cidades tornam-se aldeias. Reduz-se o medo, a distância. É um grande passo para haver mais cooperação, colaboração e abundância para todos, de muitas maneiras, através apenas da oferta do que se tem e do que se é. Aqui e agora, de todos para todos. Presença. Desprogramar. Ser e estar, sem burocracias e sem lobbies e sem cunhas. A Teresa Gabriel (e todas as suas múltiplas personalidades) está a trabalhar no seu novo álbum, que estará disponível na Primavera. Por enquanto, podem escutar alguns dos seus temas na sua página, ou ver onde vai ser o próximo concerto através do [Facebook](http:// http://www.facebook.com/teresa.b.gabriel1). Fotografias por Rui Vaz Ribeiro, Asa Mary, Fernando Rocha e Luís Pedro Castro