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Entretenimento

Terry Zwigoff

Terry Zwigoff é cineasta, bandolinista e colecionador de discos. Recentemente falei com ele pra marcar o acontecimento: a sagrada Criterion Collection está trazendo de volta ao mundo novas edições dos primeiros dois filmes de Zwigoff.

Terry Zwigoff é cineasta, bandolinista e colecionador de discos. Recentemente falei com ele pra marcar o acontecimento: a sagrada Criterion Collection está trazendo de volta ao mundo novas edições dos primeiros dois filmes de Zwigoff, dois essenciais documentários norteamericanos.

O primeiro, Louie Bluie (1985) traça o perfil do multi-instrumentista de string-band Howard Armstrong, cujo pseudônimo como músico dá nome ao título. O músico—magnético, irreverente, e absurdamente talentoso—é um ótimo tópico. Quando Zwigoff o achou ele já era um senhor de idade vivendo em condições esquálidas, muito além de suas glórias do passado, mas ainda em posse de uma vivacidade com que poucos são abençoados. Estou muito feliz que esse filme foi ressucitado.

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O segundo documentário é o famoso Crumb (1994). Você provavelmente já deve conhecê-lo bem. É um íntimo e desconfortável retrato de não apenas o artista Robert Crumb, mas também de seus problemáticos e brilhantes irmãos, Max e Charles. Por vezes hilário ou extremamente triste, é indiscutivelmente um clássico. A nova edição é completada com cenas deletadas, vários áudio-comentários e uma galeria de fotos de produção e do acervo da família Crumb.
Zwigoff mora em São Francisco e foi de lá que conversei com ele por telefone, há duas semanas.

Cena de Louie Bluie

Vice: Tanto Louie Bluie quanto Crumb, cada um a sua maneira, tem suas raízes na sua paixão por música antiga.
Terry Zwigoff: Eu comecei a gostar dessa coisa toda depois de ter me mudado para São Francisco, em 1970. Meu primo morava lá. Ele tinha mais ou menos a minha idade e sempre fomos amigos, sempre vivemos próximos um do outro. Ele estava saindo com uma menina que trabalhava, se não me engano, na Capp Street Community Center. Era um lugar que dava aulas de música pra crianças a um custo reduzido. Ela disse ao meu primo que eles fariam um bazar beneficiente anual, tipo uma feira de antiguidades, pra arrecadar dinheiro, e eles tinham acabado de receber uma pilha enorme de discos de 78 rotações—tipo, milhares deles. Nos deixaram entrar no bazar antes do público em geral e olhamos tudo o que eles tinham. Meu primo e eu já éramos um pouco interessados em discos antigos na época, mas mesmo assim não conhecíamos muito sobre o assunto. Então a gente deu uma olhada. Até hoje lembro que um dos discos que a gente achou era do Mack Rhinehart e do Brownie Stubblefield tocando Mellotone, que provavelmente hoje custa uns 1000 dólares.

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Que incrível!
Pois é, é um disco muito raro. Meu primo acabou ficando com ele. Além disso não tinha mais nada tão emocionante. Nada tipo uma pilha só de Robert Johnson ou coisas assim. Mas tinha ótimos discos lá. A gente levou um monte pra casa e os escutamos, e isso foi o começo do desenvolvimento do nosso senso musical. No começo parecia tudo muito estranho pra gente—não a parte de blues, porque crescemos ouvindo coisas como os Rolling Stones tocando versões de blues, como “Love in Vain.” Mas o que achamos na parte de jazz… eu não consiguia prestar atenção naquilo. Soava de um jeito que não me atraía muito. Até parecia um pouco bobo.

Era tipo jazz antigo de Nova Orleans?
Alguns eram, mas outros eram mais de swing. O que era da década de 20, que depois eu acabei pegando um gosto enorme pelo estilo, soava muito caricato. Demorei uns dois anos pra realmente sentar e ouvir esses discos, especialmente a parte mais acústica, do comecinho dos anos 20, tipo o primeiro do Louis Armstron ou do King Oliver, e realmente escutar o que estava acontecendo, tipo, “Que tipo de fraseado esse cara colocou aqui? Que arranjo é esse? Por que isso é bom?” Depois de um tempo comecei a entender as coisas. Então, no começo, eu não curtia muito, mas hoje tenho certeza absoluta que aquele foi um dos melhores tipos de música já criados de todos os tempos.

Isso se tornou uma parte importante da sua vida.
Logo no começo, lembro de receber pessoas em casa, aí elas viam minha coleção e falavam, “Nossa, que discos são esses?” E eu dizia, “Vou tocar um pra você ouvir,” e colocava algo como “Struttin’ With Some Barbecue” ou “Once in a While”, do Louis Armstrong and His Hot Five—que sempre foram meus álbuns preferidos dele—e aí as pessoas ficavam lá sentadas e eu podia ver nos olhos delas que só estavam esperando aquilo acabar. Não conseguiam absorver; não conseguiam entender ou processar aquilo.

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Mas mesmo assim seu primeiro filme foi sobre uma importante figura que fazia esse tipo de música.
Bom, quando eu fiz Louie Bluie, já tinha escutado e tocado bandolim e ragtime por anos, e sentia que as pessoas iriam gostar do filme, que iriam achar engraçado e divertido, assim como iriam achar a música boa. Eu sempre achei que a ideia do filme fosse ótima e estava muito empolgado. Quando comecei a tentar colocar o filme em festivais, pensava, “As pessoas vão ficar loucas com isso!” [risos] Mas a ficha só foi cair depois que talvez 12 pessoas que estavam na sala vendo o filme em um festival ficaram de saco cheio e a maioria saiu no meio.

Te entendo. Eu poderia ficar horas assistindo a todo material que você coletou do Howard Armstrong.
Ele era ótimo como personagem, e os críticos foram gentis quanto a isso. Mas o filme nunca encontrou um público. Foi exibido no máximo uma semana em cada cidade grande.

Mas a Criterion Collection parece ser um ótimo veículo para o filme.
Graças a Deus eles apareceram, porque senão esse filme não existiria mais em uns dois anos. O rolo de filme original estava se desintegrando. Eu pensava que esses rolos de segurança não tivessem esse tipo de problema.

Esse tipo de segurança parece ser inerente ao nome.
Tá bom então. [Risos] Obrigado, Kodak. E aparentemente a Fuji e todas essas empresas de película fazem tudo na mesma base de acetato.

O Martin Scorsese não criou um projeto pra resgatar um monte desses filmes que estavam desintegrando?
Eu não sei. Mas mandei uma cópia do Crumb pra ele recentemente—uma cópia em 35mm pro seu aquivo pessoal. Eu tinha uma extra. E agora que a Criterion está fazendo isso e preservando, tinha umas cópias paradas aqui e pensei, bom, eu não preciso de três delas. Posso pelo menos passá-las pra frente.

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Não tem pessoa melhor para se dar uma cópia do seu filme.
Ele é um cara bacana. Só o encontrei uma vez, mas temos nos correspondido e ele sempre me empresta filmes absurdamente raros. Você já viu um chamado Two Weeks in Another Town, do Vicente Minnelli?

Não…
É inacreditavelmente bom. Tão surreal e bizarro… Não existe nada que se compare. Tem o Edward G. Robinson como um atormentado diretor de cinema que fica rolando na cama, duvidando da sua própria produção. O Kirk Douglas está no filme também. É como um filme paralelo ao Assim Estava Escrito, mas muito melhor.

Pô cara, agora eu quero ver esse filme.
Espero que algum dia o lancem. Mas é, eu amo a Criterion e um monte de filmes antigos que eles já lançaram. Pensei, “Quem mais poderia ter lançado?” Fiquei extremamente lisonjeado quando eles me pediram pra distribuir meus filmes.

Cenas de Louie Bluie

Você filmou o Louie Bluie porque achou um disco meio estranho do Howard Armstrong e queria saber quem era o cara por trás disso.
Foi isso mesmo. Mas não foi somente ter ouvido o disco que criou esse misticismo em mim. Eu também descobri que eu sou um dos donos das únicas duas cópias que existem. Isso é muito raro, não importa o disco. Normalmente você encontra, sabe, umas 30 cópias de cada disco do Blind Lemon Jefferson ou do Robert Johnson. Então isso acabou se tornando mais importante ainda pra mim, por causa dessa raridade. E acabei ficando, de certa maneira, obcecado por isso, porque eu também estava tentando aprender a tocar as músicas. Eu não queria estragar o meu disco de tanto escutar, então acabei gravando em uma fita cassette e diminui um pouco a velocidade das músicas. Aprendi todas as notas, mas não soava nem um pouco bem quando eu tocava porque o Armstrong tinha essa vistuosidade incrível—uma técnica deslumbrante que é realmente difícil de imitar. Eu vejo pessoas no YouTube tocando as músicas dele e é tipo, “Bom, parece mais que você está usando uma máquina de escrever, porque música você não está tocando.”

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Claro.
Então eu quis descobrir qualquer informação sobre o cara pra escrever um artigo para uma revista britânica chamada Old Time Music. Ela já sai faz uns 20 anos e sempre tem artigos de colecionadores de discos. Uma matéria típica da revista seria uma com foto de algum músico da década de 20, depois sua discografia e uma biografia pequena embaixo. Era isso que eu queria escrever, e simplesmente presumi que esse Louie Bluie já estivesse morto. Mas aí eu fiz uma pesquisa de detetive, fui atrás e achei o cara vivo em Detroit. Quando o conheci, pensei na hora, “Alguém tem que fazer um filme com esse cara.”

E na época você não tinha nenhuma experiência em filmar nada.
Quando eu acordei no primeiro dia de filmagem, estava tão louco de pânico que ficava vomitando. Estava tipo, “Meu Deus, OK, isso aqui é um tripé, e é assim que é uma película. Agora, pra onde eu aponto a câmera e quanto tempo eu deixo filmando antes de mudar o ângulo?” Eu não sabia nada sobre cortes-rápidos ou o quanto filmar em cada cena. Filmei por uma semana e, quando a grana da minha poupança acabou, voltei pra São Francisco. Dois amigos meus que já eram documentaristas de sucesso concordaram em me ajudar. A gente começou a revelar o filme e uma das minhas amigas, a Vickie, se tornou editora. Olhávamos os negativos juntos e ela dizia, “Sabe, acho que ajudaria se você fizesse um corte-rápido pra esse cara escutando o outro falar.” Aí eu juntei mais uma grana, voltei, e continuei filmando.

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Me surpreendeu, quando eu escutei o comentário no DVD do Crumb, que algumas das situações ali foram, na verdade, arquitetas por você. A coisa toda parece muito natural.
Você tem que forçar algumas situações para que outras aconteçam.

Por exemplo, Louie Bluie abre com um plano do Armstrong se barbeando. Isso é estranhamente íntimo. Mas talvez fosse fácil pedir a ele para fazer isso porque você não é um completo estranho pra ele, ou pro Crumb.
Eu e Crumb somos velhos amigos, como você sabe. Éramos melhores amigos desde 1972, e quando eu comecei a filmar, já sabia muito sobre ele. Sabia a história inteira. Conheci seu pai, seus irmãos, tinha uma coleção do seu trabalho… Eu já sabia o que procurar no filme. Meu problema no Crumb foi como habilidosa e invisivelmente colocar toda essa informação no filme e organizá-la. Tinha muita coisa que ele provavelmente achava mais interessantes do que eu estava escolhendo pra filmar. No caso do Howard Armstrong, o que mais me ajudou foi ter sentado com ele por três dias com um gravador e deixar rolar pra pegar uma história oral. “Onde você nasceu? Como era seu pai? Onde ele trabalhava?” E ele apimentava essa história com várias anedotas que você acaba vendo no filme. Ele tinha um set de talvez 24 histórias que ele repetia umas mil vezes…

Mas todas elas muito boas.
Ah, com certeza, como aquela piada que ele conta sobre o pica-pau que pica porque seu pau tá duro. Então eu acabei gravando tudo isso, o que me ajudou muito quando estava filmando. Ficava pensando, “O que mais eu posso filmar com a cunhada dele? Eles tocaram uma música gospel muito legal, mas o resto da conversa no piano é um pouco estranha. Vamos levá-lo para fora pra caminhar com ela.” E aí a gente chamava o Howard de lado e falava, “Então…”

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“Então Howard, conta pra ela aquela piada suja…”
É, sobre o pica-pau. [Risos] Então eu fazia isso de vez em quando. Era meio estranho no começo, porque parecia muito artificial. Minha ideia de abordagem inicial era a de ficar em seu apartamento e filmar as minúcias de seu dia-a-dia.

Como a versão do Fred Wiseman sobre o Howard Armstrong.
Isso. E eu pensava que isso seria incrível porque ele estava morando numa situação desoladora, em um prédio do governo horrível em Detroit. Quando eu estava lá nos anos 70, já parecia uma zona de guerra de Beirute. Ele tinha um apartamente muito diferente. Ele o decorou com seus enfeites e quadros. A sua rotina era acordar de manhã e assistir um desses game-shows tipo Acerte o Preço em uma tevezinha em preto-e-branco de nove polegadas, preparava um pão com mortadela e tentava acordar. Aí ele passava o dia andando pela região do prédio, e eu achava isso muito triste. Eu pensava, “Bom, eu posso contrastar sua vida de hoje em dia com uma versão bem romantizada que eu tenho na cabeça do que foi crescer no sul do país.” Mas uma série de circunstâncias me levaram pra longe desse conceito. Em primeiro lugar, eu não consegui a permissão de filmar no seu apartamento. Era subsidiado pelo governo.

Um baita obstáculo.
Eu fiquei tipo, “Meu Deus, o que eu vou fazer agora?” Então eu tirei fotografias do apartamento dele inteiro, 360 graus. Eu tinha um amigo que tinha um galpão que a gente podia usar em Chicago, e o Howard me deixou levar sua sala de estar inteira lá de Detroit.

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Não acredito!
[Risos] Pois é, então eu fingi ser a casa dele. Eu não queria contar pra ninguém que tinha feito aquilo! Agora tudo bem porque já fazem 25 anos, né? É um documentário muito estranho.

É.
Eu acho que você sempre deve esperar passar uns 20 anos antes de gravar um comentário para algum filme que você fez. Todo mundo já tá morto…

E você pode deixar de lado um monte de coisa de ego, também.
O comentário que o Coppola gravou pra O Poderoso Chefão foi feito anos depois, e é um dos melhores comentários de todos os tempos—quase tão bom quanto o filme. Inacreditáveis as histórias que ele conta.

Você continuou próximo do Howard Armstrong depois que as filmagens acabaram?
Sim, a gente ficou muito amigo. Passamos quase um ano promovendo o filme juntos—ele, eu e um amigo dele, músico do filme, Ted Bogan. Seja lá o festival que fosse mostrar o filme, eu tentava trazer eles juntos. A gente até conseguiu que alguns festivais os trouxessem. Ficamos curtindo o Havaí por um semana, tocamos música e jogamos carta, durante um festival que teve por lá. E fomos pro festival de Telluride juntos. Quando o filme entrava em cartaz em algum lugar, às vezes o próprio cinema trazia eles para um show no dia de abertura. É isso, a gente continuou próximo sim. Nos correspondíamos. Eu até pedi uma cópia da Whorehouse Bible dele.

Cara, esse livro parece ser a coisa mais incrível do mundo quando ele folheia no filme. É uma compilação caseira dos desenhos e histórias de sexo dele, tudo escrito à mão e bem ilustrado. Nunca publicaram os livros dele?
Eu tentei fazerem publicar. O Hugh Hefner estava bem interessado. Ele tinha gostado muito do filme. Até me chamou para a mansão uma vez. Aliás, ele tinha gostado de Crumb também. O exibiu em uma dessas noites de filme que ele faz toda sexta-feira. Ele exibe um filme e chama os amigos pra assistir, um pessoal das antigas, tipo o Mel Tormé…

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Ah, o velho Velvet Fog.
Pois é. Ai você olhava pra trás e via o cara do I Spy. Foi uma noite surreal. Mas o Hefner é um cara muito boa pinta.

Ele tem bom gosto com tanta coisa, mas não tanto nas últimas décadas, infelizmente.
Mas ele é um cara muito firmeza. Sabe um monte sobre cartoon e jazz. Quando eu estava indo embora aquela noite ele falou, “Qual é a próxima coisa que você vai fazer?” Eu disse, “O produtor do Woody Allen me ligou e eles estão interessados em fazer um documentário sobre ele, e eu sou um grande fã do Woody, então acho que eu vou fazer isso.” Aí ele falou, “Ah, isso é bacana. Mas se não der certo e se você algum dia quiser fazer esses vídeos que a Playboy faz…” Na época eles estavam fazendo uns vídeos com as Coelhinhas, e eles vendiam muito. Eles sempre estavam no top 10 de alugueis e vendas de filmes toda semana. Eu nunca tinha visto um, então disse, “Hm, valeu.” Ele disse, “Esse aqui é o meu telefone. Se você estiver interessado, liga aí. Nós gostaríamos que você fizesse uns vídeos desses.”

E você ligou?
Claro, por curiosidade. Eu disse, “Tenho que confessar que nunca vi esses vídeos.” Aí me mandaram uma caixa cheia deles. Tinham um formato bem engessado, 30 minutos com a Coelhinha do Mês andando em um cavalo branco em câmera lenta numa praia com as tetas balançando.

Ah, eu lembro desses vídeos. Consegui descolar alguns no começo da minha adolescência.
Mas é claro. [Risos] Então eu liguei pro cara de volta e falei, “Vocês pagam bem pra fazer esses vídeos?” Ele disse, “Na verdade não, todo mundo quer fazê-los.” Eu disse, “Bom, talvez eu possa fazer um por diversão, mas vocês teriam que ser abertos às minhas maneiras de filmar.” Ele falou, “Vou perguntar pro Hef.” E logo depois ele voltou, “É, não rola, esses vídeos são nosso ganha-pão. A gente faz uma fortuna com eles. Não vai dar pra mudar.”

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Quer dizer que você não quis passar vaselina na lente e filmar leçois brancos ao vento?
Rá. Não. O negócio todo me lembrava o que os estúdios faziam com os negros na década de 20. É raro encontrar uma gravação de uma string-band de negros ou jug-band tocando uma música popular—ou qualquer coisa que não fosse blues—apesar de que, no cotidiano, o repertório desses músicos era de pop. Mas eles não conseguiam gravar essas músicas. Alguns até conseguiram, mas o que as gravadoras queriam era que os negros continuassem tocando blues porque era o que vendia. E queriam que os brancos tocassem músicas caipiras. Mas na verdade, os dois grupos influenciaram um ao outro.

Cenas de Crumb.

O DVD novo do Crumb tem um comentário em áudio com você e o Roger Ebert.
Sabe, eu nunca parei pra escutar o comentário do Ebert desde que a gente gravou. Eu deveria, porque provavelmente me repeti muito. Eu me repeti, né? Você ouviu o meu comentário solo?

Ouvi, mas não tem muita repetição. O Ebert fica um tempão fazendo um perfil seu. É interessante. Os comentários dele são perfeitos, mas às vezes ele fica fazendo uma análise psicológica das pessoas no filme e você meio que destruiu essas análises.
[Risos] Sério?

Você fala tipo, “Ah, não foi bem assim.” Mas algo que me marcou logo no começo do comentário foi quando você disse que o filme estava prestes a ser terminado e você estavava com uma dor crônica tão escrota nas costas que começou a dormir com uma arma debaixo do travesseiro caso não aguentasse mais e decidisse se matar.
Sim, foi isso mesmo. Eu acabei desenvolvendo uma dor nas costas e foi piorando cada vez mais. Estava indo em médico e fazendo exames e eles falavam, “É um problema de hérnia de disco, só vai piorar, você precisa de cirurgia…” Eu acabei ficando de cama por anos, só me arrastando de vez em quando para fazer fisioterapia no hospital. Cheguei ao ponto de achar que minha vida não valia nada, que eu deveria arranjar uma arma e achar coragem pra me matar. Dependia de amigos e vizinhos pra me trazerem comida todos os dias.

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Então você ainda estava de cama quando começou a filmar Crumb?
Eu estava com uma dor agonizante, especialmente durante as cenas com o Charles Crumb, que são as melhores cenas do filme e provavelmente as primeiras que eu filmei, porque sabia que tinha que filmá-las a qualquer custo. Era a parte mais importante pra filmar. Mas eu lembro, naquele dia, que minhas costas estavam me matando. Eu sentia como se alguém estivesse com um maçarico atrás de mim. Entre cada tomada eu me jogava no chão pra aliviar a dor. Quando eu deitava, melhorava.

Uau. O Charles e o Robert perceberam em algum momento como você estava mal?
Eu consegui esconder bem. Infelizmente naquela época eu não entendia nada de drogas. Senão eu provavelmente teria me entupido de remédio só pra conseguir ficar de pé.

Você provavelmente faria um filme muito diferente se estivesse dopado de remédios o tempo todo.
Exatamente! Mas depois, finalmente, eu estava ouvindo o programa do Howard Stern e ele começou a falar sobre um cara chamado John Sarno que tinha curado a dor nas costas do Stern. Então eu o procurei e o cara salvou minha vida. Aliás, acabei de salvar a vida de uma mulher que eu soube que também sofria com a dor. Ela literalmente tinha uma arma e ia se matar. Ela me disse, “Eu contei pro meu namorado, pra minha família e todos os meus amigos que você salvou minha vida.” Eu disse, “Tudo o que eu fiz foi ter falado desse livro pra você! Não me agradeça. Agradeça a esse cara, o John Sarno.”

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De uma forma reduzida, como é esse tratamento?
O tratamento é mais para entender o que está causando a dor. É uma dor real, não é imaginada, mas é pela pessoa constantemente tensionar tanto as costas que a circulação não limpa as toxinas que se acumulam nos músculos. A teoria é mais baseada nos tecidos musculares e na circulação do que o disco em si. Ele diz que uma vez que você percebe onde está o problema, e para de ouvir os médicos que passam as informações erradas, você começa a relaxar. Eu sei que isso soa como charlatanismo.

Meio que soa como O Segredo na Oprah ou algo assim.
Pois é. É algo completamente sem sentido, e acredite em mim, eu já vi muita coisa sem sentido por aí—em razão do desespero mesmo. Então eu pensei, “OK, eu vou tentar isso aqui e tenho certeza que não vai funcionar também.” Eu sou o cara mais cínico e cético do mundo. Mas acabou funcionando.

Cenas de Crumb.

Você acabou descobrindo algo novo revendo seus dois filmes?
Sim, algo que percebi foi uma incrível série de coincidências que envolvia os dois filmes. Por exemplo, tem uma fotografia na edição da Criterion do Louie Bluie que mostra e equipe almoçando no Long John Silver. Dez anos depois, eu falo o tempo todo com o Charles e o Robert sobre A Ilha do Tesouro.

Rá, mas é claro. A obsessão do Charles Crumb sobre esse filme é enorme.
E tem também uma certa história no Louie Bluie, quando começei a fazer o artigo pra Old Time Music e acabei redescobrindo uma mulher chamada Willie Seavers em uma fazenda no Tennesse.

A mulher do Tennesse Ramblers. No filme você para nesse celeiro que tem uma banda qualquer tocando só pra ver o que está acontecendo e talvez conseguir fazer o Armstrong tocar com eles.
É, e ela estava lá e reconheceu o Howard Armstrong quando ele entrou no celeiro. A última vez que ela tinha o visto foi em 1930. A Willie Seavers ainda lembrava do Howard porque ele tinha a impressionado muito quando se conheceram.

É incrível quando eles tocam junto no filme. Mas realmente, até parece que existia tipo uma força mágica te favorecendo nas suas empreitadas.
Eu considerava essas coincidências como isso mesmo. Tipo, como se fosse uma espécie de destino, sabe?

Com certeza. E hoje não consigo pensar em Long John Silve sem pensar em Charles Crumb. É uma figura tão importante no filme. Eu sempre me emociono com ele quando assisto.
Sabe, eu tive que falsificar os votos do público que viu uma exibição teste por causa do Charles. Todo mundo queria tirá-lo do filme. Assim que eu recebi os cartões com as opiniões, disse, “Vou levar isso aqui pra casa e dar uma olhada hoje à noite.” Todas as opiniões eram bem negativas e só queriam tirar o Charles e o Maxom Crumb do filme. Então eu imprimi 100 votos em brancos em uma gráfica aquela noite e disfarcei a minha escrita com canetas diferentes pra escrever comentários tipo, “Mais Charles!” e dei os cartões pro meu produtor. Hoje eu me sinto um pouco culpado de ter feito isso.

Nada, isso foi incrível!
Eu tinha que fazê-lo. Essas exibições teste não são nada legais. É um sistema horrível.

Alguma vez conseguiu fazer o Charles se aventurar no mundo lá fora com você?
Não, ele realmente nunca saiu de casa, mesmo quando eu o conheci pela primeira vez, em 1974. E, claro, estão reprisando A Ilha do Tesouro a duas quadras de distância em um cinema do bairro. Outra coincidência bizarra. A gente contou isso pra ele e dava pra ver que o Charles queria muito ir ver, mas não conseguia. Quais as chances desse filme ser re-exibido no único cinema da cidade que mostrava filmes antigos? Provavelmente A Ilha do Tesouro não era exibido lá tinha 40 anos.

Quanto mais você menciona, mais receberá de volta.
[Risos] Eu espero.

O Charles foi diagnosticado com algum problema em particular?
Ele ficou em uma clínica para doentes mentais por um tempo e me contou que quando a mãe dele morresse, gostaria de voltar para lá. O Charles gostava da vida social da clínica. Ele ficava por lá jogando baralho e conversando com os outros pacientes. Mas não sei quanto tempo ele ficou internado e quando ele estava lá. Ele até falou disso para o filme, mas por alguma razão nunca entrou na edição final. Provavelmente meu produtor ficava falando, “Essa porra tá muito longa. Não dá pra deixar mais longa ainda!”

Quais foram os efeitos imediatos do lançamento do filme na sua relação com o Robert Crumb?
Sabe, isso nunca afetou nossa amizade. Na internet falaram que nós brigamos e depois nos reconciliamos. Mas isso não faz sentido. O máximo de problemas que tivemos foram alguns momentos quando o Crumb vinha falar comigo numa boa depois de ter uma câmera na cara por duas semanas e falava algo do tipo, “Se você não fosse o meu melhor amigo, eu diria ‘Tenho que ir ao banheiro’ e nunca mais voltava.” Acho que ele ficou um pouco chocado com a atenção que recebeu da imprensa quando o filme saiu. Naquele momento, por sorte, ele tinha acabado de se mudar pra França, então conseguiu escapar de grande parte disso. Eu lembro de produtores de shows como do Jay Leno e do David Letterman tentando contactar o Crumb pra ir nos programas deles, e claro que isso é a última coisa no mundo que ele faria.

Eu tive a sorte de ser exposto a coisas como Zap Comix quando era criança. O Crumb não era tão famoso lá atrás, no começo dos anos 80. Hoje em dia eu diria que ele é. E ele é muito consagrado também, trabalhando pra New Yorker, escrevendo o enorme Gênesis. Eu me pergunto o quanto o filme influenciou nessa transição.
Ofereceram 3 milhões de dólares para o material original do Gênesis. Ele recusou de cara, claro. [Risos] Eu falei pra ele que conseguiria uma ótima coleção de discos com essa grana.