Fui a um festival gótico receber amor
Os espanhóis Àrnica. Todas as fotos por Gil Álvaro de Lemos

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Fui a um festival gótico receber amor

A oitava edição do Entremuralhas, em Leiria, foi mais um momento histórico de comunhão entre a comunidade gótica (e não só) e de devoção à música.

Sempre teve uma aura misteriosa para quem fica do lado de fora a olhar para o Castelo de Leiria, mas também sofre do preconceito de café, de quem opina sobre o que não sabe. Por isso, a VICE foi lá para dentro das muralhas e voltou em paz, como quem vem de um retiro, tal era a tranquilidade. Baralhados? Não fiquem. É, de facto, "único no Mundo e aqui tão perto", como diz o lema do festival gótico Entremuralhas, organizado pela Fade In - Associação Cultural e cuja oitava edição decorreu em Leiria, entre 24 e 26 de Agosto.

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"Apanhou-me aqui a arredar esta pedra e a metê-la no lugar dela. Eu tenho muito respeito pelas pedras e por este castelo. Uma vez estava ali em baixo a cortar mato e o chão começou a tremer…" - faz uma pausa e uma cara de quem se assustou a valer. "Estão aí muitos ossos de pessoas enterrados e eu não quero ter nada a ver com isso. Os arqueólogos sabem que anda aí muita coisa por desenterrar, mas é melhor assim. É deixar estar… que descansem mas é em paz, em nome do pai, do filho e do diabo que os leve (…) quando acabar o trabalho, vou mas é beber uma sangria".

Entre as muralhas do Castelo leiriense.

Este episódio aconteceu com um senhor que trabalha no castelo, ainda com o recinto vazio, quando este escriba saía de uma entrevista com Paulo Bragança (para ler aqui em breve). Pese embora todo o aparato visual do Festival, foi este homem, com aquela sinceridade que se encontra habitualmente em gente boa, que conseguiu levar a cabo uma conversa de tons quase fantásticos, fantasmagóricos, e sim, verdadeiramente góticos.

Conseguiu mesmo superar os diversos corpetes, correntes pesadas, botas de plataforma, os vários tons de preto ou cabelos de todas as cores, que ao longo do evento desfilaram pelo recinto do Entremuralhas, em pleno Castelo leiriense.

A par do público internacional, o Entremuralhas é um festival que em oito edições tem a particularidade de já ter recebido bandas de muitos países diferentes, sobretudo europeus, e não apenas a habitual hegemonia do Reino Unido e Estados Unidos. Mas, é também um evento de afectos, a que, em tempos, bandas já trouxeram a família inteira para passar férias e ficaram em casa de pessoal da organização (In The Nursery), onde há um projecto espanhol de um amigo da casa (Ramos Dual) com um tema chamado "Leiria Saudade", relações profissionais que se tornam relações de amizade (Simone Salvatori, dos Spiritual Front), músicos e técnicos que rodam por outros grupos e reaparecem ano após ano.

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Os lendários Tuxedomoon eram das bandas mais aguardadas, mas a súbita morte do baixista, Peter Principle, trocou naturalmente as voltas à organização. Este foi o contratempo mais marcante deste ano, mas depois ainda houve mais dois cancelamentos por doença. Para além das propostas fora do mainstream, é um Festival que goza de uma reputação internacional assinalável - seja entre músicos ou público - mas também dentro de portas, tal como afiançou o ex-Mão Morta e membro fundador dos Pop Dell'Arte (também brevemente aqui em entrevista), Zé Pedro Moura, ao dizer que já tinha ouvido falar muito bem do Entremuralhas.

É, compreensivelmente, desde sempre, mais para apreciadores e devotos, o que lhe confere uma exclusividade e ambiente ímpares. Não é difícil encontrar quem não tenha falhado uma única edição desde o primeiro Entremuralhas, mas os forasteiros são muito bem tratados e sempre bem-vindos. Se há sítio onde nunca te olham de lado, é ali. Mas, também não se pense que é uma espécie de missa onde toda a gente fala baixinho e anda em bicos de pés para não incomodar os deuses. Não, até porque as últimas bandas da noite, tendem a partir aquilo tudo (salvo seja, pois há um enorme respeito pelo património). É apenas e só, uma boa onda do caraças.

É, isso sim, sem dúvida um mundo especial. Em certa medida é um ambiente que faz um pouco lembrar aquela fase da adolescência onde se trocava música nos intervalos das aulas e onde determinadas estéticas passavam de mão em mão, como se de um segredo se tratasse. Nem era elitismo, era mesmo respeito, do género "Isso é mesmo para devolver pois é muito raro". Era essa dedicação e respeito pelo objecto que formou muitos music lovers que permanecem até hoje interessados, apesar de já viverem uma vida adulta e com outras responsabilidades.

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Conto-vos uma breve história. A 11 de Setembro de 1993, à saída da Voz do Operário, em Lisboa, a noite foi daquelas que marcaram para sempre muitas das pessoas que lá estiveram. Provenientes de Berlim, os Einstürzende Neubauten tinham acabado de dar um concerto demolidor (com a primeira parte a cargo dos Lucretia Divina, de Viseu) e, para um jovem imberbe de uma cidade mais pequena que nunca tinha experienciado nada assim, aquilo foi visto na altura certa. E bateu a sério.

À saída, um simples flyer da Messerschmitt (mais tarde Simbiose) que vendia CDs por via postal - tal como a AnAnAnA -, daqueles que uma pessoa não conseguia encontrar facilmente por aí, veio causar um impacto enorme, muito antes de generalização da Internet. É que, com aquela experiência sonora e muito visual, veio a procura de novas correntes estéticas, não só musicais mas também de outras disciplinas. Se um simples flyer mudou uma vida, imaginem o potencial de todo um Festival. De há oito Verões para cá tem sido assim com o Entremuralhas.

Abaixo podes ver mais imagens do Entremuralhas 2017, da autoria de Gil Álvaro de Lemos.

Dear Deer (França)

O artista plástico Batjoy

Team Fade In

Selofan (Grécia)

Bestial Mouths (EUA)

Simone Salvatori (Itália)

Carlos Matos, o Sr. Fade In

Bärlin (França)

Pertubator (França)