Um amor de Parada

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Mês da Diversidade

Um amor de Parada

A história de André e Ademir, que se encontraram, entre três milhões de pessoas na Avenida Paulista, em 2006 e estão juntos até hoje.

André Araujo (deitado) e Ademir Bueno (sentado). Foto: Guilherme Santana/VICE

Há um ditado milenar que profetiza o seguinte: amor de Parada LGBT não desce nem a Rua da Consolação. Há quem diga que o evento é um Carnaval potencializado e não é lugar de encontrar o(a) companheiro(a) da vida toda. Eles quase estão certos, não fosse um detalhe, a chama está nos lugares mais improváveis e ela acendeu, mesmo que ainda tímida, para o arquiteto André Araujo, de 36 anos, e para o designer Ademir Bueno, de 48, há exatos 10 anos. A Parada, exclusivamente na edição de 2006, rolou num sábado por causa de um jogo da seleção brasileira na Copa do Mundo disputada na Itália. No dia 17, em meio a três milhões — pela estimativa dos organizadores — André e Ademir se viram pela primeira vez. "Quando eu vi o André eu falei. 'É muita areia pro meu caminhão'. Ele é grande, não tem nada a ver", confessa Ademir. André também comenta o interesse no rapaz com uma mecha grisalha no cabelo. "A gente conversou rapidinho, não sei o quê, e eu botei um reparo no Ademir, mas a gente mal se falou nesse dia, só nos cumprimentamos". Ambos comentaram com um amigo em comum a curiosidade, mas naquele dia nada além de jogo de olhar e sedução. André profetizou. André seguiu seu rumo. Foi ao Sesc Pompeia, emendou numa festa e nem reparou que tinha quebrado o pé naquele dia. A lembrança de Ademir, que estava voltando a vida de solteiro depois de um casamento de seis anos, não é menos animada. "Eu lembro que beijei um monte de gente naquela Parada". E quase que a vida seguiu distante para ambos. Se não fosse o Orkut, e a iniciativa de André em adicionar o futuro companheiro, toda aquela dissertação sobre o amor do primeiro parágrafo poderia ter ido por água abaixo.Muitos scraps até que o pé de André estivesse melhor. 15 dias depois eles se encontraram. Menos de um mês depois já dividiam as escovas de dentes. André profetiza. "Eu já sabia que era ele. Não sabia como ia ser, nem porque, mas sabia que era ele." Passaram juntos por outras Paradas LGBTs, mas andavam afastados. Na última tiveram uma motivação especial para estarem na Avenida Paulista. "Este ano a gente foi por uma questão política. Vimos que era importante ir e falamos com vários amigos. Nós juntamos uma turma ali na Praça do Ciclista. Foi super legal", comenta Ademir. Suas diferenças, à primeira vista, se evidenciam. André é expansivo, alto e ligado no 220. Ademir é acanhado, mais discreto e mais baixo. André brinca com isso. "Gays normalmente são meio parecidos. São dois altos, dois fortes, dois não sei o quê, dois baixinhos, dois barbudos e a gente é muito diferente. Vamos aprendendo a lidar com isso". Eles se distanciam também em como lidam com a sexualidade. "Eu sou super tímido, sou de uma família evangélica, o peso é muito grande. Ninguém te cobra diretamente, mas toda a sua criação te leva a se cobrar. Com o tempo eu fui entendendo que eu não posso ser amigo de quem não me aceita", comenta Ademir que simplesmente viveu sua vida sem dar satisfações. André assumiu aos pais ainda na adolescência, mas muito antes disso se lembra de ser tratado com preconceito. "A primeira vez que me chamaram de bicha na escola eu tinha, sei lá, uns oito anos. Eu falei com meu pai. No dia seguinte fui pra escola e o moleque no meio da sala de aula falou. 'Bicha'. Eu virei pra ele, na frente da professora, da sala inteira e falei. 'Você já viu uma boceta?'. Ele falou que não. Aí eu emendei. 'Então você é bicha também'. Aí todo mundo começou a chamar ele de bicha. Eu sempre fui muito bem resolvido."

Faz cara de sério. Foto: Guilherme Santana/VICE

Depois de uma década o que fica quando se olha para os dois é a segurança que transmitem. São sinceros um com o outro e não escondem pelo preconceito que passaram, um pouco diferente do que estamos acostumados com casais gays. "Isso é uma coisa muito séria e que deve ser colocada. Tem muito gay machista e com uma ideia absurda". Eles foram julgados pela diferença de idade, por Ademir ter um emprego fixo há quase 30 anos e André tornar-se frila. Foram julgados como o casal de explorador e vacilão. André explica. "Em um dado momento a gente decidiu, juntos, que eu não teria mais um trabalho fixo numa empresa, eu trabalharia para mim. Isso significa uma hora ter trabalho e outra hora não ter. Por isso entraram numa história de que ele é mais velho e eu sou mais novo, ele me sustenta, mas ninguém sabe qual é o lance, não interessa pra ninguém". Ademir completa. "Nunca fomos julgado por ser gay, mas fomos julgados por isso." Passaram por isso. Os amigos julgadores foram se afastando, novas amizades surgiram e 10 anos depois eles comemoram uma nova fase no relacionamento: a nova casa. "Lá atrás, eu fui morar na casa do Ademir, era a nossa casa, mas era a casa do Ademir. Era feita pra ele, não para nós", confessa André que se derrete para falar do trabalho que fizeram a quatro mãos. Na espaçosa cozinha, André prepara cuidadosamente o jantar, um delicioso macarrão caseiro com molho de tomate também feito por ele. Ademir abre uma garrafa de vinho e falam sobre a trajetória juntos e sobre o novo passo do casal: um confortável apartamento recém habitado, e reformado, por eles. "Parece que a gente tá começando tudo de novo na casa nova. Parece que é tudo novo, tem questões novas, momentos novos e as coisas estão só se fortalecendo. São 10 anos e tá tudo começando de novo", comemora. Enquanto a segunda garrafa de vinho já vai dando tchau, André filosofa sobre o sucesso de uma relação que teve início onde as pessoas se pegam e sobreviveu ao julgamento moral de quem os rodeava. "As coisas mudam, eu não tenho o mesmo tesão que eu tinha e a gente vai buscando, esse é o segredo. Se você hoje achar que você cai se separar da sua mulher, vai ficar com outra e daqui três anos não vai ser a mesma coisa você está errado. Vai ser exatamente a mesma coisa." "Tem gente que se conhece no Carnaval, gente que se conhece na Parada, gente que se conhece no Reveillón", comenta André enquanto saboreia a própria receita. Ademir, mais tímido, concorda e ambos comemoram uma década de um amor que nasceu no meio da multidão e se sustenta valorizando a individualidade.

Agora sorrindo. Foto: Guilherme Santana/VICE