Sobreviver a Paredes de Coura

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Sobreviver a Paredes de Coura

Paredes de Coura é um festival fantástico, no meio de uma paisagem sem igual. Mas se queres desfrutar tranquilamente, não vai ser fácil.

Quarta-feira, 19 de agosto. 16:00. Lugar: Paredes de Coura. Temperatura: muita. Hora do início dos concertos: 19:00. Credencial: Nenhuma.

Estou preocupado, e num país que não é o meu, mas não faz mal. Posso sempre atravessar ilegalmente o rio para regressar à tenda, beber a minha poção secreta, e ouvir Slowdive desde o campismo. Parece triste, e poderia tê-lo sido. À terceira música podia ter desaparecido sigilosamente, com a invulnerabilidade que apenas a vodka (mais barata que o champô) te pode conceder.

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O campismo. Fotografia de Ruben Moldes.

Por sorte, não foi preciso. O assunto da minha acreditação solucionou-se sem problemas de maior, graças ao Ruben M., e pude voltar à minha tenda de forma legal, beber o tal veneno, e ouvir os Slowdive na terceira fila. Heyssel 1 – Coura 0.

Paredes de Coura é um festival fantástico, no meio de uma paisagem sem igual. Mas se queres desfrutar tranquilamente, não vai ser fácil. Queres um lugar à sombra? Tivesses chegado cinco dias antes. Queres acampar ao pé da casa de banho? Chegaste três dias atrasado. Não queres estar na fila para o shuttle? Desaparece-me da frente!

Eu optei pela solução fácil: enviar uma pequena tropa com dois dias de antecedência para arranjar um sítio decente. E agora que o tema guarida estava resolvido era preciso pensar no que realmente interessa: comer e beber. A clássica zona de comidas do campismo dispõe de todo o tipo de delicatessens, desde bifanas a pizzas, pasando também pelos cachorros. As propostas são menos suculentas que em edições anteriores, mas cumprem a sua função. O que seria de Paredes sem uma batalha campal para encontrar uma bolsa de gelo? Nada. Os bares e restaurantes da localidade (cheios) também nos esperam. A dúvida é: apanhar o shuttle ou ir andando? Esperar 15-30 minutos ou caminhar durante 10, a subir e ao sol?

Experimentei as duas opções. O veículo não tem ar condicionado. Já na vila, aventuro-me em busca de algum poiso recôndito onde pudesse comer. Encontro-o e peço um hamburguer sem queijo. Servem-mo com queijo. O Heyssel não está contente.

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Já comi, e agora só preciso de bebida, para que os meus vizinhos de tenda me pareçam simpáticos. Tenho três opções: o ultramarinos, o InterMarché e as lojas ao pé da estação. O ultramarinos é uma loja pequena no fim do caminho. Não têm muita coisa, mas cobrem as necessidades básicas. Têm charcutaria e uma boa prateleira de bebidas. E vai lá pouca gente, isto é muito importante. Depois temos o InterMarché: tabacaria, WC, comida quente, muita variedade e filas infinitas. E, tal como me confirmaram os locais, preços inflacionados.

O ultramarinos. Fotografia de Ruben Moldes.

Esta foi a minha opção para o primeiro dia, sendo que nos dias seguintes me declinei pelo pequeno comércio. Era um pouco mais caro, mas o protector solar estava a metade do preço, e isso é encantador. As lojas perto da estação foram um descobrimento de último dia, e não cairão no esquecimento: bebidas frescas, batatas fritas e impermeáveis dão sempre jeito.

Estou servido, e faltam quatro horas para os concertos. Tenho muito tempo a perder, mas é demasiado cedo para começar a beber — nunca é demasiado cedo para começar a beber. Procuro e encontro uma sombra perto da igreja, onde outros festivaleiros dormem uma sesta. As sombras são um bem muito requisitado em Paredes de Coura: arvoredos remotos, esplanadas atestadas, o pequeno palco na praça da vila…

Mas claro, por alguma razão Deus inventou o rio, a maravilhosa praia de Taboão. E aqui, o já mencionado assunto "chegar antes" ganha um novo significado: este ano a região inteira e metade de Narnia vieram ao festival. Isto quer dizer que o rio está descartado depois das três, nada de estar ao sol, nada de refugiar-se à sombra. A não ser que só queiras mergulhar em águas gélidas. Eu vim aqui para beber, mas deixei o vinho na loja.

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Uma coisa que aprendi à base de muitas visitas a esta magna localidade é que toda a gente precisa de fazer as suas necessidades e limpar o corpo. O campismo conta com uns quantos chuveiros, e muitos WC's que são limpos com frequência. Mas a lotação do festival cresceu bastante. Por isso aqui tens as minhas soluções a este problema:

- Para tomar banho, sem problemas nem stresses, vai ao campo de futebol ou à piscina municipal e, por 1.50€ e 1€, respectivamente, poderás lavar-te, inclusivamente com água quente. Por vezes, é tudo o que precisamos para sentir-nos inteiros. No campo também podes usar a retrete e tomar um copo. É Win-Win-Win.

- Para fazeres as tuas necessidades básicas tens uma data de possibilidades, como os cafés ou o supermercado, mas não serás o único, nem penses. Se não tens manias, o hot spot de Coura é a estação de autocarros. As sanitas não têm assento mas está limpo, e tem papel higiénico.

E já que estou num festival, vou ao recinto. Consta-me que há gente que não saiu da tenda nem para mijar, mas eu sou um devoto daqueles à séria. Se já lá foste sabes do que falo. A bebida não era caríssima, mas, conselho para tripulantes de classe média-baixa: os seguranças revistam costas, ancas e rabos, nada mais.

No primeiro dia os Slowdive puseram a plateia a chorar. Eu limitei-me a dançar e a gritar-lhes obscenidades. Tocaram Alison, e acabaram com uma versão de Syd Barrett. Ver Slowdive e ir embora seria algo respeitável, mas faltavam os TV on the Radio, os do nome em maiúsculas. Voltei a dançar e a gritar. Era o gajo da pulseira com luzes. Desculpa se te incomodei. No DJ Fra adormeci, mas a culpa não foi dele. Fui muito feliz no primeiro dia.

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Crowdsurfing em Tv on the Radio. Fotografia de Ruben Moldes.

No dia seguinte ouvi Pond e White Fence ao longe, coisa que lamento. Soavam bastante bem, só que nem sempre podes ter tudo o que queres. Mas se decides tentar, talvez possas assistir à bestialidade de Father John Misty & o Seu Imenso Carisma. Podia passar horas a ver como se mexe. Em Iceage formou-se um mosh pit impressionante, mas uma rapariga arruinou-me o concerto porque queria muito que me desviasse, porque a incomodava. Estava agachado, e não lhe tapava a visão. Rapariga de Iceage: odeio-te. Mas soaram como soam os anjos. O Legendary Tigerman, que não conhecia, leva o Prémio de Descobrimento Mais Sexy. Soava a sexo sujo, que é o melhor sexo.

E por último, as opiniões divididas sobre os Tame Impala. Há quem diga que não gostou, que não lhe encheram as medidas. Eu passei o concerto a dançar muiñeiras (un baile tradicional galego que detesto). Tocaram o que tinham que tocar, e quando acabaram, continuaram. Seguiram-se uns bailes com Mirror People e Nuno Lopes, e boa noite.

O dia 3 consistiu no seguinte: Allah-Las e Waxahatchee a marcar a fasquia alta, Merchandise a puxar para baixo, Mark Lanegan um pouco murcho (embora ganhes qualquer um a fechar com uma versão dos Joy Division) e War On Drugs bastante bem.

O autor. Fotografia de Ruben Moldes.

Mas a soma destes não faz sombra a Charles Bradley & His Extraordinaires. A sério, já o vi três vezes, sei do que estou a falar, e mesmo assim voltaria a vê-lo sem pensar duas vezes. Canções para ressuscitar mortos, abraços para todos e dedicatórias de amor ao público. Este gajo sabe-a toda. Perguntei a uns adolescentes qual tinha sido o seu concerto preferido do festival, e metade deles escolheu o do Charles. Adolescentes, meu Deus! Quis beijá-los. O corpo não deu para mais, embora os Tanlines tivessem bom ar.

Chega o último dia, e o meu primeiro e último concerto no rio apanhou-me de surpresa nos chuveiros, enquanto fazia headbanging com El Rupe. Muito bom. Natalie Prass foi um magnífico início de festival, e agora que ouvi o disco ainda gosto mais. Sylvan Esso levaram-me à certa como sempre. Os Temples ouviram-se muito melhor que no disco, mas ouvi-os ao longe, enquanto me hidratava. E os Ratatat enlouqueceram toda a gente.

Mas claro, Woods é do melhor que há, e tocaram tão bem que o resto não me interessa muito. Durante Bend Beyond excitei-me de forma muito inapropiada. Menos mal que a Lykke Li é a tipa mais estilosa do mundo. E fala português! Perdi os Fuzz enquanto me fazia passar por jornalista, e foi uma pena. The Soft Moon foi exactamente o que era preciso, depois de Ratatat, e o Luis Vasquez é um tipo muito amável. Sascha Funke alargou a festa tanto quanto pôde, e os que pudemos, aguentámos.

Então Paredes de Coura acabou, e foi preciso voltar à vida normal. Ainda sinto a pulseira, que tirei assim que cheguei a casa. Se depois disto não tens vontade de lá ir, anda cá que eu dou-te um abraço.