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viagem

No Palácio de Saddam

Após acontecimentos fortuitos, planejamentos furados, cara de pau e sorte deslavada, conseguimos entrar em um autêntico e genuíno palácio de Saddam Hussein.

Bagdá é um dos lugares mais caóticos, perigosos e lamentáveis no mundo de hoje. Ah, e também é o berço da civilização tal qual a conhecemos e cenário de algumas das mais importantes passagens da Bíblia. Fato é que minha experiência no Iraque ao lado de Leondre, UFO e Pesca, meus companheiros nas filmagens do programa Não Conta Lá em Casa, do Multishow, pode se resumir a uma semana de medo constante e excitação. Turismo por lá ainda é um conceito totalmente descabido dentro da realidade iraquiana e estivemos imersos por alguns dias em um cenário de guerra. E quem em são consciência iria fazer turismo histórico (ou de qualquer outro tipo) dentro daquele cenário digno de Rambo?

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Só nos aventuramos em uma saída, para visitar o milenar centro histórico da Babilônia. Mas, após horas de tensão na estrada, tínhamos dado com a cara na porta. O lugar estava fechado! Nenhum carro no estacionamento, nenhuma alma viva em um raio de quilômetros. O cenário, pra variar, era de cidade abandonada. Mas nem sei por que ficamos tão surpresos: o Iraque está praticamente em guerra, era o mês do Ramadã e também dia do funeral de um importante líder político… Quem seria louco de ir passear por lá?

Após um emaranhado de acontecimentos fortuitos, planejamentos furados, cara de pau e sorte deslavada, conseguimos nada mais nada menos do que entrar em um autêntico e genuíno palácio de Saddam Hussein! Aquele que fica em um morro artificial com vista para toda a Babilônia. Especialistas dizem que este era justamente o principal e mais opulento entre todos os palácios do mais popular ditador iraquiano, que possuía uma série de moradias nababescas (e estratégicas) por todo o território iraquiano. Hoje, uma tabela de basquete no meio do salão principal – abandonada por lá pelos soldados norte-americanos que fizeram a farra saqueando tudo – é o símbolo perfeito do que foi a invasão dos EUA nesse país: uma das maiores demonstrações de falta de civilidade da história, e em pleno berço da civilização. Sem entrar no mérito das ações do próprio Saddam, e para ficar só na região da Babilônia, sítios arqueológicos e patrimônios históricos da humanidade foram postos abaixo para dar espaço a construção de heliportos para as forças aliadas.

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Não havia um carro sequer no imenso estacionamento do local, nenhum oficial nos check points mais próximos e os postos de informação estavam, literalmente, abandonados – nenhuma alma viva em um raio de sei lá quantos quilômetros. O cenário era de cidade abandonada, igualzinho a essas dos filmes de zumbis.

Nosso “motorista” e seu “amigo” (ambos entre aspas porque pareciam mais soldados mercenários do que qualquer outra coisa) que nos levaram até ali perceberam nossa desapropriada decepção e resolveram que não deixaríamos o local sem visitar algo histórico. “Querem ir ali?” Nos perguntaram apontando para o palácio do homem, que se destacava imponente em meio à paisagem desértica. Achamos que eles estavam brincando, ou que chegaríamos no máximo ao portão de entrada, pois o palácio em si estava obviamente interditado e cercado de bloqueios e arame farpado militar. Mas, só por garantia, respondemos “Claro!” em animado uníssono, como três criancinhas prestes a adentrar o parque de diversões. Algumas ligações foram feitas, conseguimos entreouvir algumas discussões em árabe até que surge do nada um senhor com pinta de manda-chuva da área (apesar da ausência de um uniforme oficial). Este senhor de cabelos brancos, barba por fazer, levemente acima do peso e altamente suado entra em nosso carro após cumprimentar rapidamente e com certo mau humor os nossos guias. Eles, que não falavam uma palavra em inglês, viram para nós e sinalizam sérios para entrarmos logo na viatura. Seguimos todos de carro e em silêncio até a entrada do Palácio onde havia uma grande barreira feita com aquele típico arame farpado militar, desses que só se vê em países em guerra ou filmes de ação, bem diferentes daquele tipo que estamos acostumados a ver cercando o galinheiro no sítio do nosso tio. O senhor que nos acompanhava então salta calmamente, envia um sinal de seu walkie-talkie e suspende a barreira nos mandando passar. Nesse momento, nos entreolhamos incrédulos em silêncio e com um sorriso indisfarçável e um aceno de cabeça confirmamos que estávamos todos pensando a mesma coisa: em alguns minutos, estaríamos vivendo uma das maiores experiências de nossas vidas.

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Imensos tags feitos em spray preto na entrada de cada construção nas imediações diziam “BLDG #2”, “BLDG #3”, e assim por diante. Referência a “building number one, two, three…” ou “prédios número 1, 2, 3…”. Como sabíamos, as tropas aliadas usaram a região da Babilônia como base e os prédios nos arredores acabaram sendo ocupados e virando postos militares. O palácio de Saddam recebeu o tag “BLDG #1”. Entre gestos e palavras que não entendíamos percebemos que nosso tempo por ali era extremamente limitado. Passamos pela imensa porta principal decorada com imagens de gárgulas, deuses e do próprio Saddam, e saímos correndo pelos salões e quartos do lugar. Nossos guias nos chamavam pelo nome e diziam uma das poucas palavras em inglês que sabiam, mas que era a mais importante naquele momento: “Hurry!”. O interior do lugar ainda estava totalmente sujo e parecia ter sido abandonado às pressas, o que aumentava ainda mais a impressão de estarmos entrando ali no rastro bem recente das tropas norte-americanas. Tudo havia sido saqueado, mas a imponência dos imensos salões, das escadarias intermináveis e até do lustre gigantesco em uma das salas davam a ideia perfeita da megalomania do local e de seu inquilino original. Seguíamos correndo de uma sala para outra enquanto nossos guias nos apressavam, deixando cada vez mais claro que estávamos ali indevidamente. No terraço, uma vista deslumbrante e privilegiadíssima para toda a Babilônia. Os banheiros, imensos, eram ornados em ouro. O quarto principal tem uma janela de mais de 10 metros de altura. Elevadores, hoje destruídos, interligavam os três andares da casa.

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Mas outro aspecto desse passeio nos marcou. A intervenção visual imposta pelos últimos ocupantes desse polêmico e inegavelmente histórico lugar. As pichações das tropas americanas não deixaram um metro quadrado em branco dentro do lugar e, somada aos escombros ainda espalhados pelo chão e a indefectível tabela de basquete instalada em uma das paredes da gigantesca sala de jantar de Saddam, nos davam a impressão de estarmos de certa forma presenciando em primeiríssima mão um dos mais recentes e trágicos capítulos da história iraquiana. Melancolia e excitação; esperança e lamento; alegria e tristeza. Esse conflito interno representava pra gente todo aquele conflito tão presente na vida do povo iraquiano. E, pelo que parecia, ainda tão longe de acabar.

André Fran é apresentador do programa Não Conta lá em casa do canal Multishow. Este trecho é uma parte adaptada do livro que André lançará pela Record em julho deste ano.

andrefran@base1filmes.com.br

@franontheroad