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Seria o Regime Sírio Responsável Pelo Pior Ataque Químico do Mundo em Décadas?

Relatos de quem sobreviveu ao ataque químico de Assad.

O ataque talvez tenha vindo numa hora estranha. Nas últimas semanas, o regime de Assad parecia estar ganhando vantagem na complexa e prolongada guerra civil no país. Inspetores da ONU estavam em Damasco verificando acusações anteriores de uso de armas químicas no começo deste ano.

No entanto, nas primeiras horas da quarta-feira, 21 de agosto, relatos começaram a se espalhar nas redes sociais, dizendo que agentes químicos tinham sido usados em várias localidades de Ghouta do Leste e Oeste, bairros da periferia de Damasco. Vídeos angustiantes começaram a surgir no YouTube e no Facebook, mostrando civis em pânico nas ruas, lutando desesperadamente para respirar, e inúmeras outras pessoas caídas inertes no chão ao redor. Outros vídeos mostravam crianças espumando pela boca, de olhos abertos, porém, insensíveis, tendo convulsões incontroláveis em corredores de hospitais lotados. As coisas mostradas nesses vídeos ainda não foram comprovadas, mas, no final do dia, a maioria deles mostrava fileiras de corpos, rostos imaculados como se as pessoas estivessem apenas dormindo, enrolados em mortalhas brancas. Crianças de fraldas e homens deitados lado a lado, combatentes lado a lado com civis.

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Enquanto o sol se punha na quarta e o Conselho de Segurança da ONU agendava uma reunião de emergência em Nova York, estima-se que o total de mortos tenha ficado entre 500 e 1.300 pessoas, no que, se comprovado, pode ter sido o ataque químico mais letal do mundo desde que Saddam Hussein ordenou o ataque a gás a Halabja em 1988. Naquele dia, algo entre 3 mil e 5 mil curdos perderam a vida.

A liderança dos rebeldes sírios foi rápida em colocar a culpa no governo.

“O regime sírio está zombando da ONU e das grandes potências ao atacar alvos próximos de Damasco, enquanto eles [os inspetores de armamentos da ONU] estão apenas a alguns passos de distância”, declarou George Sabra, do partido de oposição sírio Coalizão Nacional.

O regime sírio rejeitou tais alegações e afirmou que elas são infundadas, enquanto a Rússia acusou os rebeldes de encenar o ataque numa tentativa de armar para o governo de Assad e catalisar uma intervenção estrangeira no conflito. O presidente Obama disse inúmeras vezes: se o regime de Assad usasse armas biológicas contra os rebeldes, os Estados Unidos seriam forçados a agir por razões morais.

Na Síria, médicos operando emergencialmente em Ghouta do Leste relataram problemas para tratar dos afetados, o que se agravou ainda mais com o suprimento reduzido de atropina, um agente muscarínico extraído da beladona e do estramônio capaz de dilatar as pupilas, elevar os batimentos cardíacos, reduzir a salivação e outras secreções em vítimas de ataques químicos. Sem isso, os médicos tiveram que tratar os pacientes com água.

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“Por volta das duas da manhã, ouvimos um barulho estranho, mais baixo do que um ataque de morteiro”, disse Fouzi Al-Kabouny, 20 anos, membro da Brigada do Exército Muçulmano do Exército Livre da Síria posicionado em al-Qabun, Ghouta do Leste.

“Você se acostuma com o som de tipos diferentes de projéteis e armamentos, mas esse era diferente”, continuou Fouzi, um aspirante a ator que a guerra civil transportou para um palco muito mais sombrio.

“Todos fomos para fora. Havia pessoas nas ruas desmaiadas e que não conseguiam respirar. Ao nosso redor, havia cerca de dez mortos. Nas outras partes foi pior. Fui com meu batalhão para outras áreas para tentar ajudar.”

“Muitas pessoas, várias crianças, caídas no chão. Muitas delas com as mãos levantadas como se perguntassem a Deus: 'Por quê?'”, continuou Fouzi, via Skype.

“Lembro que estávamos no meio dessa cena de horror quando um MIG [do Exército Sírio] passou sobre nós. Eu e meus colegas agarramos nossas Klashnekoffs e começamos a atirar para o céu, mesmo sabendo que nossas armas não tinham poder suficiente para acertar o avião.”

“Parte de mim quis que Deus me levasse também.”

AVISO: Esse vídeo contém imagens perturbadoras.

Saleh, 24 anos, um colega combatente do Exército Livre da Síria [ELS], estava em Zamalka com seu irmão Mohammad e seu primo Amr na hora do ataque. Ele perdeu a consciência e foi acordar três horas depois numa maca de hospital. Seu irmão e o primo também sobreviveram.

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“Talvez a gente tenha tido sorte”, disse Saleh. “Mas hoje os bombardeios continuam.”

Civis de diferentes áreas de Damasco e Ghouta do Leste com quem falei notaram que, logo após o ataque, o conflito dentro e ao redor de Damasco pareceu continuar normalmente.

“Algumas pessoas estão nas ruas cuidando de seus negócios rotineiros…”, disse Ahmad, 24 anos, parte da maioria ismaeli de Jaramana, cidade controlada pelo regime – localizada a alguns quilômetros das outras cidades atacadas, que, no entanto, não foi afetada.

“…mas eu não quis sair de casa depois do que aconteceu.”

“Isso me pareceu estranhamente similar”, disse Mouassad, 24 anos, técnico de informática, falando do distrito de Al-Midan em Damasco.

“O mesmo som das armas de batalha com pausas ocasionais. Não houve silêncio. Tantos mortos sem sangue nos rostos. É quase como se estivessem dormindo – mas não houve silêncio. Era como se não houvesse tempo para chorar pelos mortos.”

Em algumas áreas de Damasco, onde o apoio à revolução síria é mais forte, as pessoas protestaram nas ruas contra os ataques. Alguns cartazes diziam:

“Não vamos ofender seus olhos com nossa aparência porque Bashar nos matou sem sangue.”

Outras mensagens criticavam a falta de intervenção estrangeira no conflito, que já dura dois anos e meio e já causou mais de 100 mil mortes. Algumas vozes dentro da oposição síria sugerem que tais ataques podem ocorrer novamente como parte de uma tentativa do regime de expandir a zona de segurança no centro de Damasco.

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Em Beirute, a 72 quilômetros de Damasco, cerca de 300 sírios e libaneses realizaram uma manifestação na Praça dos Mártires. Na última quinta-feira, Dahieh, um subúrbio no sul da capital do Líbano, foi atingido por um carro-bomba, um aviso para que o partido xiita libanês Hezbollah pare com suas atividades militares em nome do regime de Assad em toda a fronteira com a Síria. Algumas pessoas na manifestação carregavam velas e cartazes com imagens das vítimas de Ghouta do Leste, e gritavam “hurriye” – ou “liberdade” e “viva Síria, abaixo Bashar”.

Saindo da manifestação, Talal Mag, um cineasta que se mudou para Beirute em 2012, parecia desanimado. Seus sentimentos e linguagem corporal pareciam resumir o humor coletivo do protesto.

“Viemos aqui prestar nossos respeitos e claro que isso é importante. Mas, no contexto de hoje, às vezes é difícil sentir que estamos fazendo alguma diferença.”

De volta a Al-Qabun, Fouzi refletiu sobre a pergunta na mente de todos depois dos ataques de quarta-feira.

“Por que o regime sírio usaria armas químicas em Ghouta do Leste exatamente quando os inspetores da ONU estão em Damasco? Será que a oposição teve culpa nisso?”

Depois de alguns minutos de reflexão, acrescentou:

“O regime não se importa com a presença deles. De qualquer maneira, como de costume, a ONU vai demorar seis meses para começar a investigar e depois dirá que o regime sírio ou o ELS é culpado disso e daquilo. Mas nada vai mudar.”

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Siga o Martin no Twitter: @ScotinBeirut

Ano passado fizemos uma edição especial inteirinha sobre a Síria, leia no link abaixo:

Edição Síria

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