Naquelas conversas de fazer tempo do tipo “qual é o teu filme favorito de sempre?”, o bom-senso recomenda que enunciemos uma série de títulos que constituem uma honrosa elite, quer em preferências pessoais, quer na história do cinema —, por aí. Escolhas respeitáveis com o seu lugar na história da sétima arte, colossos de tamanha grandeza que dificilmente podem ser questionados quanto ao seu legado e qualidade. É uma resposta dada com cuidado, que tenta jogar pelo seguro e ainda manifestar a caguice de “olha lá como eu percebo do assunto.”
A resposta que costumo dar incorpora alguns destes títulos e, por breves instantes, tenho como resposta aquele olhar de “não está mal” — mas só até certo ponto. O caldo normalmente entorna-se quando concluo com “…e, claro, o Rocky IV”.
Vamos por partes:
Ponto um
Apesar do primeiro Rocky reunir o consenso da crítica como sendo um filme do cacete (venceu três Óscares, incluindo o de Melhor Filme de 1976 contra a competição feroz de Taxi Driver), a saga dos restantes filmes — II, III, IV, V (de Vergonhosamente mau, o único terrível) e Rocky Balboa — está longe de ser daqueles franchises altamente respeitados. Ponto dois
Sylvester Stallone chegou a ser, em tempos, considerado o próximo Marlon Brando, mas Marlon Brando nunca fez Pára ou a Mamã Dispara. Melhor que Rocky V. E assim se perde a saga Rocky numa imagem caricatural de si mesma onde os filmes não são mais do que a “Eye of the Tiger” e Stallone a esmurrar uns bifes do lombo no talho local ou a trepar escadas em Filadélfia. Neste sentido, Rocky IV é uma obra incompreendida. Nenhum destes momentos surge no filme, mas temos sequências tão marcantes como o Italian Stallion a correr pela montanha a fugir ao KGB enquanto a tecnologia russa enche o seu atleta com uma dose tal de anabolizantes que Maradona ficaria corado de vergonha. A história é simples: em plena Guerra Gria, a União Soviética deseja demonstrar a qualidade dos seus atletas, desafiando o campeão americano, Balboa, para um combate com o invencível Ivan Drago. Com drama, thrash-talking e preparação pelo meio, tudo termina no combate decisivo.Como acontece com qualquer filme marcante (toda a gente se lembra onde é que viu oTitanic), o mais normal é que a própria experiência de introdução aoRocky IVtenha sido indutora da lágrima ao canto do olho. Partilhei-a como espectador no Chiado Terrasse a um domingo, devia eu andar no sétimo ou oitavo ano. Quis o destino que muitos putos da escola o tivessem visto também (choveu torrencialmente nesse fim-de-semana) e, consequentemente, na semana que se seguiu não era raro ver miúdos no recreio ao sopapo uns aos outros (nunca abaixo da cintura). A enfermaria dos Salesianos teve fila de alguns metros, choveram suspensões e ouvi dizer que se esgotou a gaze. Ainda hoje,Rocky IVestá na lista negra de muita escola do ensino básico.O VILÃORocky I, IIeIIIapresentaram-nos Apollo Creed e Clubber Lang: dois adversários com um carisma que quase igualava o do próprio protagonista. A partir daqui só havia um caminho a seguir e esse caminho chamava-se Dolph Lundgren, ou melhor, Ivan Drago — o atleta soviético que constitui a resposta da USSR ao campeão americano. Ele é mais forte, mais alto, mais ágil e treina nos melhores ginásios. A magia da personagem é amplificada quando nos apercebemos o quão feliz foi a escolha decasting: Lundgren tem um mestrado em engenharia química e teve acesso a uma bolsa de estudo no MIT, fala fluentemente cinco línguas e é um cinturão negro em terceiro grau de karaté. Dir-se-ia que, caso alguém lhe assaltasse a casa, decerto fugiria ao saber a quem a habitação pertencia —até porque isso aconteceu mesmo. Ao contrário dos anteriores exuberantes adversários, oExpresso Siberianoé frio, sem emoções, e deixa que os seus punhos falem por si.A fazer da Rússia um sítio porreiro anos antes de Putin.O FACTOR MOTIVACIONALQuem viu oRocky IVsabe que, naquelas horas que se seguem ao rolar dos créditos finais, uma pessoa se sente o campeão do mundo. Não vem nos livros de auto-ajuda, mas é frequente um fã do filme, quando confrontado com uma situação de adversidade, proferir a frase: “se o Rocky venceu o Ivan Drago em Moscovo, eu também sou capaz de…”. Está cientificamente provado que a hora e meia deRocky IVem véspera de exame rende mais frutos do que hora e meia de estudo. Pergunto-me se não seria benéfico que, para enfrentar o cenário de crise a pessimismo, o governo entregasse a todo o cidadão português (menos aos que têm ascendência na Europa de Leste) uma cópia deRocky IVem DVD. Só até que a TVI decida emiti-lo em vez do novo do Rob Schneider ou do cão que joga vólei.AS FRASESApesar de não ter o "Adriaaaaaaaan!" característico da série, arrisco-me a dizer que oRocky IVdeverá ser um dos filmes mais citáveis de sempre. Tudo isto é, paradoxalmente, em grande parte devido a Ivan Drago, que fala apenas seis vezes durante o filme todo (duas em russo, quatro em inglês), mas as poucas vezes em que abre a boca chegam para que seja um tipo que nenhum de nós gostaria de encontrar, de madrugada, num beco escuro. São frases que, para quem viu o filme, são passíveis de serem usadas frequentemente num jogo de póquer mais aceso ("you will lose") ou então numa sessão deCounterStrikeintensa (“if he dies, he dies”). A abordagemless is morefunciona em pleno e também aqui imagino que Portugal sairia beneficiado em adoptar uma postura semelhante: sonho com Vítor Gaspar a dirigir-se a um alto representante da Moody’s e rosnar-lhe “I must break you”. Fica feita a sugestão e prestado o serviço público.Este é todo o inglês que vão precisar na vida.O COMBATEFilmes sobre boxe existem às dezenas hoje em dia, sendo um género cada vez mais batido (passe a piada), mas nunca viste um combate em filme com a categoria do combate Drago VS Balboa. Naquilo que foi durante tempos tido como um simples rumor, Stallone chegou a confirmar que durante a cena Lundgren e ele próprio se atingiram a sério, para aumentar a intensidade e realismo da luta, uma ideia tão feliz como “vou só correr com tesouras na mão”. O resultado foi a hospitalização de Stallone por ter recebido um soco tão forte que lhe atirou o coração contra a caixa toráxica, cortando-lhe a circulação. Jesus Cristo.São cerca de dez minutos épicos, no verdadeiro sentido da palavra. Pensem no Portugal VS Inglaterra do Euro 2004, só que num ringue em Moscovo e com duas equipas feitas de Bruno Alves. Ver o público russo a ficar dividido e depois a começar a apoiar Rocky provoca-nos também esse efeito misto: queremos ver Rocky ganhar, mas Drago também não merece perder. Para que não vos falte nada, o YouTube é amigo e aqui segue a memorável sequência:
Apesar do primeiro Rocky reunir o consenso da crítica como sendo um filme do cacete (venceu três Óscares, incluindo o de Melhor Filme de 1976 contra a competição feroz de Taxi Driver), a saga dos restantes filmes — II, III, IV, V (de Vergonhosamente mau, o único terrível) e Rocky Balboa — está longe de ser daqueles franchises altamente respeitados. Ponto dois
Sylvester Stallone chegou a ser, em tempos, considerado o próximo Marlon Brando, mas Marlon Brando nunca fez Pára ou a Mamã Dispara. Melhor que Rocky V. E assim se perde a saga Rocky numa imagem caricatural de si mesma onde os filmes não são mais do que a “Eye of the Tiger” e Stallone a esmurrar uns bifes do lombo no talho local ou a trepar escadas em Filadélfia. Neste sentido, Rocky IV é uma obra incompreendida. Nenhum destes momentos surge no filme, mas temos sequências tão marcantes como o Italian Stallion a correr pela montanha a fugir ao KGB enquanto a tecnologia russa enche o seu atleta com uma dose tal de anabolizantes que Maradona ficaria corado de vergonha. A história é simples: em plena Guerra Gria, a União Soviética deseja demonstrar a qualidade dos seus atletas, desafiando o campeão americano, Balboa, para um combate com o invencível Ivan Drago. Com drama, thrash-talking e preparação pelo meio, tudo termina no combate decisivo.
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Bem, sinto que já me estou a alongar na tarefa inglória que é descrever o filme e aplaudir os seus méritos. É como falar da discografia de Beatles: pode-se discutir o assunto horas a fio, mas ficará sempre tanto por dizer. É um daqueles filmes que merece ser visto pelo menos uma vez cada ano, e cada visionamento trará de novo um brilho nos olhos como se da primeira se tratasse. Até ao escrever estas linhas fiquei com pele de galinha e vontade de rever todos estes momentos.Carregarei orgulhosamente o seu nome como uma das maiores obras de arte condensadas em noventa minutos. Obrigado, Sylvester Stallone. Vemo-nos noExpendables 2.