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O fantasma da minha avó quer mandar no meu útero

As mulheres escalaram muito pela História fora para chegarem ao Alentejo do século XXI e ainda serem consideradas máquinas de fazer bebés.

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"La grand mère" de Émile Bernard, via.

Eu nasci no Alentejo. E vivi no Alentejo a vida toda, até ir para Lisboa – e agora só venho ao Alentejo ocasionalmente. E no sítio onde vivo, no Alentejo, moram muitos velhinhos e muitos ciganos. E os ciganos querem filhos. E os velhinhos querem netos. E eu também quero putos… longe. Por isso a minha avó vai assombrar-me.

Eu cresci num bairro onde a maior parte dos residentes são de etnia cigana – e, ao contrário da maior parte das pessoas, gosto dos meus vizinhos ciganos, e não tenho a menor razão de queixa. Quando era pequena, no meu bairro, brincava com duas ciganas da minha idade, a João e a Henriqueta, e com uma menina não cigana, a Márcia. Andávamos na mesma escola primária, até a João e a Henriqueta saírem da escola para irem aprender ‟lides domésticas". Eu tinha oito anos, e achei estranho, mas deixei-me estar quieta e calada.

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Hoje em dia temos todas vinte anos. Eu estou a estudar, e a Márcia está a estudar. A João tem uma filha com quatro anos, e a Henriqueta foi mãe de uma menina este verão. Evidentemente, esta prática de maternidade precoce não encaixa nos meus ideais, nem nos ideais gerais da cultura ocidental. Porém, embora eu ache horroroso, nunca disse nada a ninguém – são factores culturais, e a minha opinião vale o que vale… nada. Então, uma vez mais, calei-me.

No entanto, nem todas as pessoas gostam de estar caladas… E um dia, estava eu na mercearia do meu paizinho a trabalhar, e a mãe da João entrou, para comprar agriões. A certa altura, vira-se para mim, com um sorriso de pena, e cospe a seguinte atrocidade: "Ai, Carolina… A minha João é três meses mais nova que tu, tem o dobro do teu corpo, e já tem marido e filha… O que andas tu a fazer com a vida que ainda pareces uma gaiata? Ai…"

A minha vontade, naquele momento, foi dizer-lhe: ‟Peço desculpa se não sou semi-analfabeta de modo a melhor servir, na minha ignorância de mulher, o meu marido/primo com quem casei super nova, de modo a ser útil como máquina de procriar e cozinheira, que também lava roupa e esfrega chão. De facto sou uma miséria…".

Limitei-me a sorrir e a responder: ‟São escolhas."

Denis Mandarino, via.

Passemos às velhinhas.

Como é cliché, cada vez que há um casamento, lá estão elas: ‟Tu és a próxima!". Mas o mais irritante é quando alguém tem um bebé e as velhinhas gritam: ‟Estás quase na idade!" Como assim estou quase na idade? Nunca façam esta pergunta, porque aí é que elas nunca mais se calam. "Tens que dar netos aos teus pais e bisnetos aos teus avós. E o teu irmão ia gostar de ser tio! Ter um filho é a melhor coisa da vida! Quem é a mulher que não quer ter filhos?"

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Bem, velhinhas do meu bairro: obrigada, mas não obrigada.

Para vossa informação, estamos em 2015, já há televisão e internet, e já podemos sair de casa à noite – o nosso entretenimento no seio do lar já não passa exclusivamente por procriar. Além disso há um monte de métodos contraceptivos para impedir que esses acidentes (ou milagres, não quero ferir susceptibilidades…) aconteçam antes dos trinta.

Porém, a pior de todas, neste role, é a minha avózinha: essa senhora de cabelo de algodão doce, enrugadinha como uma passa, que eu amo com todo o meu coração, e que me diz constantemente que não vale a pena ser mulher se não vou ter filhos, porque as mulheres nasceram para ser mães…

Oh avózinha… Só porque tenho um útero não quer dizer que tenha de usá-lo! Não peguem numa coisa tão linda como a maternidade para a esfregarem na cara das pessoas como uma fatal obrigação para todas aquelas que podem ter filhos. PODEM. É uma possibilidade, não é um dever. As mulheres escalaram muito pela História fora para chegarem ao Alentejo do século XXI e ainda serem consideradas máquinas de fazer bebés. Eu nem estou a dizer "jamais". Ou talvez sim. Quando tiver de ser, se tiver de ser, será.

Para já, grito do fundo do meu egoísmo: "Eu já cá estou, e quero viver a minha vida". Depois, quando já tiver feito tudo aquilo que quero fazer, que requer não ter um puto atrelado a mim, talvez pense nisso. Até lá vou só viver com o peso dos olhares misericordiosos dos meus vizinhos, e com a promessa de que a minha avó me vai assombrar se eu não lhe der bisnetos enquanto ela é viva.