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Games

Como um grupo de gamers rastreou um suspeito de quatro assassinatos

Quando um webamigo disse que tinha matado quatro pessoas e estava prestes a matar outra, membros de um fórum de videogame entraram em ação. Mas eles estavam correndo contra o tempo.

Maroon Ayoub ainda estava na cama quando recebeu uma mensagem de um webamigo que usava o nome de usuário “Menhaz”.

Ainda com sono, ele leu a mensagem privada no Discord, um aplicativo de bate-papo para gamers, e o texto o perturbou profundamente.

“Acabei de matar minha família inteira, e provavelmente vou passar o resto da vida na cadeia se conseguir sobreviver”, Menhaz escreveu. “Espero ter te feito rir em algum ponto, espero que você se lembre dos bons tempos. Vou sentir falta de todos vocês.”

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Nani [japonês para 'o quê']”, respondeu Ayoub. “Acabei de acordar.”

“Desculpe”, respondeu seu amigo da internet. “Você quer as fotos?”

A conta Menhaz então enviou para Ayoub várias fotos supostamente mostrando seus parentes mortos no chão, cobertos de sangue, com as gargantas cortadas. Conhecidos online de Ayoub e Menhaz receberam mensagens similares.

Foi um momento chocante para um grupo de amigos construído em torno de uma das coisas mais de nicho imagináveis: um servidor privado para o Perfect World, um jogo multiplayer chinês gigante lançado em 2005. Eles se conheceram no servidor do jogo, chamado Perfect World Void, e em seus fóruns de discussão anos antes.

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Esse grupo improvável de gamers, por um momento, eram as únicas pessoas no mundo a saber de um homicídio quádruplo em andamento. Era uma situação impossível: O que um grupo de amigos que nunca se encontrou pessoalmente, que não sabe o nome real uns dos outros, pode fazer contra um possível assassino em série?

Eles decidiram agir, Ayoub disse a VICE, tentando rastrear a pessoa por trás da conta Menhaz no mundo real e avisar a polícia.

Várias horas depois, na tarde de 28 de julho, a polícia foi até uma casa em Markham, Ontário, para verificar a situação. Lá eles encontraram uma cena perturbadora. Na casa estavam os corpos de Malesa Zaman, 21 anos; Moniruz Zaman, 59; Momotaz Begum, 50, e Firoza Begum, 70 anos. A polícia prendeu um homem de 23 anos chamado Menhaz Zaman na cena, e ele foi acusado de quatro homicídios qualificados.

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A polícia diz que recebeu informação que levou a uma viatura ser despachada para o local, mas não esclareceu qual foi essa informação e nem confirmou as informações conseguidas pela VICE. Um porta-voz da polícia disse a VICE que como Zaman já está sob custódia, não há risco para a segurança pública. A polícia está cuidadosa com o que confirma publicamente para não prejudicar um futuro processo contra ele. (As acusações contra Zaman ainda não foram a julgamento, nem está estabelecido que ele operava as contas Menhaz nos servidores e fóruns Discord e PWV, então a VICE vai se referir a Menhaz Zaman como “Zaman” e a conta que contatou os gamers como “Menhaz”.)

Mesmo não sabendo o que realmente aconteceu naquela casa em Markham, os gamers que dizem ter sido arrastados sem querer para esse crime horrendo resolveram compartilhar publicamente suas versões dos eventos.

O relato abaixo foi montado de entrevistas com vários gamers envolvidos, que compartilharam prints da noite em questão com a VICE.

Membros da comunidade do Perfect World Void (PWV) interagiam com a conta de Menhaz há muito tempo, alguns por mais de cinco anos. Vários jogadores que falaram com a VICE o consideravam um amigo, e eles jogavam e conversavam online quase todo dia.

Eles sabiam um pouco sobre ele: ele era canadense e dizia frequentar uma universidade, ele adorava videogames e muitas vezes ele já estava jogando quando eles entravam e continuava depois que eles saíam do jogo. A pessoa que eles conheciam apenas como “Menhaz” jogava com um sacerdote elfo, uma classe conhecida por ser boa em apoio e defesa. Jogadores que passaram tempo com ele online disseram que ele gostava de conversar com outros gamers em batalhas um a um.

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“Quando ele começou a dizer que mataria a família, acho que a maioria achou que era só outra piada de mau gosto.”

Amigos da conta Menhaz o descreveram como um troll. Na maior parte do tempo a trolagem era leve, eles disseram, mas isso mudou no ano passado. Ele disse que era ex-muçulmanos, e começou a zombar de sua antiga religião e a usar insultos raciais. Ele começou a falar em se matar e matar sua família no começo de março, segundo os logs de chat vistos pela VICE, um desenvolvimento preocupante que os jogadores do PWV consideraram apenas humor negro.

Afinal de contas, isso é a internet; pessoas ameaçam matar uns aos outros, e pior, quase todo dia online. Muitas vezes esse tipo de provocação é velada em camadas de ironia da internet e podem ser ignoradas como humor – até que a coisa explode na vida real.

“Nos últimos meses o humor dele se tornou extremamente sombrio, ele falava muito sobre suicídio mas, pelo menos pra mim, ele sempre fazia parece uma piada de mau gosto”, disse um conhecido do PWV, que quis permanecer anônimo. “Quando ele começou a dizer que ia matar a família, acho que a maioria achou que era só outra piada de mau gosto. Mesmo quando ele deu uma data para cometer o ato, achei que ele só estava trolando todo mundo.”

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Alguns dos comentários que Menhaz fez quando a conta mudou o nome para "Allah". Screenshots fornecidas pelos entrevistados.

As ações da conta de Menhaz se tornaram tão extremas que, em 11 de julho, ele foi banido do servidor PWV pelo que um moderador descreveu como “repetidas declarações racistas”. Outro amigo online de longa data disse quem em 25 de junho – a quinta-feira antes dos assassinatos – a conta de Menhaz disse num chat em grupo que a vida dele estava prestes a acabar, que alguém tinha dado uma dica às autoridades sobre algum tipo de plano que ele tinha bolado.

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“Na quinta foi quando ele entrou num chat em grupo e disse apenas 'Estou aqui só pra me divertir' e postou imagens aleatórias do jogo”, disse o amigo. “Aí, do nada, ele disse que sua vida ia acabar. Ele disse que alguém tinha dedurado ele, então ele precisava fazer aquilo o quanto antes.”

Apesar das provocações anteriores, ninguém percebeu o que “aquilo” significava, ou o drama sangrento que estava prestes a se desenrolar.

Depois disso, a conta Menhaz ficou em silêncio. Um membro do PWV – que não quis ter seu nome divulgado e que vamos chamar de “John” – notou isso, e no sábado escreveu para ele num pequeno chat em grupo para ver como ele estava. Isso foi por volta das 22h do horário local do Canadá no sábado, uma noite antes que os corpos da família Zaman fossem descobertos pela polícia em Markham, e aquela longa noite estava apenas começando.

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A conta Menhaz no Perfect World Void. Foto via screenshot.

A conta Menhaz disse a John no Discord que ele tinha matado sua família, e mandou imagens fortes de duas mulheres caídas no chão cobertas de sangue.

“No fundo eu sabia que era real mas ainda não conseguia acreditar, achei que ele estava brincando”, disse John. Talvez, ele esperava, seu conhecido da internet estivesse simplesmente fazendo outra trolagem idiota – mais elaboradas que as anteriores, claro, mas um deles realmente poderia cometer um ato tão horrendo?

Perturbado, John foi até um chat do Discord do Perfect World Void e pediu para as pessoas verificarem se as fotos podiam ser achadas nas profundezas da internet. O grupo procurou em vão as fotos da família massacrada por toda a internet, até que a conta de Menhaz acabou violentamente com qualquer dúvida que restava.

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A conta Menhaz disse que ele ia matar sua irmã e depois mandar a foto do corpo. Para confirmar que era sua família que ele tinha matado, a conta compartilhou uma foto da família reunida, quando vivos, cortando o que parecia ser um bolo de aniversário.

Depois ele disse a John e outros que estava “esperando o pai chegar em casa para matá-lo”. Ele disse que o pai chegariam em “cerca de uma hora”.

Esse foi um momento decisivo. Não só eles acreditavam agora que os assassinatos eram reais, mas que ainda estavam em andamento – o tempo estava se esgotando para a próxima morte.

Precisando fazer alguma coisa, John criou uma sala de bate-papo no Discord e adicionou as contas dos amigos de Menhaz e usuários do PWV que ele sabia que eram canadenses.

“Adicionei todo mundo que estava ativo e achei que poderia ajudar”, disse John. “Tentamos falar com alguém que morava no Canadá ou pudesse contatar a polícia lá.”

Logo depois, a conta Menhaz enviou uma foto de um homem mais velho com a garganta cortada.

“Tentamos salvar o pai dele mas não conseguimos chamar a polícia a tempo”, disse John.

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Com quatro pessoas agora provavelmente mortas, a conta Menhaz começou a mandar mensagem para várias pessoas com textos similares, incluindo Ayoub, começando com “Acabei de matar toda a minha família…”

Em mensagens posteriores para Ayoub, a conta Menhaz disse que começou a compartilhar as imagens com várias pessoas porque, no fundo, “uma parte de mim quer que isso se espalhe rápido, para que eu seja pego logo e o purgatório em que estou acabe”.

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Quando Ayoub entrou na internet depois de receber as mensagens perturbadoras, ele foi adicionado ao grupo de John. “Um jogador me contatou imediatamente, dizendo 'Menhaz cometeu assassinatos', aí ele me adicionou num grupo com quatro outros jogadores que estavam tentando contatar a polícia, mas não tinham muita informação sobre a localização de Menhaz”, disse Ayoub. Eventualmente, o grupo cresceu para cerca de dez pessoas.

Com a conta Menhaz dizendo que sua família inteira estava morta, os gamers ficaram com medo que o surto de violência de seu conhecido online pudesse não ter acabado ainda. Numa série de screenshots compartilhados com a VICE, jogadores perguntaram a ele “o que você vai fazer agora?” e uma das coisas que ele respondeu foi “ver minha namorada”.

O grupo passou então a tentar encontrar um endereço de IP ligado à conta Menhaz. Um IP é um identificador único de aparelhos conectados na internet, que pode dar uma indicação de sua localização geográfica. Se eles conseguissem encontrar um IP e ligá-lo a um endereço doméstico, eles podiam ter uma chande de alertar a polícia e dar a localização de seu conhecido.

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Pensando que outra vida ainda podia estar em perigo, eles continuaram conversando com a conta Menhaz para mantê-lo ocupado. A conta Menhaz continuou digitando, mas ele não queria dar seu endereço.

A VICE viu várias screenshots dessas conversas. Nelas, a conta Menhaz fala sobre ter planejado os assassinatos por três anos e, em certo ponto, discutiu levar os corpos para outra parte da casa para serem fotografados melhor. “Talvez uma última foto em grupo”, a conta Menhaz escreveu.

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Encontrar o endereço de alguém online em pouco tempo é uma tarefa incrivelmente difícil. Endereços de IP podem ser pistas falsas, especialmente se a pessoa estiver usando um VPN – que roteia o tráfego da internet por um servidor em outra localização que não a do usuário – ou simplesmente logado num wi-fi de um café.

A equipe fez um progresso lento, e acabou com pistas falsas. Em certo ponto, um administrador do PWV colocou um endereço de IP ligado à conta Menhaz num fórum do PWV. O grupo achou que tinha pego o amigo, mas o endereço era de New Brunswick; e um dos membros do grupo sabia que ele não morava nessa província. Mas eles continuaram.

“Perdi a noção do tempo”, disse John. “Conseguimos alguns endereços de IP mas eles estavam errados.”

Mas a busca finalmente deu resultado. Parte do grupo decidiu que podia conseguir informação da conta do Skype ligada ao amigo da internet. Era uma boa aposta. Dessa busca eles também conseguiram encontrar um endereço de IP indicando que ele estava na área da Grande Toronto. Para um membro dessa equipe, uma usuária que usava o nome Bianca, isso foi um choque. Não só a pessoa por trás da conta Menhaz estava no Canadá, mas bem perto dela.

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“Por volta das 3 da manhã eu não conseguia dormir”, disse Bianca. “Isso aconteceu a apenas 12 quilômetros de onde estou e fiquei ansiosa. Mais cedo, por volta da 1 da manhã, ele estava dizendo que ia visitar a ex-namorada, e achamos que ele podia matá-la também ou algo assim.”

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“Foi isso que me motivou a conseguir o endereço certo.”

Um endereço de IP pode identificar a localização geográfica de um usuário, mas não é exato. Imagine tentar ligar para a polícia de outro país e explicar que você é uma pessoa da internet que acha que alguém, cujo nome real você não sabe, acabou de matar quatro pessoas em algum lugar da cidade. O grupo do PWV sabia que precisava de mais.

Aí eles tiveram sorte: Depois dos assassinatos, a conta Menhaz começou a pedir o e-mail de seus conhecidos para enviar dinheiro a eles por PayPal.

“Como você é um bom amigo, quero te dar algum dinheiro porque não vou precisar para onde estou indo”, escreveu a conta Menhaz para seus amigos online. “Já dei dinheiro para várias pessoas.”

“Fiz isso porque não quero que meus pais tenham vergonha de ter um filho como eu.”

Bianca procurou pagamentos vindos da conta no PayPal de Menhaz e achou um endereço residencial que combinava com a informação tirada do IP. Eles finalmente tinham localizado uma casa ligada à conta Menhaz.

John disse que acha que todo o processo levou de quatro a cinco horas. Bianca ligou para a polícia na madrugada de domingo, ela disse, e deu a eles a informação.

“Consegui dormir depois das 6 da manhã, depois de ter ligado para a polícia entre as três e cinco horas”, ela disse. “Entrei na internet de novo por volta das 11h e [mais tarde naquele dia] notei matérias começando a aparecer mostrando que ele tinha sido preso. Fiquei aliviada.”

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Às 15h do domingo, policiais foram até a casa dos Zamans, onde encontraram quatro corpos e prenderam Menhaz Zaman.

Quando a polícia finalmente chegou, a conta Menhaz encerrou a conversa com John escrevendo simplesmente “A polícia está aqui. Adeus”.

Na segunda-feira, a polícia acusou Menhaz Zaman de quatro homicídios qualificados.

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Depois de tudo, a comunidade PWV está tentando entender realmente o que acontece e em que ponto a trolagem de Menhaz deveria ter sido vista como um alerta real da suposta violência que aconteceu.

“É uma coisa muito foda”, um amigo nos disse. “Isso realmente me fez pensar em quão diferente todo mundo pode ser do que retrata no jogo.”

Nas mensagens mandadas para o grupo na noite dos supostos assassinatos, a conta Menhaz explicou que sua família achava que ele estava frequentando a universidade. Na verdade, ele estava vivendo uma mentira.

“Comecei a matar aula logo no primeiro ano; [o curso] era engenharia mecânica”, diz uma das longas explicações que a conta Menhaz mandou para um conhecido. “Acredite, se pudesse voltar no tempo eu voltaria, mais depois de não passar em metade das matérias, tive que repetir os cursos. No segundo semestre comecei a ficar deprimido, me tornei ateu, e acabei criando esse plano. Então por três anos tenho dito aos meus pais que frequento a universidade, quando na verdade fico no shopping quatro dias por semana. O shopping fica na mesma rota. Eu disse aos meus pais que as aulas não são muito longas, então fico no shopping das 8 às 13h, enquanto também frequento a academia comunitária.”

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Ele disse para a família que se formaria em 28 de julho, explicou a conta Menhaz, e que ele tinha que fazer alguma coisa antes que sua mentira fosse descoberta.

Ele disse que matou a família para eles não descobrirem como ele era “inútil”. Ele se referiu a si mesmo várias vezes como “sub-humano”, e disse que matou a família em vez de se matar porque era ateu e tinha medo da morte.

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“Fiz isso porque não quero que meus pais sintam vergonha de ter um filho como eu”, a conta continuou. “Escolhi matá-los em vez de me matar por covardia, porque sou ateu e acredito que essa é a única vida que temos. Sei que parece confuso, mas o que está feito, está feito, e o que foi planejado foi concluído.”

Dias depois daquela noite horrível, algumas pessoas do grupo que trabalhou para alertar a polícia ainda estão experimentando trauma. Uma pessoa disse que não consegue comer, outra disse que tem tido problemas para dormir. Algumas pessoas que só conversaram com a conta Menhaz durante o caso dizem que gostariam de ter feito mais.

“Eu deveria ter prestado mais atenção no que ele disse na quinta”, um amigo de longa data dele no fórum disse. “Talvez eu tivesse uma chance de impedir tudo isso.”

Nenhuma das acusações contra Menhaz Zaman foi provada no tribunal. Sua primeira aparição na corte estava marcada para 2 de agosto.

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Matéria originalmente publicada na VICE Canadá.

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