FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Os Anonymous escolheram a mascote errada

Há outra personagem que representa melhor o hacktivismo.

Não há dúvida de que os Anonymous são a actual cara da luta anti-repressão. Não baixam os braços contra a censura, atacam directamente o sistema sem medos. A sua marca é sentida em todas as manifestações recentes, do #Occupy ao Egipto — mas tudo isso é essencialmente feito por um bando de gajos que escreve linhas de código num portátil e que sai para a rua armado apenas com cartazes e smartphones. É, por isso, um pouco incoerente que estes nerds adoptem como símbolo a máscara de um terrorista cujos meios de luta contra o sistema passavam por bombardear parlamentos e assassinar figuras do regime. Se a personagem em questão não fosse fictícia, isto seria quase tão mau como os betos que vestem t-shirts do Che para se manifestarem contra as propinas. Em V for Vendetta, Alan Moore faz-nos temer a personagem. Apesar de concordarmos com os seus fins, é suposto ficarmos enojados com alguns dos meios, em especial com a tortura psicológica a que submete a pobre prostituta que salva no início do livro. Ainda por cima, a máscara só é vendida porque um estúdio da Big Hollywood decidiu fazer um filme baseado na obra, filme esse que o autor nunca autorizou. Podem protestar à vontade: desde que isso signifique mais máscaras vendidas (pelas quais o Moore não vê um centavo) a Warner Brothers deixa-vos em paz. Por estas razões, sempre me pareceu que o melhor seria esquecer o V como mascote da revolução e optar por Spider Jerusalem do Transmetropolitan de Warren Ellis. O universo de Transmetropolitan é em tudo mais parecido com aquele em que vivemos do que o de V for Vendetta. Em primeiro lugar, e por pior que as coisas estejam, não vivemos num regime completamente orwelliano/fascista. Ainda temos eleições, ainda podemos dizer o que nos apetece sem censura prévia. Podemos ser condicionados de forma limitada e súbtil, mas não é o Estado que controla todos os meios de comunicação. Que me lembre, não há sequer nada parecido com a internet na obra de Moore.   Já Transmetropolitan é, essencialmente, uma versão exagerada do que temos actualmente e daquilo que nos espera num futuro próximo. E, apesar da série ter estreado no final dos anos 90, paradoxalmente parece mais actual a cada ano que passa. Neste universo ainda temos eleições, mas o processo político só é tornado público depois de filtrado pelas lentes do show biz. Qualquer que seja o vencedor desse processo, quem se lixa é o povo, alienado de tudo o que é importante por um bombardeamento incessante de informação. Existem ecrãs nos passeios, gajos que andam com bluetooths gigantes nos ouvidos, constantemente a gravar e a exibir tudo o que vêem. Tanto programa de entretenimento para ver, tantos comentadores baratos e pivôs para escutar, tanto produto para consumir, que poucos se estão a marimbar para o que se passa na esfera política. Ricos mais ricos, pobres mais pobres, mas ninguém parece notar. Até, claro, que a corrupção chega a um ponto de podridão insustentável e o único jornalista com coragem para fazer o seu trabalho, o nosso Spider Jerusalem, lidera uma revolução contra um presidente que esconde toda a sua malvadez por trás de um sorriso simpático. Enquanto que V lutava contra o sistema matando as suas principais figuras, Spider pega no seu laptop e narra, com livefeed, a repressão que vê nas ruas. A sua mensagem é de tal forma difundida que não pode ser ignorada — e isto logo nos três primeiros números da revista, o que significa que Ellis previu o impacto do Twitter em 1997! Spider foge à censura: quando, por ordem do governo, é despedido da revista onde trabalha, continua a publicar os seus artigos através de um servidor secreto que o governo não consegue travar. Usa todos os meios possíveis e imaginários para obter e divulgar informação que os poderosos não querem revelada, como um Julian Assange, mas um Assange que nunca se venderia a um canal controlado pelo Kremlin. É verdade que também mata meia dúzia de pessoas pelo caminho, mas é quase sempre em autodefesa. A única razão para os Anonymous optarem pelo V é o anonimato. Nunca sabemos com clareza quem é V, mas Spider, por outro lado, é, por natureza, espalhafatoso — baseado em Hunter S. Thompson, o herói de Transmetropolitan é uma estrela do jornalismo, odiado e amado por milhares, tanto pela sua prosa como pelo seu consumo industrial de estupefacientes. É completamente o oposto de um rebelde que não dá a cara, mas as vantagens de ter V como símbolo ficam mesmo por aqui. Até os Anonymous deixarem o 4chan e começarem a colocar bombas nos parlamentos ou a matar ministros e agentes de polícias secretas, o melhor é raparem todos os pêlos do corpo, encherem-se de tatuagens e usarem óculos com lentes vermelhas e verdes.