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Milhões de Festa

Rescaldo a quatro mãos daquele festival que rima com rojões

Não vamos falar de mamas, mas temos: texto, fotos e vídeo.

Apresentações para quê? É o Milhões de Festa, o nosso festival preferido. Estamos sempre lá batidos e 2013 não foi excepção. Quatro dias e quatro noites — que passaram, simultaneamente, como se fossem um mês ou apenas algumas horas. Já acompanharam o antes, o durante e o depois aqui na VICE (este ano até livestreaming vos demos), mas, mesmo para fechar, fiquem só com as palavras sábias do António Silva e da Alexandra João Martins e depois podem ir desfazer a mala.

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Começamos pela Xana só porque ela é mesmo de Barcelos.

Ainda só passaram uns dias desde que o Milhões acabou e os feeds nas redes sociais já foram invadidos pela onda nostálgica pós-festival. Que o grau de fidelização do Milhões é elevado, já todos o sabemos, por isso a história do choradinho repete-se anualmente. Em certa medida compreende-se: Barcelos fica, sem margem para dúvidas, mais pobre.

E se, em 2010, tinha uns joviais dezasseis anos, agora tenho uns também joviais vinte, pelo que o Milhões acompanhou grande parte da minha adolescência. O festival em si também cresceu, adaptando-se a novas realidades embora tentando sempre manter a distinção, no limbo entre os pequenos e grandes festivais de Verão.

À semelhança do ano passado, acrescentou-se ao cartaz um dia calminho, com concertos apenas a partir das seis da tarde num só palco — pretexto perfeito para antecipar, em jeito de dia zero, a festa com jantares no Xano com a malta da internet. O Milhões tem essa capacidade absurda de juntar pessoas que se vêem duas ou três vezes por ano apenas, principalmente alfacinhas, em finais de tarde passados em terraços a enfardar feijoada e a beber sangria com os suspeitos do costume. Nesse sentido, uma novidade de peso foram as canecas em barro personalizadas com o nome do festival e vendidas no palco Taina.

O Homem de Branco, o Homem-Aranha e a girafa Gina são algumas das personagens que têm vindo a ganhar espaço neste micro-universo barcelense. São as mascotes não-oficiais do festival. Este ano entra para essa lista o Homem-Tigre, um tipo que passou os três dias de Milhões com um fato felino e uns óculos de sol a condizer — na piscina, a fazer crowdsurf, só discutia atenções com Mykki Blanco, deus da vanguarda queer. Os afters parecem ter sido míticos (o Mykki esteve foi avistado por lá) — quer no Xispes, quer no InRio — e, apesar de adorar ver o amanhecer, não pude comparecer em nenhum dos dois durante as quatro noites. Em modo trabalho, estive quase sempre enclausurada entre a piscina (que é como quem diz) e o recinto principal. Aposto num jacto de vómito assim que voltar a comer um daqueles hambúrgueres ou a beber aquela sangria de pressão.

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O Toni teve de fazer uma viagem mais longa para chegar a Barcelos (veio de Braga)…

Foi apenas na quinta-feira que me dirigi a Barcelos para mais um Milhões de Festa e com muita pena minha não pude participar na festa da Coronado que serviria de dia -1. Os relatos dessa noite rezam que estava toda a gente muito bêbada e a polícia, como vem sendo comum neste tipo de eventos, fez uma daquelas aparições para mandar o pessoal embora.

Chegado às margens do Cávado a meio da tarde, a lista de tarefas a desempenhar não poderia ser mais simples: arranjar pulseira, montar a tenda, comprar jantar e bebidas, ir para o palco Taina. Sendo que as primeiras duas missões foram executadas com distinção, as coisas complicaram-se com um jantar de chouriça rasca assada em bagaço novo e vodca-qualquer-coisa, que por dentro despertou memórias de festivaleirozinho de dezassete anos, mas no exterior me envelheceu umas quatro primaveras. A euforia era muita, talvez demasiada, mas é complicado justificar controlo quando dás por ti rodeado de amigos com quatro noites de Milhões de Festa pela frente.

… E não perdeu muito tempo para entrar no espírito.

A caminhada até ao Taina foi longa e sinuosa, mais do que o que seria de esperar de uma distância tão curta e nada faria prever o caos generalizado que reinava nas redondezas do palco, com uma maré de gente a tentar ver concertos, comprar senhas e beber copos. Depois de encher uma caneca engraçada com um verde branco óptimo para temperar saladas, ficou decidido que o ideal era procurar uma esplanada para nos acolher durante umas horas até a confusão acalmar. Regressados ao local mais tarde, enquanto os DJs da casa faziam a festa, tornou-se finalmente possível desfrutar serenamente de um set tão intrínseco à identidade do festival que alguém mais capaz do que eu conseguiria converter a playlist em DNA do Milhões. O Dj Quesadilla fazia anos e, para comemorar, Tojo Aoki decidiu atirar algumas fatias do bolo de aniversário para cima do público, que passou o resto do festival a perguntar-lhe onde o tinha arranjado: era mesmo bom, na cara ou na boca. Pouco passava das quatro badaladas quando pensava terem cessado as hostilidades, mas a caminho da tenda ainda deu para assistir a uma troca de chapadas etílicas entre locais.

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O Toni a explorar a arte da taina.

A sexta-feira do Toni em Barcelos foi assim:

Depois de uma noite estranhamente bem dormida, uma curta reunião com a malta da VICE e um almoço na cantina, dei um salto ao palco Taina para ver o concerto de Quelle Dead Gazelle, perfeito para restabelecer parte do espírito que tinha dado como perdido na noite anterior. Na minha cabeça a banda que se seguia era Vai-te Foder, mas o que dou como certo raramente vai de encontro à realidade e por isso fui até à piscina, onde tocava o duo composto por Yonatan de Monotonix e Igor de Throes perante um sol que teimava em esconder-se nas saias das nuvens de meia em meia hora. Seguiu-se um bonito concerto de Adorno com uma transposição para Papaya e, por fim, Dam Mantle fechou o tasco quando a generalidade do pessoal estava já em debandada.

Passei pela residencial para um banho rápido e forrei o estômago com iguarias locais, pronto para o regresso aos concertos, mas a descoberta de uma pastelaria que vendia belos gins a um euro e 80 deu cabo das minhas esperanças de apanhar um bocadinho de Papir. Quando cheguei ao recinto tocavam Black Bombaim e La La La Ressonance, num encontro em que se estabeleceu um elo entre duas gerações da genealogia musical de Barcelos, com oito gajos em palco a fazerem o que sabem melhor: música que rompe com as barreiras do conhecido, tão rica como densa. Seguiram-se Austra, que assumiram competentemente a sua função enquanto banda fofinha da noite e Camera, que deram aquele que será provavelmente relembrado como o melhor concerto desta sexta-feira, trazendo de volta a paisagem etérea esculpida por Neu! trinta anos antes.

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Estava então na altura de abanar o capacete ao som dos pesos pesados Ufomammut, os primeiros da santíssima trindade do gesso que a cada dia faria, no palco Milhões, as delícias das barbas mais compridas do festival. Encerrado o palco, todas as atenções se viraram para Otto Von Schirach, um gajo que provavelmente não queres apresentar à tua namorada dada a leviandade com que conseguiu por a grande maioria dos presentes a flectir as pernas. O final da festa no recinto ficou a cargo de White Haus, e depois, como ainda havia energia para mais, parti em direcção ao Xispes, não sem antes ser abordado à porta de mais dois ou três afters, ignorados pelo facto de não terem evento no Facebook (vícios da sociedade moderna). Já instalados no bar dos panados enormes, o DJ residente deixava a tarefa de animar o pessoal a cargo de uma playlist, enquanto alguns dos doze membros do Gin Party Soundsystem esperavam pelo seu lugar ao sol, que chegaria às oito da manhã, se o gajo do PC acordasse. Entre um bagaço ardente e o fim do tabaco, não deu para esperar até essa hora. Segundo um comentário que li algures na internet, foram “cem DJs, sem pessoas”, o que pelos vistos não impediu que a coisa tivesse sido uma bela festa.

A Alexandra também andava a ver concertos, claro.

Em relação à música, o primeiro dia acabou por ser o mais frutífero: Jacco Gardner, Mikal Cronin, Papir, Camera e aquele que, para mim, foi o concerto maior desta edição, La La La Ressonance com Black Bombaim — uma combinação verdadeiramente abissal. Ao segundo dia os ZA! regressaram em grande, os Egyptian Hip Hop deram que falar e os Eyehategod revelaram o porquê de terem uma legião de fãs à perna (os braços já estão ocupados). No último dia, os pesos pesados também marcaram presença, graças aos Orange Goblin e Riding Pânico. Também em português, a malta da Coronado juntou-se ao Jibóia numa experiência oriental sintetizada, verdadeiramente digna de destaque, até pelas versões hipnotizantes de canções de Gal Costa.

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Este é o André Vitor, nosso fotógrafo. Apesar de estar a trabalhar, também teve tempo de conhecer pessoas novas.

O Toni atrasou-se a entregar este texto e, para compensar, escreveu para caraças. Façam o favor de ler cada palavra.

O terceiro dia começou tarde — é incrível o que um gajo consegue dormir numa cama a sério — e quando já tinha os preparativos feitos para atacar a piscina, um telefonema carregado de pânico avisava “esquece a piscina meu, duzentas pessoas na fila e só deixam entrar quando alguém sair”, por isso mudaram-se os planos para uma viagem até ao palco Taina, onde The Quartet Of Woah e Perro Peligro forneceram a banda sonora para um jogo de cartas do qual saí a ganhar um fino. Mais tarde vim a saber que a fila da piscina demorava cerca de cinco minutos, mas não se estava nada mal à beira rio. O jantar foi adiado para ver HHY & The Macumbas, uma bad trip sonora que deambulava entre música tribal africana e o jazz obscuro de um saxofone fodido.

Começou de dia e acabou de noite, colocando em questão se esta transição diária se deve mesmo ao ciclo astral ou se, todos os dias, algures no planeta e desde o início dos tempos, há um concerto destes gajos para invocar o ocaso. Um jantar e nova rodada de gins, desta feita enquanto assistia a uma demonstração de judo no centro da cidade (é das eleições ou Barcelos é sempre tão animado?) e estava na altura de assentar a comida no estômago ao som de uns relaxantes Egyptian Hip Hop, enquanto fogo-de-artifício eclodia lá ao fundo.

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Seguiram-se ZA!, dupla espanhola que já havia tocado na primeira edição do festival e que nessa altura protagonizou uma jogatana de futebol às oito da manhã entre Espanha e Barcelos que acabou com três costelas partidas. O concerto foi explosivo, como manda a tradição. Ouviram-se então lá ao longe os primeiros acordes de EYEHATEGOD, verdadeiros pioneiros do Sludge mais pesado que davam início a uma ronda de headbanging que imagino ter deixado pescoços doridos um pouco por todo o lado. Octa Push honraram o nome do festival e DJ Marfox, nome em ascenção da cosmopolita cena de kuduro lisboeta, fechou com ritmos mestiços a pista de dança. Siga para a cama.

O último dia começou com um pastel de carne e uma cola, tradição que se vinha mantendo desde o dia anterior. Depois de ler uma pequena mensagem que dava conta dos atrasos do dia devido à possibilidade de chuva, dei um salto à piscina, onde notoriamente não havia filas, para um concerto fofinho de Long Way To Alaska. Pouco depois, os DJs da casa faziam novamente a festa e tive uma conversa engraçada com um amigo que já ia na segunda gota de LSD, enquanto, nem de propósito, um gajo que se devem lembrar por ser membro daquela banda que tocava por todo o lado com uma bateria pequenina, LSD Mossel, tocava um metal furioso perante um público que não sabia o que os havia atingido. Simultaneamente, a umas centenas de metros dali, era servida uma centena de shots, para comemorar o encerramento do palco Taina, que deixou os dez que ficaram para os beber notoriamente embriagados.

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Depois de um curto concerto de Dirty Beaches, era chegada a altura da banda da casa fazer das suas. Riding Pânico, desta vez com álbum novo debaixo da asa, demonstraram plenamente o porquê de tocarem todos os anos no festival. Troquei Siesta por uns minutos sentado na relva a desfrutar de um par de finos porque tinha de amansar o corpo para o que se seguia: Orange Goblin. Já muita tinta correu sobre os infortúnios da tour destes senhores, por isso resta-me dizer que o público aderiu em massa a um concerto de uma banda visivelmente emocionada por tocar para tanta gente e de tantos entre os que os viam estarem a curtir tão efusivamente. Não faltou mosh, resultado directo dos riffs de heavy metal pesadão que debitavam. Impecável.

Acabado o concerto corri para o palco VICE, onde Zombie Zombie testavam o PA com batidas frenéticas para deleite de muitos corpos — ainda nem tinha começado o concerto e já estava a ser do caralho. Reza a lenda que mal chegaram ao festival pousaram a tralha no chão e o mestre dos sintetizadores pronunciou um curto e cinematográfico “fiesta”. Era vê-los depois um pouco por todo o lado, sempre de fino na mão, até à hora de partirmos com eles no foguetão número nove, rumo a Vénus. O percussionista convidado incutiu ainda mais ritmo aos riffs sequenciais, vindos do canto mais obscuro da vossa imaginação, em músicas que já primavam por ser estranhamente dançáveis. Em certos momentos parecia que estávamos perante um concerto de Safri Duo desacelerado e fixe.

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Enfim, o tempo passa a correr e isto já vai longo (não tão longo, ainda assim, como o rescaldo do ano passado). Vamos às despedidas? Primeiro o Toni…

Nada me tinha preparado para o que viria a seguir: Jibóia Experience, uma banda de estádio. Ao centro do palco, Óscar Silva deixou-se rodear por uma data de amigos que tocavam com e para ele. A constante saída e entrada de gente em palco, juntamente com a música orelhuda de índole tanto oriental como Sul-americana, fizeram lembrar uma adaptação Broadway de um musical de Bollywood em que Óscar e Ana Miró eram as personagens principais. Tudo acabou com uma música festiva cantada pelo DJ Quesadilla. Haja alegria.

Estava então na hora de Mykki Blanco, cuja performance começou com uma homenagem à androgenia que parecia vinda de um vídeo new-age dos anos 80. Como o próprio disse, tinha vindo para entreter e poucos ficaram indiferentes ao espectáculo que nos proporcionou. El G fechou o festival com a sua electrónica dos Andes, mas como o Milhões não podia acabar por aqui, seguimos o Mykki Blanco, ainda vestido de calções e meias de nylon até ao after do rio onde, para minha surpresa, conseguiu engatar uma gaja. A boa onda reinou do início ao fim, a música estava excelente e encontrei lá o gajo que tinha enfiado duas gotas de ácido, todo vermelho e a rir-se desalmadamente — eram oito da manhã e ele tinha aumentado a dose para seis gotas.

Fui para o campismo na viagem mais triste do festival e enfiei-me na tenda como um foguete, só para ser acordado duas ou três horas depois por um segurança-mamã que dizia que estava na hora de ir embora. Não estava, mas teve de ser, o gajo era mesmo chato. Acabou. E agora?

… Depois a Alexandra, para acabarmos como começámos.

Por estes dias o calor já regressou a Barcelos e da varanda de minha casa avisto uma piscina cheia. Cheia de gente, mas vazia de espírito, de diversão aliada à música, de insufláveis cómicos e sobretudo de uma liberdade quase estupidificada. Resta esperar por 2014.

Fotografia por Rebeca Bonjour e André Vitor Tavares