Corrupção, Sucateamento e Tretas no Ensino Público: Um Perfil de Rodrigo Ciríaco

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Reduzindo Desigualdades

Corrupção, Sucateamento e Tretas no Ensino Público: Um Perfil de Rodrigo Ciríaco

O historiador, professor, escritor do extremo leste da cidade de São Paulo fala sobre sua vida trajetória dentro da sala de aula.

Foto: Guilherme Santana/VICE

Recentemente, a ONU anunciou 17 metas globais para os próximos 15 anos. A meta pro Brasil é Redução das Desigualdades. Inspirados por isso, pensamos numa série de matérias pra VICE, Noisey, Thump e Motherboard. Clique no link acima pra sacar todas. "O estudo é o escudo", o verso do rapper brasiliense GOG, está cravado no antebraço direito do historiador, professor e escritor Rodrigo Ciríaco entre um mosquiteiro e um estudante desenhados a traços infantis. Sua carreira literária tem três obras publicadas, 100 Mágoas, Vendo pó…esia e Te Pego Lá Fora, relançado este ano pela editora Dsop, que narra histórias vividas ou contadas em toda a sua longa presença dentro das escolas. Aos 34 anos, ele é o mais novo de três filhos crescidos no extremo leste de São Paulo. Sua mãe foi até a 4ª série, o pai não completou o ensino médio. Um dos irmãos, como ele mesmo diz, "se formou na 5ª série" depois de repetir o ano três vezes. E o outro parou os estudos no segundo grau. Ciríaco foi além: se formou em História na Universidade de São Paulo. "Eu fui o primeiro da minha família a fazer um curso superior. E o melhor: em uma universidade pública", atesta.

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A história recente de Ciríaco e seu diploma ainda são moscas brancas nas quebradas do país. Infelizmente, ainda não se veem muitos alunos de escolas municipais e estaduais estampando as listas de grandes universidades, principalmente, as públicas. Na última década, o número de alunos vindos de periferias que chegam à universidade aumentou bastante devido a programas educacionais como o Prouni, mas esse quadro ainda expressa uma minoria. A história pré-universidade do historiador, porém, é até bem comum. Começou a trabalhar aos 12 anos, ajudando no bar que os pais tinham no Cangaíba, também na zona leste. "Os meus pais tinham um comércio - e, no período entre manhã e tarde, eu ficava lá. Meus irmãos já tinham feito carreira no boteco, e eu falei: 'Não quero fazer carreira'. Com 14 anos, eu peguei minha carteira de trabalho e fui procurar trampo de office-boy. Aí foi onde tudo começou." Depois disso, foi mensageiro (uma espécie de office boy mais chique), auxiliar de escritório, animador de karaokê, operador de telemarketing. Passou num concurso do Banco do Brasil, virou técnico bancário. Tudo isso antes de começar a estagiar na área.

"A FFLCH era ainda um lugar privilegiado. Acho que pelo menos metade ali era oriundo de escolas públicas, mas isso não é o que acontece na USP. Se você vai na FEA e em todos esses cursos mais concorridos como Medicina, Direito, Poli 10% é muito. Eu acho", ele atesta. Nas cadeiras da faculdade, a maior dificuldade, além das duas horas diárias para chegar, era a grande carga de ensino defasado. Ciríaco explica: "Vir de escola pública e parar na FFLCH foi uma dificuldade tremenda. Primeiro pelo acesso: eu não consegui entrar direto na Universidade, tive de fazer um ano de cursinho pago, trabalhava e fazia [o curso]. E, quando cheguei, eu demorei uns dois ou três anos pra pegar o ritmo que era exigido na USP. Eu trabalhava, e minha carga de leitura antes era muito ínfima se comparada ao que era exigido lá. O meu conhecimento, a minha formação cultural, artística e familiar era muito distinta do que tinha lá também". Ele completa: " Eu me sentia diminuído, e isso era um sentimento muito forte. Às vezes, eu ficava muito aquém, e a galera também ficava meio de lado. Nos debates eu me sentia acuado, ficava quieto mesmo, não falava".

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Foto: Guilherme Santana/VICE

O fantasma passou. De aluno de escola pública e universitário de faculdade pública, ele virou professor do ensino público. Passou por quatro unidades - e, em todas elas, levou sua energia combativa. "Foi uma questão de militância mesmo. De escolha ética, política, pedagógica. Quando eu pensei em fazer o curso, já foi muito claro que eu queria lecionar. E eu tinha uma coisa de lecionar nesse trinômio: educação pública, gratuita e de qualidade. Eu sempre tive uma espécie de cobrança pessoal de dar um retorno do investimento que havia sido feito na minha formação. Eu sempre estudei em escola pública, desde o pré, no ensino regular e no ensino superior; então, eu tinha uma espécie de compromisso ideológico de devolver o investimento".

Exonerado há três meses de suas atividades como professor, ele conta o que viu em 15 anos de trabalho dentro das grades do ensino público de São Paulo. "Tem uma frase do Darcy Ribeiro que eu gosto muito. Ele falou em uma palestra que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. E, pra mim, é muito claro isso." Os problemas estão ali, e há anos a lista permanece: número excessivo de alunos, falta de formação mínima, alunos em diferentes níveis de aprendizagem, falta de respaldo pedagógico, falta de planejamento educacional a curto, médio ou longo prazo, baixo investimento na formação do professor, pouco investimento no plano de carreira, falta de transparência dentro da escola, entre outros pormenores. "Eu sempre acreditei na importância da educação e na importância da educação pública como uma importante ferramenta de transformação social, de diminuição das desigualdades e das discrepâncias todas que a gente tem. Até hoje a luta é essa. Eu não acho que o ensino é ruim porque ele é público. Na verdade, tem outras coisas mascaradas e outros interesses por trás desse ensino ser ruim." Rodrigo virou persona non grata entre seus pares que, no começo, apostavam quanto tempo ia durar sua "revolta" e depois acabaram tendo de suportar o "mesmo encrenqueiro de sempre".

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Entre os outros problemas, Ciríaco fala de sua experiência. "Eu já encontrei desvios de recursos, irregularidades e falta de transparência. Você tem que usar um instrumento legal para questionar e vai pegar o estatuto do servidor público, que é do período militar. A primeira coisa que ele fala é que, em qualquer irregularidade que você tome conhecimento, tem que comunicar primeiramente ao seu superior imediato. Então, você tá vendo o diretor metendo a mão no dinheiro: ele encobre uma pessoa que não trabalha, fica o mês inteiro faltando e assinando o livro de ponto, e aí você vai fazer a denúncia da situação pra ele. Isso aconteceu comigo várias vezes, e eu me sentia como a pessoa que foi estuprada comunicando o estuprador. 'Olha, você me estuprou'."

Foto: Guilherme Santana/VICE

O historiador começou a dar seus passos dentro do sistema. Criou grupos de leitura e de literatura. Em 2009, fundou o Sarau dos Mesquiteiros, grupo focado na literatura marginal que proporciona encontros com autores, concursos literários e dá perspectiva a jovens através da escrita. O projeto começou na Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, em Ermelino Matarazzo, a segunda pior da cidade e oitava pior do estado de São Paulo, segundo o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), mas cresceu para outras escolas da zona leste e de outras quebradas da cidade. Rodrigo explica um dos motivos de terem saído do endereço. "A gente honrosamente foi expulso da escola. O projeto era tão bacana que foi expulso da escola. O projeto dos mesquiteiros envolve várias ações. É a oficina, o encontro com os autores, os saraus, a publicação de livros, mais recentemente um concurso literário e uma bolsa literária de estudo. A gente não tem um espaço próprio: na escola, tínhamos uma salinha, meio que um quarto de despejo. Quando eu cessei minhas atividades na escola, a diretora falou simplesmente. 'Olha, ou tira ou vai pra rua'. Caixa de som, projetor, microfone, pedestal. Material muito bacana que inclusive foi adquirido com dinheiro público em edital do programa Proac."

Sua saída de dentro da sala de aula nem de longe significou o fim de suas atividades. "Eu saí do Mesquita, mas tô espalhado aí em várias escolas. Só neste ano, por exemplo, eu já fiz atividade, no mínimo, em umas 50 escolas diferentes, entre palestras, saraus, atividades de formação com os professores." Além disso, Ciríaco fez uma escolha profissional. "Meu trabalho como escritor, com sarau, com mediação de leitura, tá ampliando bastante, e eu acabava ficando nesse conflito de horário. Eu fui vitorioso, porque eu jamais abaixei a cabeça ali dentro. Eu nunca compactuei com todos os problemas que eu acabei enfrentando."

Atualmente, os Mesquiteiros, cerca de duas dezenas de jovens interessados por livros, se reúnem aos sábados dentro da Biblioteca Municipal Rubens Borba Alves de Moraes (local de nosso encontro), embora as atividades lá também estejam com os dias temporariamente contados. "Essa biblioteca vai fechar. Vai ficar em reforma de seis a 10 meses. Ela é, tirando um CEU que temos, o único equipamento público de cultura que atende a região de Ermelino Matarazzo e Ponte Rasa em torno de 200 mil pessoas", ele descreve. O medo de Rodrigo e da molecada é que as obras estendam esse prazo. "A reforma do Teatro Flávio Império (também em Ermelino Matarazzo) era para durar dois anos, mas se estendeu por sete".

Foto: Guilherme Santana/VICE

Embasado na teoria de Sérgio Vaz de que a periferia precisa escrever para "eliminar os atravessadores", o historiador, ex-professor e educador Rodrigo Ciríaco usa a literatura como combate e como ferramenta contra a desigualdade social. Em seus livros, leva histórias de dentro dos muros para as ruas. Narra, com honestidade, o drama da menina que passava fome, mas tinha vergonha de comer a comida do colégio, ou o conflito da garota que, aos 13 anos, se descobre grávida. Ele tem sensibilidade para contar a vida do moleque seduzido pelo crime ou do outro que levou uma arma para dentro da sala de aula. Seu olhar já o levou ao Salão do Livro, em Paris, e a debates na Bélgica, Itália e em outros lugares da Europa. Seu combate é uma ferramenta contra a desigualdade social - e, principalmente, educacional - neste país. E a literatura é uma de suas baionetas. "O papel da literatura é este: a gente vem tomar parte desse processo de narrativa, porque senão ficam sempre os outros falando da gente", ele explica e complementa. "A gente também quer escrever agora, também quer disputar esse espaço da voz, disputar esse espaço da identidade - e a literatura acaba sendo uma ferramenta de disputa política."