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Uma Entrevista com um Combatente das Ruas do Egito

Conversamos com um manifestante anti-Morsi que trocou sua câmera por uma pedra e enfrentou a Irmandade Muçulmana por oito horas.

A crise política do Egito teve outra reviravolta semana passada. Confrontos mortais entre manifestantes mais secularistas que desaprovam o presidente Morsi e os partidários dele da Irmandade Muçulmana aconteceram nas vizinhanças do palácio presidencial.

Três semanas atrás, o presidente Morsi concedeu a si mesmo amplos poderes que o colocam numa posição de autoridade quase irrepreensível. Isso enfureceu os poderes judiciário e público, que apontaram que o ex-ditador Mubarak nunca procurou se esconder numa posição tal de poder ilimitado. Protestos imensos por todo o país resultaram em escritórios da Irmandade Muçulmana — que dominou o governo egípcio pós-Mubarak — incendiados e dois manifestantes mortos nos confrontos com a polícia.

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Na última semana, um projeto de constituição teve sua aprovação apressada pelo parlamento, polarizando profundamente o país. Centenas de milhares de manifestantes marcharam até o Parlamento na terça-feira passada pra demonstrar seu descontentamento com a decisão. Confrontos com a polícia logo se iniciaram e o presidente Morsi teve que evacuar o prédio. Alguns manifestantes acamparam ali durante a noite e foram acordados pelo som de suas barracas sendo derrubadas a chutes; membros da Irmandade Muçulmana — trazidos de ônibus de todo o país — fizeram uma tentativa violenta de limpar a área.

O que se seguiu foi uma das cenas mais violentas já testemunhadas no país neste ano, com os dois lados usando armas de fogo e seis pessoas perdendo a vida enquanto a polícia, em desvantagem numérica, apenas assistia ao caos. Os confrontos no Egito sempre foram perigosos pros jornalistas, mas essa violência de terça-feira foi excepcional, com um fotógrafo egípcio baleado na cabeça à queima-roupa e outros jornalistas sendo ameaçados.

Pra saber o que realmente acontece nas ruas, conversei pelo chat do Facebook com um manifestante anti-Morsi que trocou sua câmera por uma pedra e enfrentou a Irmandade Muçulmana por oito horas.

VICE: A que horas você chegou ao palácio presidencial?
M.: Logo após a oração Maghrib, cerca de seis horas da tarde.

O que te fez querer ir até o palácio e protestar?
Ajudar os outros manifestantes, porque sei que a Irmandade Muçulmana e os partidários de Morsi são uns filhos da puta. Estava com a minha câmera e a minha máscara e geralmente não jogo pedras ou luto, só vou pra tirar fotos e ajudar as pessoas a jogar pra longe os cartuchos de gás lacrimogêneo. Mas naquele dia não deu pra resistir — tive que jogar pedras e lutar.

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Por que você sentiu que precisava lutar ontem?
Porque eles são uns filhos da puta sem escrúpulos. Eles estavam na cadeia nos últimos 60 anos. São bastardos sanguinários.

Ouvi muitas pessoas dizendo que alguns dos membros da IM foram pagos pra dispersar os manifestantes acampados do lado de fora do palácio. O que você acha disso?
A IM é como a maçonaria. Eles não recebem dinheiro, eles são afiliados. Eles são uma sociedade secreta e precisam obedecer as regras — se eles fazem isso, conseguem empregos e benefícios da organização.

Entendo, então o que aconteceu quando a IM apareceu no palácio na quarta-feira?
Eles chegaram chutando as pessoas e brigando com os manifestantes anti-Morsi. Eles chutaram duas pessoas até a morte. Assim que isso aconteceu, milhares de manifestantes voltaram ao palácio pra mostrar nossa força. Na terça, éramos tantos que poderíamos ter invadido o palácio, mas preferimos não fazer isso.

Por que não?
Somos manifestantes pacíficos, como Gandhi, somos anjos. Os manifestantes voltaram ao palácio porque tinham ouvido que alguns dos manifestantes tinham sido despidos e enforcados. Então os combates começaram ao redor do palácio e nas ruas próximas também.

E no começo eram só pedras e bombas de petróleo, certo?
Sim, mas a IM tinha armas e gás lacrimogêneo. Não sei onde eles conseguiram o gás lacrimogêneo.

Você acha que foi a polícia que deu essas armas pra IM?
Não sei, a polícia também estava puta com eles, mas talvez sim. A IM tem muitas armas, principalmente depois da revolução na Líbia.

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Por que a polícia não tentou deter os confrontos?
Acho que receberam ordens pra não fazer isso. Além do mais, esse é um regime da IM, e a polícia geralmente fica do lado do regime. Mas acho que dessa vez eles ficaram putos. Os números ali eram gigantes, e as pessoas estavam ensandecidas, então eles foram embora. Foi uma guerra.

Eles ficaram com medo de interferir?
Com certeza, assista a este vídeo, isso é o lado da IM, os manifestantes anti-Morsi estão do outro lado, por trás dos muros amarelos:

Então esse era um cara da IM com uma pistola?
Sim.

Vi alguns vídeos que mostram os manifestantes anti-Morsi portando armas também. O que você acha disso?
Sim, também tínhamos armas de fogo, mas elas só apareceram depois das dez ou onze da noite, porque não conseguiríamos resistir sem elas. Foi uma decisão tomada na última hora.

OK, então vocês sentiram que precisavam se defender?
Sim.

Por que a IM diz que os manifestantes anti-Morsi são todos membros do partido político do ex-presidente Mubarak?
É tudo parte da guerra de informação deles, porque o povo egípcio se uniu e a IM ficou só com seu partido.

Então eles estão tentando sujar a reputação de vocês?
Sim. Veja neste vídeo:

O que esses caras têm nas mãos que ficam mostrando pra câmera?
Eles estão reclamando dos pacotes de queijo, dizendo que são de uma marca norte-americana.

Haha, então eles estão dizendo que os norte-americanos estão financiando os manifestantes anti-Morsi por causa do queijo que acharam?
É. Estamos no meio do caos. Isso é loucura.

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O que aconteceu quando você chegou à cena?
Quando cheguei lá, a briga estava acirrada e as pedras voavam dos dois lados. A atmosfera estava pesada, estávamos com medo porque não sabíamos quem era da IM e quem era manifestante; não sabíamos quem era quem porque nos vestimos todos iguais, o mesmo visual. Eles têm barbas um pouco mais compridas, mas não sabíamos com certeza se estávamos do lado certo até chegar bem perto dos manifestantes.

Você começou a atirar pedras assim que chegou ou foi depois?
Não, como eu disse antes, não costumo fazer isso.

Teve um momento específico onde você percebeu que tinha que lutar? Você viu algo que te deixou bravo ou não te deu outra escolha?
Sim, eles pegaram um de nós e bateram forte nele na nossa frente e na frente da polícia:

Parece que ele teve sorte de sair vivo.
Verdade.

Você entrou em brigas corpo a corpo ou só jogou pedras?
Não, só joguei pedras.

Você viu se alguma das suas pedras acertou alguém da IM?
Não, não consegui ver. Estávamos usando os escudos pra nos cobrir, então não dava pra ver nada.

Alguma pedra deles acertou você?
Sim, algumas vezes, nas mãos e nas pernas. Ainda bem que são ferimentos bem pequenos.

Então mesmo tendo sido atingido você se considera com sorte?
Ou você fica só com marcas pequenas ou te acertam de jeito, não tem meio termo.

Você gostou de lutar ou você enxerga isso como um dever?
É um dever, com certeza, mas depois você sente uma excitação por causa da adrenalina.

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Por quanto tempo os confrontos duraram?
Muito tempo. Começaram às 5h30 da manhã e continuaram. Saí de lá umas duas da tarde.

O que vai acontecer agora no Egito e nessa crise? Você acha que o Morsi vai desistir de seus novos poderes?
Tenho certeza que vai.

Então você acha que o Morsi vai recuar e que outra eleição deveria acontecer?
Claro, mas acho que vai demorar pra chegarmos a outro nível. Não sabemos o que vai acontecer, mas confiamos em Deus.

O que aconteceu semana passada mostra que a revolução ainda não terminou?
Totalmente, somos como tubarões; quanto mais sangue, mais tubarões.

O que você acha que a oposição egípcia tem que fazer agora?
Os políticos precisam ser homens e fazer a coisa certa. Eles devem se unir e fazer um conselho presidencial. A nação egípcia continua nas ruas.

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Desde quarta-feira passada, sete dos conselheiros mais próximos de Morsi se demitiram em protesto à maneira como o presidente vem lidando com as manifestações. Na quinta, o exército foi convocado pra proteger o parlamento presidencial, o que não acontecia desde a revolução. Com Morsi se recusando a voltar atrás, os manifestantes voltaram na sexta, cortando o arame farpado das barricadas, abraçando as tropas e dançando nos tanques. Até agora os protestos continuam pacíficos, mas com desavenças ainda não resolvidas entre os dois lados, essa paz não deve durar muito.

Siga o Henry no Twitter: @Henry_Langston

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