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Dias de "Townships" Dentro da Cidade do Cabo

O período em que os negros dos subúrbios da Cidade do Cabo celebraram, em uma cidade dominada pela massa rica e branca, a vida e o legado deixado por seu maior líder

Um dos momentos em que o povo das arquibancadas era animado pelos extasiados integrantes do ANC. Foto por Alex de Cara.

Os quase 10 dias posteriores à morte de Nelson Mandela foram de celebração na Cidade do Cabo, África do Sul. As "favelas" da cidade, compostas por negros das tribos de Xhosa e Zulu, honraram, com muita emoção, todo o legado deixado pelo maior herói sul-africano, com manifestações no centro de uma cidade dominada pela população branca. Nos dias de hoje, é possível ver a realidade que vai custar a mudar, mesmo após 23 anos com o fim do apartheid: a maior parte dos negros continua a viver exclusivamente nas Townships, trabalhando em subempregos, enquanto brancos ostentam carros de luxo e mansões nas regiões de Clifton e Camps Bay.

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Ainda assim, essa região que remanesce uma segregação social ligada à cor da pele, com resquícios do fim recente daquele regime abominável, foi palco de um show de cores, uma verdadeira "Rainbow Nation", da mesma forma como idealizada pelo inventor dessa sentença política, Mandela, para o futuro de sua população quando mudou a bandeira do país.

Restavam-me somente 16 dias tranquilos na terra da Table Mountain antes de meu retorno ao Brasil, quando descobri, via twitter, na noite com o vento mais forte do que o habitual, que o ícone mundial havia falecido. Liguei a televisão e o presidente Jacob Zuma, que fazia o pronunciamento oficial na TV aberta, confirmou o fato. Poucos minutos depois, já estava nas ruas da cidade, buscando reportar a um site como estava a movimentação dos cidadãos nas primeiras horas. Fui direto a Long Street, reduto de vida noturna da cidade. Tudo o que pude perceber foi um clima de anestesia entre os que encontrei pela rua: pessoas se entreolhando com rostos que aparentavam conformismo, por esperar a notícia em função do estado de saúde de Mandela, e ao mesmo tempo incrédulas, ao saber que aquilo se tornara verdade

Já na manhã do dia seis de dezembro, os "filhos" e "filhas" de Mandela invadiram os principais locais de encontros públicos para comemorar sua vida e todos os seus feitos; foram eles que destoaram e tiveram voz ativa durante os dias de celebração.

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População das Townships tomou conta do Grand Parade e celebrou com as danças que Madiba realizava em seus encontros políticos ou esportivos. Foto por Vivian Chiabay.

O Grand Parade, praça em frente à Câmara Municipal da cidade, onde Mandela fez seu primeiro discurso como homem livre, após 27 anos de prisão, já recebia alguns grupos que chegavam das mais diferentes Townships da região -- de Gugulethu a Mfuleni. No local, existe uma atividade comercial diária, semelhante a um camelódromo, mas que foi proibido pelos policiais por conta da celebração que ocorreria no mesmo espaço, organizada pela Prefeitura.

Alguns comerciantes se mostravam descontentes e reclamavam por não saber para onde seriam realocados. Outros tiravam proveito da situação para vender artigos que lembravam o herói, como broches, bandeiras e camisetas. Os demais, cantavam e celebravam da mesma forma que Madiba se comportava de habitualmente, seja qual fosse o evento: dançando. Alguns comércios próximos estavam fechados. A famosa Catedral de Saint George, “campo neutro” durante o apartheid, no centro, estava cheia de pessoas em orações, além de filas para escrever mensagens a Nelson.

Fila na Catedral Saint George com a população que deixava mensagens a Mandela e prestava homenagens. Foto por Alex de Cara.

Na quarta-feira (11/12), foi organizado um evento gratuito no estádio da cidade, localizado no bairro de Green Point, área relativamente nobre. Os verdadeiros personagens não hesitaram em tomar conta do espaço, no que tinha muito para ser um verdadeiro teatro para “inglês ver”, com os próprios descendentes dos colonizadores ingleses presentes, além dos holandeses. Cada vez mais grupos do ANC (Congresso Nacional Africano) compareceram no evento e entoaram suas canções mais conhecidas. Um dos membros do partido trouxe a carteira de filiação, expirada em 1994, ano da vitória democrática de Mandela nas urnas. Danie Louw exibia orgulhosamente o objeto histórico para que todos pudessem ver. Ele despertava ligeira curiosidade para qualquer pessoa que o avistasse, pois o item, preso a seu chapéu, era incapaz de passar despercebido.

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Integrante do ANC mostra orgulhoso a carteira eleitoral do ano em que Mandela foi eleito democraticamente como primeiro presidente negro da África do Sul. Foto por Alex de Cara.

Ainda nesse dia, cerca de uma hora e meia depois do início do evento, um grupo liderado por sul-africanos fardados com o uniforme militar do país guiava uma turma extasiada de adeptos do ANC. Mesmo sem autorização, eles conseguiram acesso para entrar no campo, área marcada como "VIP", justo em uma solenidade para quem tanto lutou contra esse tipo de exclusão. Locomovendo-se de setor em setor, eles puxaram os cantos tradicionais em Xhosa, Zulu e diversas outras línguas africanas, junto com as milhares de pessoas que vieram das Townships para celebrar Madiba.

Militares sul-africanos conduzem grupo do ANC no corredor do estádio Green Point; grupo conseguiu acesso ao campo, que era "área VIP" do evento de celebração a Mandela. Foto por Alex de Cara.

“Asimbonanga [não vimos ele]
Asimbonang 'uMandela thina [não vimos Mandela]
Laph'ekhona [no lugar onde ele está]
Khona Laph'ehleli [no lugar onde ele é mantido]”

Um dos cantos mais entoados pelos presentes no Green Point Stadium em 11/12.

Muitos dos negros que estiveram presentes dentro da cidade, de fato, não viram Mandela. Eles nasceram ao longo dos anos em que ele permaneceu na cadeia. Até mesmo os mais velhos, que viveram as chacinas ocorridas dentro de suas comunidades, também somente escutaram falar sobre o líder que viveria até o fim de sua vida na prisão, localizada em uma ilha. Assim foi a semana de 05/12 a 15/12, data de seu funeral, dia em que grande parte do comércio resguardou luto. Foi mais do que uma celebração. Foram dias nos quais todos esses negros puderam reafirmar que toda a extensão territorial da África do Sul é deles, com exatamente os mesmos direitos que qualquer outra pessoa.

No dia 16/12, a cidade voltou a seu curso “normal” após inúmeras solenidades, entrando agora na era "pós-mandela". Negros e brancos convivem, sim, de forma livre e pacífica, podendo dividir o mesmo bar ou a mesma praia, por mais que um rótulo oculto permaneça, como um posto: cada um com sua classe social.

Siga o Alex de Cara no Twitter: @alexdecara