Colocando Armas nas Mãos de Artistas

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Colocando Armas nas Mãos de Artistas

Enquanto a história sobre o tiroteio numa escola do Estado de Washington em outubro ricocheteava pelos noticiários, uma galeria em Nova Orleans reuniu trabalhos de mais de 30 artistas que usaram como inspiração armas desmanteladas postas fora de...

Enquanto a história sobre o tiroteio numa escola do Estado de Washington em outubro ricocheteava pelos noticiários, a Jonathan Ferrara Gallery, em Nova Orleans, abriu uma exposição poderosa e inegavelmente oportuna chamada Guns in the Hands of Artists. Organizada em conjunto com a bienal de arte contemporânea da cidade, a Prospect 3, a mostra reúne trabalhos de mais de 30 artistas que usaram como inspiração armas desmanteladas postas fora de circulação das ruas de Nova Orleans pelo programa de desarmamento remunerado do Departamento de Polícia.

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As obras na exposição, tanto de artistas locais como nacionais, são apresentadas através de vários meios, incluindo fotografia, impressão, escultura e vídeo. Os trabalhos abordam o lugar das armas na cultura norte-americana e frequentemente fazem referência a casos reais de violência armada. One Hot Month, da Generic Art Solutions, por exemplo, é uma coleção serigrafada de 27 fotos de vítimas de armas de fogo em Nova Orleans, no mês de agosto de 2002, encobertas por fotogramas sinistros de revólveres.

Baseada numa exposição similar de 1996, montada na época em que Nova Orleans teve a honra infame de ser a capital do assassinato dos EUA, a arte da mostra trabalha questões da violência inescapável e inevitável. Ela também traz essas questões para um reino visceral, impossível de não se sentir, como evidenciado pela obra Take a Bullet for This City, de R. Luke DuBois, programada para puxar o gatilho sempre que um tiroteio é reportado em Nova Orleans.

A primeira versão da Guns in the Hands of Artists aconteceu na antiga galeria de Jonathan Ferrara, a Positive Space the Gallery, no Distrito Lower Garden. A exposição foi ideia do artista Brian Borrello, que contribuiu com suas esculturas de arma para a mostra atual. Ferrara relembra: "O contexto daquela exposição foi a alta taxa de assassinatos no meio dos anos 90 em Nova Orleans. Brian escolheu montar essa exposição para levar a discussão sobre armas e violência na nossa sociedade ao reino da arte, usando arte como meio de diálogo e ponto de acesso".

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Graças a esse conceito marcante, a exposição apareceu no New York Times, na Time e no Good Morning America; neste caso, uma entrevista que Ferrara quase perdeu, porque, na época, "trabalhava até as 4 da manhã". Apesar de a exposição ter chamado uma atenção significativa da mídia, Ferrara diz que, "de uma perspectiva de exposição, isso foi pesado em armas e meio leve em arte".

Dezoito anos depois, como um dono de galeria muito mais experiente, Ferrara decidiu revisitar Guns in the Hands of Artists. "A ideia brotou dentro de mim. E toda vez que algo acontecia, eu pensava: 'Você precisa fazer alguma coisa'. Fazer o quê? O que os indivíduos fazem numa situação como essa? Tendo feito essa exposição quase 20 anos atrás, pensei: 'É isso que posso fazer'. Lembrei como a ideia funcionou da última vez e me senti obrigado a revisitar o tema."

Dessa vez, Ferrara decidiu envolver entidades do governo na organização da exposição. Ele falou com todo mundo do Conselho Municipal ao Gabinete do Prefeito, chegando até o Departamento de Polícia de Nova Orleans. Mesmo sendo um membro ativo da comunidade, toda a burocracia para adquirir as armas para a exposição levou cerca de dois anos. "Minhas conexões políticas intercederam a meu favor com o NOPD. Mas, ainda assim, levei de seis a oito meses só para poder conhecer o departamento de polícia, visitar a sala de provas e escolher as armas."

Em janeiro de 2013, Ferrara, juntamente com Brian Borrello, finalmente entrou na sala de provas do NOPD para selecionar as armas que seriam usadas no projeto. "Lá dentro", lembra Ferrara, "você passa por uma sala enorme cheia de maconha apreendida; depois, por milhares de bicicletas; e, finalmente, chega à sala de armas, onde elas estão por toda parte. Ele disseram: 'É só escolher'. Acabamos com 186 armas: 160 revólveres e 26 rifles serrados".

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Depois de esperar pela carta de aprovação do agora ex-chefe do NOPD, Ronal Serpas, e manobrar entre a burocracia municipal para liberar as armas, Ferrara finalmente recebeu os armamentos escolhidos no começo de 2014, descobrindo só aí que a Bureau de Álcool, Tabaco e Armas (ATF) tinha se envolvido e incendiado as armas antes de entregá-las. Ele deu aos artistas a opção de trabalhar com as armas destruídas pela ATF ou usar uma comprada por Ferrara desde que ela estivesse desmantelada. Segundo o organizador da mostra, muitos artistas escolheram o desafio de trabalhar com as armas queimadas.

Os artistas participantes vão de nomes conhecidos nacionalmente como Mel Chin e Deborah Luster até jovens emergentes da própria Nova Orleans: Ferrara sentiu que era importante refletir o âmbito nacional da violência armada. Quando perguntei sobre seu processo para encontrar artistas, respondeu: "Isso não é uma questão só em Nova Orleans; então, por que ter apenas arte de Nova Orleans? É uma questão nacional que afeta cada região do país. Tentei trabalhar com artistas a partir dessa perspectiva".

A Guns in the Hands of Artists apresenta artistas de vários gêneros, raças e etnias, mas Ferrara também chamou outros que tipicamente não trabalham com armas em suas práticas artísticas – como Nicholas Varney, um estilista de joias conhecido por trabalhar com Hillary Clinton e Liza Minnelli, que criou uma bala de 18 quilates cravejada de diamantes. "Eu queria desafiar os artistas a usar armas como matéria-prima para sua arte, de uma maneira que ainda não fosse parte de sua obra ou estética", frisou Ferrara. "Eu queria desafiar pintores ou escultores a pegar essa matéria-prima e incorporá-la em suas práticas para fazer uma declaração sobre armas e violência."

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Looking Down the Barrel of a Gun (Last Judgment) After: Hans Memling's 'The Last Judgment' Triptych (1460), Bambi's mother from Disney's 'Bambi' (1942), 2014, por Adam Mysock.

Ferrara, que também é artista, construiu uma escultura intitulada Excaliber No More para a exposição, cravando uma espingarda numa pedra. "Até fazer essa obra, não me senti completamente à vontade com a exposição", ele afirma.

Apesar de toda a odisseia para receber as armas do NOPD, o organizador da mostra adquiriu a espingarda Mossberg de sua escultura com uma facilidade inacreditável e aterrorizante. Como a venda de armas particulares é legal na Louisiana, ele simplesmente comprou uma arma que achou na internet por US$ 300. "Levei cerca de dois segundos para comprar a arma e 15 minutos para ter uma conversa sobre a Segunda Emenda. Nenhuma restrição, nenhum registro, eu podia ter saído pela porta e feito o que eu quisesse."

Antes de colocar a espingarda na pedra com ajuda de funcionários da Mediterranean Tile, Ferrara sentiu que tinha de atirar com a arma que tinha comprado. "É uma onda de adrenalina", explica. "Seria uma heresia e uma falsidade artística comprar a arma, a pedra e simplesmente inserir uma na outra. Senti que precisava ter uma relação física com o poder da arma e depois suprimir isso."

Além da exposição, que vai até 25 de janeiro, a Guns in the Hands of Artists também conta com um componente educacional motivado por uma questão de Earl Johnson, oficial de Controle de Armas do NOPD, que perguntou a Ferrara: "Você vai fazer essa exposição numa galeria branca em Julia Street. Como isso vai afetar os garotos do subúrbio?". Tentando responder essa pergunta, a galeria fez uma parceria com o Youth Empowerment Project (YEP), uma organização que trabalha com jovens de 7 a 24 anos que já passaram pelo sistema judicial, para organizar uma série mensal de painéis transmitidos ao vivo da galeria sobre violência armada e uma série de estúdio focada na juventude.

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Planejando fazer um livro e um documentário sobre a exposição, Ferrara vê a Guns in the Hands of Artists como uma mostra itinerante. "O próximo estágio será viajar. Que lugar melhor para esse diálogo emanar do que de Nova Orleans, que sempre foi líder em assassinatos? Por que não usar a deixa e abrir uma conversa sobre armas e violência armada?"

Refletindo sobre o sucesso da exposição até agora, Ferrara revela: "No mês passado, tivemos muitos espectadores que não eram do mundo das artes. As pessoas das artes adoraram e as pessoas que não são das artes, também. Há uma beleza visual e/ou conceitual nas obras. A parte interessante é que, quando você envolve o espectador na estética, ele abre sua mente de uma maneira que não era capaz antes. A arte é o ponto de acesso para uma mudança no diálogo".

Guns in the Hands of Artists fica em exposição na Jonathan Ferrara Gallery em Nova Orleans até 25 de janeiro de 2015.

Emily Colucci é uma jornalista que vive em Nova York. Ela é cofundadora do Filthy Dreams, um blog que analisa a cultura através de uma perspectiva queer. Siga-a no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor