A Criação da 'Smart Favela' na Índia
Várias grandes estradas cortam o labirinto de becos de Dharavi

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Tecnologia

A Criação da 'Smart Favela' na Índia

A luta da comunidade de Dharavi, em Mumbai, para ter acesso à tecnologia.

No mundo urbano emergente, há um cálculo tão simples quanto desigual: à medida que as cidades expandem, as favelas se alargam. Em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que em Dharavi, a maior habitação informal de Mumbai, na Índia. Moradia de um milhão de pessoas, o local é considerado o habitat mais denso do planeta. No meio de tanta gente e pobreza, os serviços públicos mais básicos são praticamente inexistentes.

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O futuro do local é incerto devido à determinação do governo indiano de criar smart cities ou, em bom português, cidades inteligentes. Cerca de cem municípios indianos ganharão recursos tecnológicos para trazer mais eficiência e qualidade de vida para seus habitantes. Mumbai é um deles. O problema é que, no início desse redesenvolvimento, os governos estadual e municipal estão tentando apropriar e limpar as periferias sem ouvir os moradores.

Dharavi resiste há décadas às intrigas de políticos e desenvolvedores. Antes uma vila de pescadores no subúrbio de Mumbai, Dharavi foi engolida pela cidade em 1956 e agora está localizada próximo a um novo bairro comercial e entre duas grandes linhas de trem.

Várias tentativas de implementar melhoras na infraestrutura se definham à medida que os desenvolvedores e especuladores imobiliários disputam a aprovação para escavar o bairro. Lidar com reformas em favelas, dizem os moradores, está atolada em interesses individuais.

Pôsteres devocionais e retratos de família pendurados na casa de Gauri Shankar VIshwakarma e Maltidevi Vishwakarm em Dharavi.

Há, por outro lado, um discurso de empoderamento emergindo do impasse ideológico sobre o futuro da Dharavi. Um movimento crescente de ativistas e urbanistas busca afastar a classificação de favela do bairro para enfatizar que Dharavi também pode ser uma comunidade incubadora de empresas. O desejo do grupo é fazer com que os moradores tenham mais participação no processo de redesenvolvimento do bairro.

"O preconceito reina aqui", diz Rahul Srivastava, co-fundador do laboratório urbano experimental e ação coletiva URBZ. "Se você pertence a uma comunidade marginal na cidade, então seu habitat é quase uma favela de fato… Essa atitude, esse olhar preconceituoso e esse tratamento começam a sugar todas as possibilidades de melhorar a infraestrutura cívica."

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Mais de 50% da população global vive em cidades e se espera que o número suba para 66% até 2050, de acordo com o Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos da ONU. Mais: cerca de 2,5 bilhões de pessoas estão mudando para regiões metropolitanas em todo o mundo em busca das oportunidades socioeconômicas da vida urbana. Esse movimento em massa é acentuado na Ásia, África e América Latina. Nas últimas décadas, a China liderou o desenvolvimento de infraestrutura, mas parece que a Índia tomará o lugar.

Kanan Ayyapa Yadav é dono de uma das muitas lojinhas de conveniência espalhadas pela Dharavi.

O problema é que, como se vê pelas ruas indianas, o modelo de desenvolvimento centrado em automóveis e orientado ao consumo é uma abordagem duvidosa para expansão urbana. Daí vem o apelo da campanha do primeiro ministro indiano, Narendra Modi, para criar as cidades inteligentes. Em sua definição mais básica, uma smart city é aquela motivada por melhorias nas tecnologias de comunicação e informação capazes de aumentar a qualidade de vida, reduzir os custos municipais e alocar melhor os recursos naturais ao engajar os constituintes e responder às necessidades.

"Deve ser uma abordagem progressiva", reiterou Modi. Uma smart city significa uma cidade que está dois passos à frente das necessidades básicas de seus residentes. "Em toda a Índia, no entanto, as cidades raramente são capazes de oferecer saneamento básico, água potável e energia consistente a seus residentes."

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As deficiências de infra-estrutura são muito fortes em Mumbai, onde 9 milhões de pessoas vivem em áreas tidas como favelas. Em Dharavi a situação é de decadência. O crescimento irregular dentro de seus dois quilômetros quadrados deixou o local sem acesso a água potável mesmo estando próximo a duas grandes linhas d'água. Há um toalete para cada 1.400 residentes. Doenças previsíveis transmitidas pela água, como disenteria, febre tifóide e cólera, correm soltas nas casas, sobretudo durante a época de monções. Os serviços municipais mais básicos não são oferecidos à maioria dos residentes do local.

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Ramesh War, Mahesh Kumar e Bablu trabalham em muitas indústrias artesanais espalhadas pela Dharavi.

As barreiras de desenvolvimento com que Dharavi se depara foram agravadas graças à negligência e à corrupção municipais. Ao longo da última década, o bairro fez parte da campanha política para criar uma Mumbai livre de favelas até 2022, mas grande parte dos fundos para habitação foi desviado ou embolsado. Segundo moradores e ativistas, Dharavi está no limbo. As autoridades municipais que deveriam supervisionar seu redesenvolvimento, a Slum Rehabilitation Authority (SRA, sigla em inglês), fez muito pouco na última década para melhorar as condições de vida do plano.

"A reabilitação das favelas se tornou uma boa ferramenta para as pessoas ganharem dinheiro", disse Jockin Arputham, presidente da Slum Dwellers International e ativista de longa data dentro da Dharavi. "Os políticos usurpam."

Akash Rajesh Chaurasia é dono de um espremedor de cana na Dharavi.

A Dharavi é, de muitas formas, um dos bairros mais dinâmicos de Mumbai. Sua verdadeira cara é de esperança e ambição. Apesar de ser designada como favela, a produção econômica de indústrias artesanais dentro do bairro alcança mais de 1 bilhão anualmente. Os lares são mantidos arrumados e limpos. Os moradores da Dharavi também reciclam grande parte do lixo da cidade, o que leva peritos a acreditarem que Mumbai seria rapidamente enterrada em seu próprio lixo sem esse espírito de cooperação.

Muitos residentes querem construir a partir do que já existe lá e deixar Dharavi se adaptar às inovações de modo natural. Se a SRA expandisse o acesso à água potável, construísse mais banheiros públicos e oferecesse melhores serviços sanitários, grandes melhorias na qualidade de vida seriam rapidamente alcançadas. E encorajaria os residentes a investirem mais em sua comunidade.

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Mas, mesmo com as tentativas de mudar o discurso sobre o futuro da Dharavi, a ameaça de destruição iminente se mantém. Especulações imobiliárias desenfreadas continuam a desvirtuar o futuro do destino do bairro.

O governo do estado de Maharashtra, que tem jurisdição em Mumbai, está tentando aprovar uma lei que elimina a possibilidade dos residentes de se oporem a planos de desenvolvimento da SRA se a maioria da comunidade decidir por sair do bairro. Tal política de habitação compromete os direitos fundiários de milhões de pessoas que vivem nas chamadas favelas e que não estão satisfeitas com a compensação oferecida pelos desenvolvedores. Os moradores sabem que os contratos para redesenvolvimento de terreno valem bilhões de dólares.

Esses, digamos, pântanos de desenvolvimento minam as chances do primeiro ministro Modi conseguir alcançar os objetivos da Smart Cities Campaign. Se a lógica da politicagem prevalecer, a Índia não conseguirá dar um salto para dentro da era das smart cities. Reduzir bairros como a Dharavi a escombros não vai magicamente tornar Mumbai uma cidade "smart" ou livre de favelas.

Namdeo Shinde exibe seu corpo de halterofilista em sua casa na Dharavi

"Desenvolver um novo protocolo de como o redesenvolvimento é feito é o que o povo da Dharavi quer", disse Sheela Patel, diretora-fundadora do grupo de advocacia SPARC. "É incrível — de 2004 a 2014 Dharavi resistiu a esses planos externos e não conseguiram desenvolver nenhum projeto nesse tempo." Segundo ela, políticas habitacionais atuais não tratam as barreias de desenvolvimento a longo prazo com que Mumbai se depara e não levam em consideração o imenso capital social perdido ao dividir essas comunidades.

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Interesses individuais são mais fortes do que o bem público em Mumbai. Muitos grupos comunitários vivem com medo de perder tudo para os desenvolvedores poderosos com conexões políticas. A corrupção corre solta dentre as 17 autoridades bizantinas estatais e municipais que administram o crescimento da cidade. Todas elas querem uma fatia do bolo de especulação imobiliária. Tal rivalidade mútua só tornará as coisas piores em longo prazo, dizem os ativistas, especialmente quando a população da região metropolitana romper os 40 milhões, o que se espera que aconteça até 2050.

As crianças na Dharavi crescem em comunidades fortemente unidas e vagueiam entre as casas.

Apesar das chances estarem contra a Dharavi, muitos continuam com esperanças de que as autoridades municipais acordarão para o fato de que escavar bairros não pode ser o primeiro passo para o redesenvolvimento.

As mesmas tecnologias de comunicação e informação que estão fazendo a Smart Cities Campaign também estão sendo usadas para reportar corrupção e organizar protestos. O primeiro passo de uma smart city real é proteger os direitos fundiários e garantir acesso total a serviços municipais básicos. Milhões de pessoas que vivem nas chamadas favelas não vão simplesmente desaparecer, sobretudo em um bairro como a Dharavi, que está mostrando um senso de comunidade e orgulho contínuos.

"A questão não é que eles não querem desenvolvimento. Eles querem", disse Sheela Patel. "Mas eles querem um desenvolvimento que funcione para eles, para que suas famílias para criem bairros, formas com as quais eles possam continuar crescendo e desenvolvendo tanto seus locais de trabalho como o doméstico."

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Os objetivos da Smart City Campaign são louváveis. Eles demonstram previsão e dedicação clara à sustentabilidade que países nunca implementaram. No entanto, os moradores querem saber se de fato poderão aproveitar as oportunidades socieconômicas da vida urbana.

Destaque da mídia e da política, Dharavi poderia ser um lugar excelente para criar um modelo de desenvolvimento que demonstrasse sensibilidade a seus moradores e permitisse sua participação em um redesenvolvimento justo para o bairro. Responder às necessidades dos constituintes sempre será a pedra fundamental mais importante para criar uma smart city e ajudar a gerar um novo paradigma de design participativo na Índia e em outros lugares.

A reportagem para essa matéria foi possível graças a The Pulitzer Center for Crisis Reporting, ao MIT Center for Advanced Urbanism e a The Megacity Initiative.

A New Vision for Bombaim Slum

de

Sensirium.Works

no

Vimeo

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Tradução: Julia Barreiro