A lenda do 52 Blocks

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A lenda do 52 Blocks

Investigamos as origens da mais misteriosa luta de rua de Nova York. Algumas histórias se desencontram, mas uma coisa é certa: o couro comia, sim.

Arte de Grimoire

Não sei quando foi a primeira vez em que ouvi falar do 52 Blocks. Como muito da mitologia urbana de Nova York — a gangue Decepticons, os túneis embaixo de Alphabet City, os jacarés albinos — esse estilo de luta sempre parecia flutuar em algum lugar além do meu conhecimento consciente, um sussurro vindo de uma direção misteriosa. Claro, eu também havia escutado referências ao 52 espalhadas em letras de rappers como Nature, um protegido de Nas, e Killa Sin, afiliado ao Wu-Tang. O Wu-Tang Clan, em particular, parece ter uma afeição pelo 52. GZA, Ghostface Killah, Method Man, e vários afiliados aos Killa Bees escreveram rimas sobre o 52. A letra mais memorável sobre o 52 provavelmente é este trecho de Meth em sua música com Redman: "52 cops/ Can't withstand the 52 Blocks/ Unless they bust like 52 shots." [52 policiais/ Não podem aguentar o 52 Blocks/ A não ser que disparem uns 52 tiros]. Quando eu trabalhava como segurança noturno em Manhattan, há muitos anos, conversei uma vez com um cara da equipe de limpeza. Ele se gabava de ter estudado muitos estilos de luta ao longo de sua vida enquanto balançava seu esfregão no ar como um bastão japonês. Como ele havia passado a juventude num reformatório nos Rockways nos anos 1970 e era, ao que parecia, especialista em muitos estilos de luta, perguntei se ele conhecia algo sobre o 52 Blocks. "52 Blocks?", ele desdenhou. "Essa merda aí é coisa de guetos. Não é nada." Alguns minutos mais tarde, um amigo meu que também estava na equipe de limpeza subiu as escadas. Ele não era tão ligado em artes marciais, mas era um cara durão e passou algum tempo na cadeia nos anos 1990. Fiz a mesma pergunta para ele. "Sim", ele disse. Um sorriso se abriu em seu rosto. "Sim." Ele logo me levou até o computador da equipe de segurança e abriu o YouTube para buscar o quinto round de Judah versus Mayweather. Ele sabia de cor o round exato da luta. Capítulo e versículo. Assistimos ao vídeo em silêncio. Mayweather domina nos primeiros minutos e encurrala Zab Judah no canto do ringue. Então algo muda na cabeça de Judah e ele dá um passo em direção ao centro. Ele encaixa os cotovelos no lado do corpo e seus braços pendulam em frente ao rosto, como uma borboleta batendo suas asas. "Diga-me o que é isso", diz o locutor, incrédulo. Mayweather dá um passo para trás – com sua famosa arrogância escorrendo pelo ralo – e Judah acerta uma sequência certeira. Então esse era o 52 Blocks, pensei. Era algo, afinal de contas. E era bonito. +++ Até o nome 52 Blocks está cercado de mistérios. Alguns dizem que é um catálogo de movimentos individuais com nomes sugestivos como "caveira e ossos cruzados". Outros negam e dizem que é uma metáfora para um estilo em geral, derivada do jogo "52 pickup", em que um jogador atira as cartas de baralho para cima e deixa que caiam em qualquer lugar. Há ainda quem diga que o "Block" em questão é um bloco específico de celas numa cadeia. De fato, o nome alternativo do 52 é "Comstock Shuffle", uma referência à prisão de segurança máxima The Great Meadow Correctional Facility, em Comstock, Nova York. Seja 52 Blocks ou Comstock, o termo se refere a um suposto estilo de Jail House Boxing [boxe de cadeia], também conhecido como Jail House Rock, desenvolvido especificamente no sistema prisional de Nova York. Isso o diferencia de estilos similares em outros sistemas prisionais, como Nova Jersey e Pensilvânia, que são variados, menos desenvolvidos e têm nomes diferentes. Os movimentos em si refletem o ambiente da prisão. A ideia é que as posturas encolhidas, a falta de movimentos amplos e a ênfase na sobrevivência e na defesa foram criadas para funcionar no confinamento de uma cela de prisão, e não num ringue. Há rumores na internet sobre um predatório mestre gay de 52 Blocks chamado de Mother Dear – e a prestigiosa enciclopédia Martial Arts of the World [Artes Marciais do Mundo] sugere que ele criou o estilo por conta própria na prisão de Rikers. Não há registro da verdadeira identidade desse homem.

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A primeira referência a um estilo de luta desse tipo aparentemente foi uma edição de 1974 da revista Black Belt, numa reportagem sobre o caratê nas prisões. A maior parte do artigo se concentra nos treinos clandestinos de caratê tradicional em prisões do Estado de Nova York e de outros lugares, mas a conclusão se concentra nas mais interessantes "artes caseiras". A Black Belt trata os estilos de luta de prisões como uma variante "improvisada" de estilos de luta corporal usados por veteranos do exército aprisionados, e se refere a eles com nomes específicos para cada prisão, como "a variante de Coxsackie" e "o estilo de Comstock". Incrivelmente, o homem de cabelo afro fotografado demonstrando o estilo de Comstock é Miguel Piero, o famoso poeta e dramaturgo do movimento artístico Nuyorican. A Black Belt não poderia ter encontrado um modelo mais apropriado. Em seu "Poema do Baixo Leste", Piñero se descreve como "um lutador de rua". Ele segue explicando que é "um morador da prisão / um câncer do guetocídio de Rockefeller/ esta tumba de concreto é minha casa / para adaptar-se e sobreviver é preciso ser forte". A primeira referência jornalística direta ao 52 Blocks, porém, não parece ter sido feita até o distante ano de 1999, no livro Street Kingdom: Five Years Inside the Franklin Avenue Posse [Reino da Rua: Cinco anos dentro da gangue da Avenida Franklin], de Douglas Century, um relato de imersão numa gangue do bairro de Crown Heights no início da década de 1990. Century deu sequência ao trabalho dois anos depois com um esclarecedor artigo sobre o 52 Blocks na recém-fechada revista de moda Details. Em seu livro, Century descreve o "cinquenta e dois bloqueios de mão" como "um estilo de luta corporal desenvolvido no sistema prisional de Nova York e amplamente praticado entre membros de gangues nas ruas do Brooklyn dos anos 1970 e 1980". Esta é uma definição tão boa quanto qualquer outra (embora alguns caras do Bronx ou do Harlem possam questionar sua especificidade geográfica). Em seu artigo na Details, Century cita Dennis Newsome, um conhecido mestre de capoeira e estudioso das artes marciais, que oferece sua própria definição do 52 Blocks: "Basicamente é uma surra artística… É algo que faz parte da estética negra". Newsome em seguida argumenta que a segregação racial comum nas prisões significava que somente detentos afro-americanos aprendiam o estilo. Diz a lenda que o 52 Blocks se espalhou das prisões para as ruas nos anos 1970. É plausível; o estilo das ruas sempre refletiu a cultura da prisão, e golpes que funcionariam no confinamento das prisões seriam igualmente eficazes nos conjuntos habitacionais parecidos com penitenciárias que dominaram os guetos de Nova York na era da renovação urbana. Como qualquer estilo de luta eficiente seria essencialmente um contrabando, uma arma ilícita transportada para dentro e para fora da prisão, ele teria que permanecer na surdina. Seja para referir-se a ele como uma lenda ou como um fato, o nome 52 Blocks só existia no jargão secreto dos iniciados. Esse sigilo é, em parte, o que torna tão difícil a tarefa de pesquisar ou comprovar muito de sua história. Devido à associação de ambos com o sistema prisional, na cabeça de muita gente o 52 Blocks está ligado à automitificada Nation of Gods and Earths [Nação dos Deuses e Terras], mais conhecida como Five Percenters [Os Cinco Por Cento]. A história dos Five Percenters é complexa demais para que tratemos disso aqui, mas é um movimento fascinante que foi fundado por um ex-pregador da Nation of Islam [Nação do Islã] chamado Clarence 13X, vulgo Father Allah, no Harlem dos anos 1960. A linguagem peculiar dos Five Percenters teve um impacto profundo no hip hop e nas gírias norte-americanas modernas. As lições dos Five Percenters – que também eram um código de conhecimento misterioso frequentemente aprendido na prisão – podem ser vistas como um equivalente mental ao 52 Blocks, da mesma forma como muitas práticas orientais têm um lado espiritual e outro físico. Em seu livro, Tao of 52 [O Tao do 52], o autoproclamado especialista Diallo Frazier escreve: "[O] 52 era chamado God Blocks porque na ciência da matemática Suprema, o número 7 é o número de DEUS. Quando você soma 5 e 2 o resultado é 7…" Histórias de quem recebeu uma transmissão esotérica de conhecimentos religiosos ou de artes marciais atrás das grades têm um grande apelo para muitos dos detentos, porque permitem que os anos passados na prisão sejam vistos como um tempo dedicado a adquirir conhecimento, e não simplesmente perdido. +++ No início dos anos 1970, a percepção das artes marciais asiáticas começou a influenciar a cultura das ruas de Nova York por meio dos populares filmes importados de kung fu. Os aficionados já visitavam os cinemas de Canal Street em Chinatown, mas a explosão nas exibições de filmes de artes marciais no centro da cidade significava que uma audiência maior, não-asiática, foi exposta ao gênero. Um artigo de 1974 no periódico de cinema Cineaste proclamou: "Em pouco menos de dois anos, o kung fu (também conhecido como boxe chinês), a secular arte marcial chinesa, ganhou a simpatia do público americano e se tornou literalmente a 'fúria do Dragão'." Como pode ser visto no documentário The Black Kungfu Experience, de 2013, alguns afroamericanos fãs de filmes de kung fu se inspiraram para treinar artes marciais chinesas e japonesas na vida real. Ron Van Clief, natural do Brooklin, tornou-se um campeão de artes marciais depois de sobreviver a uma tentativa de linchamento no sul dos EUA nos anos 1960, e serviu em combate como um fuzileiro naval na Guerra do Vietnã. Ele recebeu o nome de "O Dragão Negro", dado por ninguém menos que Bruce Lee, e eventualmente foi viver em Hong Kong para estrelar uma infinidade de filmes de kung fu. Esses filmes, por sua vez, inspiraram toda uma nova geração de artistas marciais afroamericanos. Van Clief foi coreógrafo das cenas de luta do filme O Último Dragão, produzido por Berry Gordy em 1985. O filme, que mostra um confronto entre dois negros especialistas em artes marciais no Harlem, representou a confluência do cinema de Kung Fu e da cultura das ruas de Nova York. Jim Jarmuch desenvolveria esse tema quinze anos depois em Ghost Dog, um filme com trilha sonora do líder do Wu-Tang, RZA. Se levarmos em consideração que o imaginário do Wu-Tang Clan é fortemente inspirado nos Five Percenters e nos filmes de kung fu, não é nenhuma surpresa que suas letras contenham tantas referências ao 52 Blocks.

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A influência do cinema não significa que a moda das artes marciais nos anos 1970 era somente encenação para as câmeras; gangues de rua como os Black Spades, os Nomads e os Ghetto Brothers se enfrentavam ativamente em lutas corporais. Exemplos disso podem ser vistos no ótimo documentário recém-lançado Rubble Kings, que relata os fatos que levaram à trégua de gangues da Hoe Avenue em 1971, no Sul do Bronx. O filme destaca uma figura influente chamada "Karate Charlie" Suarez. Suarez – um fuzileiro naval que virou líder de gangue, depois ativista, e depois instrutor de artes marciais – literalmente fez seu nome como praticante de caratê, e inspirou inúmeros imitadores. +++ Muitos dos defensores do 52 Blocks argumentam que a verdadeira inspiração para o estilo não vem da Ásia, mas da África. Daniel Marks, um estudioso do 52 Blocks, que descobriu o estilo quando estava no exército por meio de recrutas que conheciam o mundo das ruas, se refere numa breve monografia ao "Knocking and Kicking" [bater e chutar], um estilo de luta afroamericano do sul do EUA. Frazier faz algo parecido quando conecta o Jail House Rock ao estilo de boxe "Virginia Scuffin", praticado por escravos no século 19. A existência de escravos que boxeavam sem luvas – como o famoso Tom Molineaux – e eram forçados a lutar para entreter seus proprietários está documentada em outras fontes, incluindo a fundamental Boxiana, uma série de artigos sobre competições de luta no início do século 19. Tanto Marks como Frazier associam o estilo de afroamericanos do Sul a artes marciais africanas, como o Hausa Boxing (também conhecido como Dambe) da Nigéria.

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Dentro da comunidade de artes marciais, há muitos detratores que questionam a própria existência do 52 Blocks, para não falar de sua história que se estende por séculos. Considerando que o mundo das artes marciais está cheio de fraudes orientalistas e bravatas estrondosas, e que há poucas evidências concretas na história do 52 Blocks, algum ceticismo certamente é compreensível. Dito isso, uma boa parte das ofensas ao 52 Blocks vai muito além da crítica cautelosa. Um típico ataque é este, articulado pelo escritor de direita Phil Elmore:

"O sistema simplesmente não existe […] nos pedem que acreditemos que um povo que foi vendido para a escravidão e cruzou o oceano em navios para abastecer o trabalho escravo nos Estados Unidos conseguiu, de alguma maneira, transmitir a estrutura coerente de um sistema de artes marciais complexo e tecnicamente diversificado para seus filhos, para os filhos de seus filhos, e para os filhos deles, por gerações, sob o olhar vigilante de proprietários de escravos que não teriam interesse em ver suas propriedades aprendendo a lutar."

O argumento essencialmente racista de Elmore nega não apenas o 52, mas a própria ideia de que a cultura afroamericana se desenvolveu a partir de tradições trazidas da África. Aparentemente o sujeito nunca ouviu falar no blues, ou em qualquer outra forma de arte originária da Diáspora Africana. E se ele não acredita que uma organização marcial poderia se formar sob o "olhar vigilante de proprietários de escravos", alguém deveria contar pra ele sobre Nat Turner.

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A epidemia de crack no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 levou a violência às ruas de cidades norte-americanas num nível sem precedentes. Nesse período, as brigas de rua deram lugar à violência armada. Quem argumenta que o 52 Blocks era uma tradição passada de geração em geração aponta esse momento de mudança histórica como o fim do uso prático e da transmissão desse estilo. Na música "Cold World", GZA fala sobre a ineficácia do 52 Blocks com o surgimento da cultura da arma de fogo: "But with iron on the sides, thugs took no excuses/ Therefore, your fifty-two hand blocks was useless." [Com um ferro de cada lado, os bandidos não aceitavam desculpas/ Então, seus 52 bloqueios de mão eram inúteis.]

Como o 52 Blocks se tornou uma relíquia do passado – histórico ou mítico –, algumas pessoas começaram a preservá-lo e homenageá-lo como parte da cultura e herança afroamericanas. O Constellation 52 Global, um grupo que inclui Marks e Kawaun Adon Akhenoten7 (vulgo "Big K", que ganhou fama com Street Kingdom), trabalha para documentar e perpetuar a tradição. Marks diz que valoriza o 52 Blocks "como um testamento da luta do povo negro na Diáspora em sua batalha por igualdade". O conceito do 52 Blocks gradualmente tem ganhado espaço nos esportes, no entretenimento e na cultura popular. Alguns fãs de boxe especulam que além de Zab Judah, outros boxeadores, como Mike Tyson, podem ter incorporado elementos do 52 a seus estilos de luta. A teoria se baseia no fato de que Tyson recebeu muito de sua educação de lutador nas ruas do Brooklyn e num centro de detenção juvenil do Estado de Nova York. Depois de ouvir falar da legendária eficácia do estilo, alguns estudantes de artes marciais estão buscando aprender o 52 Blocks em circunstâncias mais formais. Esse fenômeno foi mencionado num artigo de 2009 do New York Times que, além de Marks e Akhenoten7, se concentrava em Lyte Burly, um treinador cujo negócio é ensinar uma versão do 52 Blocks. O artigo do Times também discute um encontro entre Marks e o campeão do UFC Rashad Evans, e o interesse de Evans em técnicas do 52 Blocks. O 52 Blocks também está ganhando espaço nas telas, como ocorreu com o kung fu. Devido a sua velocidade e explosão, o 52 Blocks é perfeito para essa mídia. De fato, muita gente agora tem seu primeiro contato com o 52 Blocks por vídeos do YouTube, como aconteceu comigo. Estranhamente, o primeiro a usar golpes do 52 Blocks no cinema comercial foi Mel Gibson, no filme Máquina Mortífera, de 1987. O australiano aprendeu seus golpes com Dennis Newsome. Mais recentemente, a mitologia do 52 Blocks teve um papel importante na série Gun Hill, da BET. O personagem de Larenz Tate, Bird, é um ex-presidiário que finge ser um agente policial, por isso seu conhecimento sobre o 52 tem alguma lógica no roteiro. Embora a técnica de luta de Tate – supervisionada por Diallo Frazier – esteja mais para uma exibição feita para a TV do que para uma demonstração autêntica da luta tradicional das ruas e prisões, sua importância na narrativa mostra a crescente popularidade do 52 Blocks, duas décadas depois da era do Wu-Tang. Apesar das luzes e câmeras, o 52 Blocks continua a ser, em sua essência, uma arte de mãos vazias, que funciona atrás do concreto e do aço. Há pouco tempo, por causa de seu trabalho, minha namorada foi ao Harlem pela manhã, logo depois do nascer do sol. Quando passava pelo Marcus Garvey Park, ela viu um homem solitário de uns cinquenta anos – com a aparência desgastada de um ex-presidiário – treinando dentro do trepa-trepa do parquinho, abaixo da ladeira da velha torre de vigilância. Seus braços de meio século passavam rápido diante de seu rosto, cortando o ar da manhã. "Será que aquilo era o 52 Blocks?", ela me perguntou quando chegou em casa. "Eu nunca tinha visto nada parecido." Tradução: Danilo Venticinque