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Edição "Sai da Frente que Estou Passando"

Como a Máfia Transformou o Sul da Itália em Um Descampado Tóxico

Campania Felix se tornou Terra dos Fogos, como popularmente conhecida. Quando as pessoas viajam para cá, veem colunas contínuas de fumaça e chamas, sinais do lixo que é incendiado no interior.

Minha terra natal era chamada de Campania Felix, ou "Campanha Próspera", pelos antigos romanos, que achavam que os céus haviam sorrido para a região, concedendo a ela um clima ameno, solo fértil e paisagens magníficas. Mas aí a terra cometeu suicídio de forma dramática – tomando veneno. As frutas e hortaliças de Campanha deram lugar à economia ilegal do lixo – em grande parte tóxico –, que é incendiado ou enterrado em seus campos. Videiras, macieiras, pessegueiros e amendoeiras foram destruídos para dar lugar a lixões clandestinos. Nascia um novo termo — biocidio, ou "biocídio" — para se referir ao extermínio do meio ambiente.

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Campania Felix se tornou "Terra dos Fogos", como popularmente conhecida. Quando as pessoas viajam para cá, veem colunas contínuas de fumaça e chamas, sinais do lixo que é incendiado no interior. São como o explorador português Fernão de Magalhães, que batizou o arquipélago no extremo sul da América do Sul de "Terra do Fogo" por causa das labaredas que, do navio, avistava na costa. Se você reparar ao viajar pela estrada entre Nola e Villa Literno ou entre Giugliano e Acerra, verá fumaça saindo do chão por todos os lados. Abaixe o vidro do carro e sentirá o perfume acre que queima a garganta e reveste a boca de uma camada azeda. São um odor e um gosto com os quais você jamais vai se acostumar.

Como isso pôde acontecer? Como é possível ter-se queimado tanto lixo tóxico que ficou difícil, senão absolutamente impossível, fazer a terra voltar a ser arável?

Há 30 anos, para realizar o descarte de lixo, diversas empresas do norte da Itália contratam empresas aparentemente estabelecidas, mas que na verdade são administradas pela Camorra, a máfia napolitana. Essas empresas conseguem oferecer grandes descontos para seus clientes, o que, na atual conjuntura econômica, pode ser a diferença entre a sobrevivência ou a falência de um empreendimento.

De acordo com a Direção Distrital Antimáfia de Nápoles, em 2004, investidores italianos (o intermediário entre os produtores de lixo industrial e as empresas de lixo) conseguiram garantir que 800 toneladas de solo contaminado por hidrocarboneto, propriedade de uma empresa química, fossem descartados por 25 centavos o quilo, incluindo o transporte. Isso significa um desconto de 80% sobre os preços normais, possibilitado por uma variedade de atalhos. Embora as empresas que utilizam esses métodos sejam culpadas de espoliar a terra, são protegidas por lei, porque seus agentes produzem o que parece ser uma documentação legítima que mostra que o ciclo do descarte de lixo foi respeitado.

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A máfia transforma, magicamente, carregamentos de resíduos tóxicos em lixo inócuo, que pode ser mandado para os aterros através da adulteração de guias de remessas ou conhecimentos de carga. Funciona assim: cada barril de esgoto industrial é acompanhado de um documento que informa o nível de toxicidade das substâncias. As empresas que querem economizar dinheiro recorrem a um intermediário, que envia os resíduos para um depósito. Nele, uma simples canetada é suficiente para modificar a guia de remessas para que o conteúdo da carga pareça um lixo comum. Outro passo adotado nos depósitos para economizar dinheiro é misturar com lixo inofensivo para diluir a concentração de toxinas e reduzir a classificação na escala de resíduos tóxicos do Catálogo Europeu de Resíduos.

Preocupados com os custos, os intermediários também têm uma forma mais explicitamente criminosa de descartar o lixo: combustão. Queimam pneus, roupas, plásticos e cabos de cobre forrados com isolamento. Empilham fogueiras com todo tipo imaginável de lixo. Ao incinerar, reduzem a massa e misturam as cinzas com o solo.

A terra aqui é considerada apenas espaço – espaço para se preencher, espaço com que se lucrar. No sul da Itália, principalmente em Campanha, é comum ver estacionamentos com pilhas imensas de lixo. A primeira coisa que muitos visitantes pensam é que os moradores não são civilizados, já que, em vez de reciclar o resíduo ou jogar em uma lixeira, deixam na beira da estrada, fazendo um espetáculo vergonhoso de si e de sua própria terra. Nada pode estar mais longe da verdade. Esses estacionamentos são – para as empresas controladas pela máfia – simplesmente espaço, áreas para se jogar lixo. Tudo isso é o oposto de primitivo – é a invenção do crime organizado e um jeito muito inteligente de se ganhar dinheiro.

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Também é um sinal do estágio final e mais preocupante do desastre. Não é mais possível identificar ou delimitar esse montante descartado. Ele invadiu tudo, penetrando até mesmo o solo. O lixo invadiu nossas vidas e entrou em nossos corpos. Cresce até começar a nos dominar e submeter, de modo que até seu ciclo cotidiano é afetado. É só perguntar para os habitantes de Nápoles, onde, alguns anos atrás, a justiça mandou fechar os aterros nos arredores da cidade por causa de resíduos ilegais que eram despejados, provocando uma crise do lixo no qual a cidade ficou praticamente enterrada sob a própria sujeira.

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Como foi que chegamos a esse ponto? Como foi que essa terra tão fértil se tornou um cemitério de lixo? Tomate, brócolis, abobrinha, chicória, couve-flor, feijão-fava, pimentão, laranja, tangerina, maçã, pera – Campanha era generosa com todas essas culturas. Mas os grandes distribuidores de alimentos começaram a pagar cada vez menos para os agricultores. Se os produtores não aceitassem os preços baixos, arriscavam-se a perder todo o negócio, já que as frutas poderiam ser compradas no exterior, na Líbia, na Grécia ou na Espanha.

Quando a agricultura deixou de ser a principal fonte de renda dos agricultores locais, eles começaram a vender ou alugar parte de suas propriedades para empresas descartarem lixo ilegalmente. Com esse dinheiro, conseguiram não afundar, utilizando os recursos para manter as lavouras, pois foram enganados com garantias de que o lixo não era perigoso. Mas rapidamente eles perceberam que não era bem assim. Aliás, esse lixo muitas vezes consistia de dioxinas e uma variedade de solventes tóxicos que ou destroem colheitas inteiras ou envenenam o produto que consegue crescer, o que, no longo prazo, torna-se uma ameaça para quem o comer. Segundo o Instituto Nacional de Saúde italiano, as frutas e o manto de fumaça acre sobre elas contribuíram para os altos índices de doenças e mortalidade na região, muito acima do restante da Itália. Estudos mostraram que a área possui uma incidência significativamente maior de doenças congênitas, leucemia, sarcoma de partes moles e câncer de fígado, estômago, rim e pulmão. Os políticos da região são tão cúmplices que é impossível acreditar que eles nunca foram julgados, mas a História será a juíza.

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Sobre a devastação física da poluição, a percepção que se cria é equivalente. As pessoas acreditam que tudo aqui está contaminado. Na Itália, todos os produtos de Campanha – de morango a tomate, da muçarela mundialmente famosa à maçã única da região – são considerados poluídos e comprometidos. Simplesmente rastrear a origem do produto ou rotulá-lo de "orgânico" e saudável não é mais o suficiente para salvar a economia da agricultura napolitana. Agora, informações detalhadas e específicas devem ser fornecidas para dirimir qualquer dúvida. O rótulo precisa deixar explicitamente claro que o produto vem de terra não poluída, solo saudável, e trazer o endereço da fazenda. Muitas vezes, os hortifrútis de Campanha são colocados juntos nos supermercados e vendidos a preços baixos enquanto placas ao redor ostentam que essa ou aquela mercadoria não é de Campanha .

Quando isso acontece, a economia ilegal da Camorra se beneficia ainda mais. Quando os produtos de Campanha se tornam invendíveis, acabam caindo no mercado negro. A produção contaminada se mistura com mercadorias seguras e é levada para vendedores hortifrutícolas muitas vezes controlados pela máfia, segundo investigações federais na região de Lácio e Milão. Às escondidas, atacadistas cobiçam esses bens, porque podem comprá-los mais barato e revender por preços altos como produtos do norte da Itália, até mesmo carimbando-os com o rótulo tão apreciado de que não são de Campanha.

Sempre me impressionou a história contada por um membro do clã Esposito que se tornou informante do governo. Ela claramente revela o raciocínio das organizações criminosas. Esse homem narrou que, uma vez, durante uma reunião sobre o tráfico de lixo da Camorra, um chefe – talvez tomado por um repentino peso na consciência – afirmou: "Se enterrarmos o lixo tão fundo assim, corremos o risco de contaminar os aquíferos". O don rapidamente retrucou: "E a gente liga para isso, caralho? A gente toma água mineral!".

A terra agricultável e o pasto, em uma região conhecida pelo turismo e pela beleza, estão sendo sistematicamente contaminados em plena luz do dia. Isso está acontecendo diante dos olhos dos moradores, que se convenceram de que é impossível reverter a situação. Só resta o prazer covarde de querer destruir as coisas em vez de mudá-las, na esperança de um mundo novo e maravilhoso que nunca vai chegar. E, em nome desse novo mundo, o cotidiano se tornou um inferno inabitável. Robert Musil descreve esse mecanismo muito bem no romance O Homem Sem Qualidades . É o "prazer indescritível" – que, eu diria, muitos de nós sentem – "do espetáculo de como o bem pode ser humilhado e destruído com uma facilidade encantadora".

Traduzido do italiano para o inglês por Kim Ziegler e do inglês para o português por Aline Scátola.