FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Escolas em estado de sítio

Tratamos muito mal as pessoas a quem confiamos a educação dos nossos filhos.

Ilustração por Nuno Ferreira O presente só se vive graças ao passado em que se alicerça. Se as bases não forem consistentes e faltarem as oportunidades estamos, no fundo, a comprometer o futuro. Isto não pode ser ignorado porque a sociedade de amanhã começa hoje. Há falta de tempo, de dinheiro, de paciência, de trabalho, de atenção — falta disto, falta daquilo e falta de não sei mais o quê. A falta é mais do que tramada e se há local em que todos os problemas sociais se tornam bem visíveis, esse sítio é a escola. Trata-se da única maneira de que dispomos, enquanto sociedade organizada, capaz de combater as diferenças sociais. Mas será que é isso que está a acontecer? Há professores que continuam adeptos das chapadas e, pasme-se, até das mordidelas. Não concordo nada e nunca gostei das estaladas que levei por causa da matemática, mas até aqui tudo bem. Quase todos os docentes são unânimes: “os alunos não têm perspectivas”, “estão desmotivados”, “não fazem aquilo que lhes peço”; “ fazem-me perder a paciência”; “desafiam-me” e “só querem saber de computadores e telemóveis”. O que vemos então? Escolas num rebuliço porque há colegas que se rebaixam entre si (as câmaras comprovam-no). Vai daí, não faz mal o professor sofrer na pele também. Onde estão os pais? Provavelmente demasiado ocupados a correr de um lado para o outro, provavelmente sem dinheiro (o ensino público também custa) e sem paciência. Os professores com turmas enormes e um programa ainda maior, a tentar descobrir como lidar com os problemas pessoais dos alunos, demasiado ocupados a mandá-los calar e sem tempo para puxar pelos que têm mais dificuldades. Os alunos, esses, à deriva. Há dias chegou até mim mais um caso de uma docente que foi agredida por um aluno. Os nomes não importam, por isso serão fictícios: a Sara, chamemos-lhe assim, dá aulas ao ensino básico (!) na zona Centro; a Joana, mais inexperiente, lecciona em Trás-os-Montes e nunca foi agredida, mas pintou-me um cenário negro da educação em Portugal e ainda me ensinou um segredo: quando falta a paciência, respira-se fundo — não acredito que resulte, mas hei-de experimentar. Pus-me a investigar e falei praticamente com todas as instâncias do Ministério da Educação. Para descobrir, por exemplo, que havia uma linha SOS Professor, mas foi desactivada, apesar de quase 30 por cento das chamadas serem relativas a agressões físicas. Existia, também, um Observatório de Segurança Escolar responsável por tratar dos dados relativamente à violência nas escolas mas, segundo o que percebi, também já não existe. Fiquei só com esta certeza: o Ministério da Educação não está a par do que se passa na comunidade escolar, nem tem consciência dos casos de violência nas escolas. VICE: Há quanto tempo leccionas?
Joana: Há dez anos. Onde começaste? Nas escolas primárias, nas AECS?
Nas AECS, sim. De há dez anos a esta parte notas diferença no comportamento dos alunos?
Na minha opinião é igual. Para ti, qual é a pior faixa etária?
É a adolescência, definitivamente. O mau comportamento começa logo na primária, mas o pior é a faixa etária dos 13-17 anos. É muito pior nessas idades. Porquê?
Dão respostas tortas, há falta de respeito, não sabem qual é o papel do professor. Tratam-nos por tu. Achas isso uma falta de respeito?
Não é isso. É o tomarem os professores como se fossem alguém da família. Há aquele tratamento por tu que percebes que é natural, mas, no geral, não sabem quais são os papéis do professor e aluno. Não entendem. É ingrato, mas o professor tem de ser, por vezes, mais do que um professor.
O professor, neste momento, tem de ser tudo. É educador, é pai, é mãe, é tio, é avô, é família, é tudo. E os pais?
Os pais não têm tempo. Diria que 80 por cento dos encarregados de educação não têm paciência ou não podem estar com os filhos. Não têm disponibilidade para educar e para lhes dar atenção, muitas das vezes. Compreendo que seja difícil, também, acompanhá-los nos conteúdos porque a dificuldade dos programas escolares aumentou. Eu nem que me pele consigo ajudar o meu filho a matemática, por exemplo. Mas achas que os pais não estão interessados na educação dos filhos?
Se estivessem, não estávamos como estamos. Os pais neste momento acham que a escola tem obrigação de fazer tudo. Isso reflecte-se nas salas de aula?
Claro. Os alunos não têm regras e não sabem onde estão os limites. Tens conhecimento de algum colega que já tenha passado por uma situação desagradável com os alunos?
Sim. Lembro-me quando estava nos Açores, foram as piores turmas que eu tive. Um aluno que fumava não aceitou a advertência do professor, mandou-lhe umas quantas e saiu disparado da sala. Passado uma hora o pai apareceu na escola para bater no docente. O próprio pai, não foi só o aluno mas também o próprio pai. Nessas situações achas que os docentes estão desprotegidos?
Muito, muito. As escolas têm medo dos pais e nunca ficam do lado dos professores. As direcções escolares não defendem os colegas. Não há nenhuma instância do Ministério da Educação que vos proteja?
Escolas, Ministério da Educação, é tudo a mesma coisa. Mas e se recorrerem a uma instância superior? Não existe nada?
Não conheço ninguém que tenha recorrido. Já ouviste falar da linha SOS Professor?
Não. É normal, já foi desactivada. Achas que faria sentido a linha manter-se?
Estorvo não devia fazer, de certeza. Nunca senti essa necessidade, mas acredito que haja colegas que necessitem. Principalmente nas escolas mais problemáticas. Já algum aluno te faltou ao respeito?
Sim, acontece muitas vezes. É quase todos os dias. Como?
São desafiadores e querem testar os limites. Os olhares, os olhares é que às vezes são assim um bocado… De onde é que achas que isso vem?
De casa. Há casos em que os pais se esforçam imenso e os filhos não ligam nenhuma. Na maior parte das vezes, no entanto, isso já vem de casa. Qual é a tua maior dificuldade dentro de uma sala de aula? Tens dificuldade em te impor?
Muita. A minha maior dificuldade é essa. Fazer valer a minha vontade, dar uma aula do princípio ao fim. Há falta de empenho, há falta de esforço. Parece que não têm objectivos, não querem saber. Não têm perspectivas?
Muita falta de perspectivas, sim. Não devem saber para que serve a escola, não têm a noção do que estão ali a fazer. Só sabem que aquilo é uma seca do tamanho do mundo e não se esforçam. Não têm mesmo perspectivas para o futuro. Achas que a crise pode justificar essa falta de objectivos para o futuro?
Não. Essa falta de motivação já vem de trás. Não é só destes últimos anos. E, na tua opinião, tem a ver com o quê?
Não sei com o que tem a ver. Sempre soube tão bem o que queria fazer e o que não queria, por isso não consigo perceber muito bem porque é que estes miúdos não querem um futuro. São crianças muito pouco motivadas para a aprendizagem. Quando te moem o juízo como é que reages?
Conto até dez e depois respiro fundo. A tua paciência vai aumentando ou diminuindo?
Uma vez saí tão transtornada de uma sala de aula que cheguei a atropelar um homem. Já não sabia o que estava a fazer. Sentia-me tão incapaz de dar a volta, agora já não. Actualmente penso assim: não querem hoje querem noutro dia. Amanhã será melhor. Não levo isso para um lado tão pessoal. Já não encaro essas situações como uma falha minha e isso ajuda-me muito. Já te habituaste à ideia de que a tua carreia é constituída por momentos bons e maus.
Claro. Posso ter hoje uma aula muito boa e amanhã uma aula muito, muito, muito má. Mas já consigo perceber que se não correu bem hoje, paciência, amanhã vai correr melhor. Vou contrabalançando assim. Quando levava isso para o campo pessoal sentia-me tão frustrada e depois quem sofria era quem estava em casa. Quantas turmas tens no momento?
Dez turmas. Com quantos alunos?
O número total de alunos vai dos 25 aos 30, por cada uma delas. A mais pequena que tenho tem 26. Mais de 250 alunos, portanto. Consegues conciliar todas essas turmas?
O problema não é conciliar as turmas, é conciliar os que nada sabem com os que sabem muito. Não consigo levar todos no mesmo barco, nem pensar, e há alunos que precisam muito. Consegues dar assistência às necessidades individuais de cada um?
Claro que não. Com uma turma de 30 alunos nem se consegue abrir a boca. Se eu me sentasse dez minutos ao pé de um aluno para lhe explicar melhor a matéria os outros deitavam a sala abaixo. Não há hipótese… Isso deve ser desmotivador…
Para eles deve ser. Eu tenho alunos de quem nem sequer sei o nome. Aqueles que entram calados e saem calados, sem dar nas vistas. É difícil. Estou tão entretida a tentar acalmar os outros, a sossegá-los e a mandá-los calar, que nem dou conta desses. Precisam que alguém puxe por eles.
Não estou a dizer que não seja injusto, mas quem me dera acalmar os outros — quanto mais puxar por esses. É que para aí 70 por cento das escolas está assim. Eles vão ser adultos, vão ser pessoas que não se vão esforçar para ter trabalho e vão pensar que as coisas vão cair do céu. Achas que ser-se professor ainda é prestigiante?
Hoje em dia não, é mais do que banal. Não é que devêssemos ter mais importância, mas gostava que cada um soubesse o seu papel dentro da escola. Só isso. Um aluno deve respeitar o professor não por obrigação, mas que entenda, ao menos, o papel que desempenhamos. Obrigada, Joana. E boa sorte. A professora Sara dá aulas a uma turma do primeiro ciclo. Aqui há dias, quando tentava pôr ordem na sala, um aluno agarrou-a pelo braço e fez força. A Sara chamou, de imediato, o encarregado de educação e fez queixa no agrupamento escolar. A criança tinha, aparentemente, problemas familiares que lhe estavam a afectar o desempenho escolar e chegou a mostrar o seu arrependimento à professora e à turma. VICE: Olá Sara, podes contar-me como tudo aconteceu?
Sara: O aluno estava a ter um comportamento desajustado na sala de aula e já o tinha repreendido algumas vezes. Continuou a agir da mesma forma, a falar, a não trabalhar e a perturbar os colegas. Na altura dirigi-me até ele para lhe dizer: “Olha, vou afastar um bocadinho a mesa porque estás a perturbar o colega.” Quando me aproximei, agarrou-me no braço e levantou-se da cadeira. Ao agarrar-me fê-lo com muita força e eu disse-lhe para parar com aquilo, para se acalmar. Que não lhe queria mal, nem lhe ia bater. Ele continuou a apertar-me até que se acalmou e me largou. Qual é média de idades dos teus alunos, mais ou menos?
Dez anos. Dou aulas a uma turma do ensino básico com 25 alunos. A criança era problemática?
O aluno tinha problemas familiares, sim. Tinha algum acompanhamento?
Sim, tinha acompanhamento psicológico com consultas semanais. Também vai ser acompanhado depois deste caso. Apresentaste queixa?
Sim, logo de imediato entrei em contacto com os pais e apresentei queixa no agrupamento. Fizemos um relatório e o encarregado de educação foi chamado ao agrupamento juntamente com o aluno. Um professor pode sentir reservas em fazer queixa? Algum tipo de receio?
Acho que um professor não deve ter receio em fazer queixa, deve dar continuidade ao caso. Sentiste falta de apoio da escola?
Não, neste caso fui muito bem apoiada. Conheces a linha SOS Professor? É que já foi desactivada.
Sim, mas senti-me completamente apoiada e neste caso não houve necessidade. O aluno mostrou-se arrependido, pediu desculpa (à turma e a mim) e foi assim que se manteve a rotina normal dentro de uma sala de aula. Já superaste o caso?
Soube perdoar só que é muito difícil. Trata-se de uma situação grave, que deixou marcas. Fica-se sempre a pensar no que pode acontecer no dia seguinte. O que acho importante é o aluno ter mais acompanhamento para se controlar. Um professor tem de saber como ser mais do que um professor. Concordas?
Um professor, nesta faixa etária, é tudo e mais alguma coisa. É médico, é psicólogo, é pai, é mãe — é tudo. Um profissional que gosta da sua profissão tem de ser mais do que um professor. E os pais, sabem como acompanhar os seus filhos?
Hoje em dia, mesmo aqueles pais que têm tempo, não sabem como acompanhar porque a exigência do nível dos conteúdos é um exagero para a faixa etária. O programa de português parece que quer que os alunos aprendam cada vez mais e não se lembra de que existem meios com dificuldades, que muitos estudantes não têm condições de aprendizagem. O currículo é demasiadamente extenso e é dos mais exigentes a nível europeu. O que se está a dar no quarto ano em Portugal, dá-se no sexto ano em França. Os pais acompanham cada vez menos. Muitos alunos não têm acompanhamento nem apoio em casa. Isso contribui para uma maior desmotivação dentro da salas de aula?
Contribui. Há alunos a chorar e nota-se a tristeza. Quando falamos com eles são problemas familiares. Os pais não têm tempo. Há um certo tipo de abandono porque os encarregados de educação não percebem que os filhos ficam ao deus dará. Corre-se o risco de se agravarem as clivagens sociais?
Completamente. Vai haver um desequilíbrio cada vez maior. Vamos ter jovens mais delinquentes, frustrados e sem respeito ao próximo. Tudo isso devido à educação que estão a ter e à falta de tempo dos pais. Temos de criar condições. O primeiro ciclo tem de encontrar uma forma para que as crianças com mais necessidades possam ter um apoio mais especializado.