Fomos lá e vimos: Bill Callahan

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Música

Fomos lá e vimos: Bill Callahan

Difícil era fazer melhor.

O início de noite até foi atribulado: o congresso do PSD, a decorrer no Coliseu dos Recreios a algumas centenas de metros significava que era praticamente impossível encontrar um lugar de estacionamento a uma distância aceitável, o que implicou uma viagem de táxi supersónica para que chegasse a tempo ao São Jorge. E era um São Jorge lotado, aquele que aguardava o regresso de Bill Callahan a terras lusas quatro anos após a presença no Festival para Gente Sentada de Santa Maria da Feira.

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Com honras de inaugurar o palco esteve Circuit Des Yeux. O nome engana, e a aparência também: nome artístico de Haley Fohr, americana e não francófona como podíamos ser levados a crer. O aspecto aparentemente terno e meigo rapidamente se tornou numa intensa e conflituosa actuação que se viu reflectida num misto de espanto e surpresa no olhar dos espectadores. Munida apenas de uma guitarra acústica, que não se inibia de carregar de distorção quando desejava, projectou a voz em sofridos berros e uivares chorosos que preencheram cada canto da sala cujas gravações de bandcamp não deixariam prever. Acabou o concerto num tom quase apocalíptico, primeiro levantando-se numa série de movimentos de anca enigmáticos, e depois ajoelhada entoando apenas frases tão crípticas como "When the sun comes up you won't feel a thing". Deve ter sido algo semelhante a isto o que os Maias previram há tantos séculos atrás. Chegadas as onze da noite, levantava-se a projecção de um sol vermelho na tela do São Jorge, transportando-nos para as planícies americanas distantes, enquanto Bill Callahan e o seu grupo ocupavam o palco. Com o recente Dream River do ano passado na bagagem, e tendo abandonado já há algum tempo o cognome de Smog, não seria assim tão descabido pensar que maior parte do alinhamento se centraria neste último disco, o que veio a acontecer. Aliás, de Dream River faltou apenas "Summer Painter", que até possivelmente será a canção menos interessante do (óptimo) álbum. Começando com o trio de canções que abre o disco, e com uma mudança constante de cenários a enfeitar as melodias, foi na sequência de sublimes canções "Small Plane" e "Too Many Birds" — esta do Sometimes I Wish We Were An Eagle de 2009 — que se verificou o primeiro dos grandes momentos do concerto. Seguiu-se "America!", de Apocalypse, com a sua batida impiedosa e enfeitada quer com harmónica — tocada pelo próprio — quer com solos de guitarra bem bluesy do colega Matt Kinsey que até mostraram um cheirinho do tema principal de O Padrinho. Sempre com uma impecável voz de barítono recuperou ainda a soturna "Dress Sexy At My Funeral", lançada sob o alias de Smog, e uma versão de "Please Send Me Somebody To Love" de Percy Mayfield. "I really am a lucky man", cantou Bill Callahan na já referida "Small Plane", e acredito que é neste tipo de honestidade e satisfação que reside grande parte do encanto das suas canções e, por consequência, do charme do concerto a que toda aquela plateia pôde assistir. Desde temas acolhedores e afáveis como "Spring" (quase só faltava uma fogueira e um acampamento para o cenário estar perfeito) até às cavalgadas dinâmicas de "Drover", era visível a enorme satisfação nos presentes durante as duas horas a que os seus bilhetes tiveram direito. Sem a necessidade de um encore, foi "Winter Road" que encerrou o concerto, ela que é também a faixa final de Dream River. Nesta, e já com a lua em pano de fundo, Bill Callahan deixou o palco após uma desgarrada cheia de humor com recursos a "Lisboa" e "Bacalhau". Um final quente e perfeito para nos entregar de regresso à noite fria lisboeta. Dificilmente poderíamos ter exigido melhor.

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