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Esse Matadouro Quer que Você Veja de Onde Vem a Carne

A política de transparência da Danish Crown representa um contraste gritante com o que se vê na indústria de carne norte-americana. Os matadouros americanos são fechados ao público. Porém, a Danish Crown quer que você veja 100% do processo.

“Tem sempre um porco curioso”, começou Agnete Poulsen. “E quando o portão abre, ele está ali, olhando em volta.” Ela imitou o movimento de cabeça do porco quando ele sai do compartimento escuro do caminhão de transporte e examina o labirinto fluorescente à frente.

Poulsen afinou a voz para fazer o porco. “O que está acontecendo? O que é esse lugar? Por que estamos aqui? Vamos lá, pessoal, vamos dar uma olhada!”

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“E lá vão eles”, ela disse, voltando ao tom de voz normal. “Nenhum deles registra que alguma coisa está acontecendo do outro lado do muro. Eles caminham pra frente o mais rápido possível – completamente seguros, calmos e relaxados.”

Como guia-chefe da corporação Danish Crown, Poulsen já acompanhou aproximadamente 250.000 visitas através do segundo maior matadouro da Europa nos dez anos desde de a inauguração em Horsens, Dinamarca. A política de transparência da companhia representa um contraste gritante com o que se vê na indústria de carne norte-americana. Os matadouros americanos são fechados ao público, e mais da metade dos estados já introduziu leis criminalizando reportagens disfarçadas dentro de instalações de matadouros.

Poulsen falou sobre a política da Danish Crown enquanto vestíamos macacões, redes de cabelo e tamancos de borracha idênticos. “Mostramos 100% do que acontece aqui”, ela disse, “não 99%. É esse último por cento que nos torna honestos. Ganhamos a vida matando porcos, e não podemos romantizar isso.”

Poulsen falou de sua infância numa fazenda local enquanto terminava de ajustar os elásticos das nossas redes de cabelo. “Agora estamos iguais”, brincou Poulsen.

O passeio começou na galeria de visitantes. Tudo foi projetado para mover os convidados através da instalação de 21 acres com a mesma eficiência que os animais lá embaixo. Poulsen gesticulou para os currais além do vidro. “Porcos tem uma mentalidade de grupo”, ela disse, “então mantemos eles juntos aos amigos da fazenda. Eles preferem ir para cima do que para baixo, então o chão tem uma inclinação de dois graus. Eles não gostam de ir direto em frente, então temos curvas pelo caminho. Você também pode ver que nossos trabalhadores usam roupas verdes e azuis. Nada de branco, porque porcos são presas e o branco os lembra dos dentes dos predadores.”

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Todo dia, 20.000 porcos entram no matadouro por sua própria energia, e saem horas depois embrulhados em cortes de carne. O mecanismo foi pensado para encorajar os animais a se mover voluntariamente. Aguilhões elétricos são proibidos na Dinamarca, então a única ferramenta de condução aqui é uma pá, que faz um barulho de tapa quando balançada.

Poulsen apontou os benefícios culinários dos métodos de baixo impacto da Danish Crown. “Carne estressada é de má qualidade”, ela explicou. “Ela fica com uma textura e uma cor ruins, e mantém a umidade do jeito errado. É como mastigar algodão.”

A maioria dos porcos que vimos nos cercados estavam dormindo. Poulsen disse que o modo como eles se acomodavam uns nos outros e se mordiscavam gentilmente era “a maneira deles de se aproximarem”.

“Esse som que eles fazem tem algum significado?”, perguntei, me referindo às ondas esporádicas de guinchos.

“Não, não tem.”

Entramos na zona de abate sem cerimônia – apenas com um aviso. “Aqui não é uma área para câmeras”, disse Poulsen. “Os empregados adoram visitas, mas os da linha de abate sempre dizem: 'Por favor, sem fotos'. Eles não querem se ver no Facebook segurando uma faca ensanguentada.”

“É aqui que tudo acontece”, continuou Poulsen enquanto eu guardava minha câmera. “O começo de tudo. O começo do fim.”

O vidro fazia a cena parecer mais distante do que realmente estava. Estávamos acima da ação – a perspectiva era de uma experiência fora do corpo ou um sonho em terceira pessoa. Eu nunca tinha notado quão delicadamente os porcos andam sobre seus cascos tão pequenos. Todo aquele peso e eles nem sequer balançam. Por um instante, pensei em mulheres elegantes de salto alto. Vi festas, dança e olhares de cortejo. Era a vida usando a máscara de um porco.

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Na minha memória, os porcos pareciam se materializar de dentro da névoa. Um homem de azul e verde estava inclinado sobre eles – perto suficiente para fazer carinho na cabeça dos porcos se quisesse. Era como se ele estivesse ali só para dizer adeus, mas ele apertava o botão que separava o próximo grupo de oito. Não me lembro do rosto dele. Ele devia estar usando uma máscara. Um portão subiu. Os porcos andam por sua própria vontade até o final. A fita preta se movia para frente e eles eram empurrados, de modo gentil mais inexorável, para dentro do elevador escuro.

Poulsen descreveu o que eu não podia mais ver – o método da Danish Crown de atordoamento dos animais antes do abate. “Nos os mandamos a 10 metros acima do chão, numa câmara com dióxido de carbono. Eles dormem, e depois de três minutos vêm para cá.”

Conversei depois com a Dra. Temple Grandin, consultora da indústria de carne e designer dos procedimentos humanizados na lida com os animais. Grandin acredita que o atordoamento por CO2, quando executado de maneira correta, é menos estressante para os porcos do que o atordoamento elétrico convencional, porque permite que os animais fiquem juntos.

“O que os porcos experimentam durante o atordoamento por dióxido de carbono?”, perguntei.

“Vi muitas variantes”, disse Grandin. “As reações dependem da genética do porco que você coloca ali. Os que têm genes de estresse suíno têm uma reação ruim – eles entram em pânico.”

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Mas a Dinamarca, ela acrescentou, é um dos países que conseguiram eliminar esse gene prejudicial de seus animais. Ela descreveu uma indução de CO2 que testemunhou no interior. “Os porcos farejaram e recuaram, e depois rolaram no chão e começaram a convulsionar. Quando um porco cai e passa pela convulsão, ele está inconsciente.”

De volta à Danish Crown, os porcos inconscientes emergiram de uma abertura nas várias posturas de um cochilo. Um homem rapidamente colocava algemas nas patas traseiras de cada porco e os corpos eram levantados no ar. Eles balançavam gentilmente enquanto deslisavam para o matadouro. O homem puxou um tubo cor de safira do teto. No final do tubo estava uma lâmina.

“A faca entra pela traqueia e vai até as grandes veias do coração”, narrou Poulsen. “Então o próprio coração bombeia o sangue para fora e o animal morre. O sangue flui pelo tubo e é separado em proteína e plasma. Isso pode ser usado para consumo humano, consumo animal ou uso médico.”

Todas as partes do porco são usadas, insistiu Poulsen. “Os pelos viram escovas, a pele vai para a gelatina, o chorume é mandado para a usina de biogás para gerar energia. O calor do corpo deles é usado para aquecer água.”

Na descida da linha de abate, passamos por um corredor de aparatos de limpeza mecanizados. “Um dos maiores hospitais da Dinamarca já fez uma visita para ver como controlamos bactérias”, disse Poulsen, orgulhosa. “Nossas mãos são mais limpas que as de um cirurgião.”

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Numa névoa de sangue, uma grande serra circular dividia as carcaças no meio pela espinha. As metades de porco de cabeça para baixo flutuavam num balanço preguiçoso, enquanto os trabalhadores da linha de abate as cortavam sem nenhum gesto desperdiçado. Por dentro eles pareciam exatamente como nós.

“Você pode substituir a maioria das partes do corpo humano por partes de porco”, comentou Poulsen. “Em outros dos nossos matadouros, eles retiram as válvulas cardíacas das fêmeas e exportam para os EUA para transplante.”

Um pequeno chip de rádio embutido na orelha de cada porco, coordenado com máquinas de ultrassom, escaneia e separa automaticamente os porcos cortados de acordo com a qualidade da carne e distribuição de gordura. Computadores planejam os cortes mais eficientes para as serras automatizadas, enquanto cada carcaça é graciosamente dirigida em comboios para os locais corretos da instalação. Essa precisão, juntamente com uma força de trabalho flexível, permite que a Danish Crown satisfaça as necessidade altamente específicas de clientes do mundo todo.

“Para produtos japoneses”, disse Poulsen, “usamos quatro pessoas para escovar e aspirar a carne. Para produtos dinamarqueses, não usamos nenhuma. No Japão, os clientes estão tão afastados do produto que acham qualquer coisa, como um osso ou um pequeno pedaço de gordura, um objeto estranho. Claro, isso tem um custo extra, mas sempre nos ajustamos à demanda dos consumidores. Substituímos uma guilhotina robô por três trabalhadores só para poder entregar cabeças para o mercado chinês. O mercado chinês prefere cabeças divididas.”

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Enquanto eram processadas, as carcaças pareciam cada vez menos com os animais que conhecemos. Pés, rabos e orelhas eram removidos em estágios. Quando os rostos e os cílios infantis sumiam, só restavam cortes de carne. Era assim na linha americana.

A linha americana é de onde vem as baby back ribs, me disse Jens Hensen, chefe da assessoria de imprensa da companhia, pelo telefone alguns dias antes. Ele cantou um trecho de um jingle de um restaurante conhecido: “I want my baby back, baby back, baby back…”

Um açougueiro corpulento começou a sorrir quando tirei minha câmera para filmar o trabalhador mais rápido da fábrica. “Ele é uma coisinha linda”, brincou Poulsen. Os outros açougueiros concordaram. “O mais bonitão do lote!”, um gritou. “Pode me por na mesa depois!”, outro disse. “Você lembrou de colocar sua cueca sexy?”

Ele ficou vermelho como um adolescente enquanto separava pedaços de costela com um cutelo, antes de cortá-las e desossá-las com a precisão de um cirurgião e a velocidade de um atleta profissional. Era muito trabalho, mas seu corpo estava tão acostumado às demandas do processo que ele nem estava suando.

Conversamos com outro açougueiro, um veterano de sete anos chamado Daniel. Ele usava uma proteção de braço de cota de malha estilo medieval, que chacoalhou quando apertamos as mãos. Perguntei sobre as tatuagens que cobriam seus bíceps. Uma mostrava sua cadela, com uma faixa a proclamando “Rainha das Ruas”. Ele disse que ela adorava o cheiro de carne crua que fica no corpo dele. “Ela sempre lambe minhas mãos quando chego em casa.” Outra tatuagem dizia: “Você não pode mudar o passado, e se quer prever o futuro, você tem que criá-lo”.

Poulsen comentou sobre a tatuagem: “Você notou a referência ao passado? Muita gente aqui teve dificuldades no passado. Na verdade, já recebemos prêmios por dar uma segunda chance às pessoas.”

Nos despedimos e ficamos vendo Daniel voltar para a linha. O ritmo de sua caminhada gradualmente foi se recalibrando aos movimentos dos homens ao seu lado – o ritmo universal da fábrica. Já era meu ritmo também, enquanto eu passava rapidamente pelas aberturas periódicas da linha de carcaças penduradas sempre em movimento. O ritmo estava até na cafeteria da companhia – no tilintar dos garfos e facas. Poulsen disse que sonhava com o ritmo. “Quando você vai dormir, você continua vendo a carne passando.”

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Tradução: Marina Schnoor