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Será Que Os Xamãs Ainda Acreditam Na Mágica Do Xamanismo?

Apesar de ter crescido com pessoas que acreditavam falar com espíritos e que tentaram tratar meu ombro machucado com imposição de mãos, sempre fiquei imaginando como alguém no mundo moderno e cético de hoje pode acreditar em curas etéreas.

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Algumas semanas atrás, acordei com uma ligação irada de um xamã britânico. No dia anterior, enquanto eu reorganizava os arquivos em meu computador, topei com um artigo que tinha lido na faculdade sugerindo que muitos dos atributos dos xamãs derivam do efeito placebo. Fiquei curioso sobre o que os próprios xamãs pensavam sobre isso, então, enviei a esse e alguns outros xamãs um e-mail perguntando o quanto do que eles faziam confiava, se confiava, no conforto do ritual — no efeito placebo — e não no poder de almas mágicas. O homem do outro lado da linha acreditava firmemente nas almas mágicas.

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Apesar de ter crescido com pessoas que acreditavam falar com espíritos e que tentaram tratar meu ombro machucado com imposição de mãos (em que todo mundo me tocou e tentou impor energia positiva em meu manguito rotador), sempre fiquei imaginando como alguém no mundo moderno e cético de hoje pode acreditar em curas etéreas. O xamanismo é uma definição que encapsula muito do que me deixava curioso. O termo descreve tradições de vida e morte desde a Amazônia até as estepes da Ásia Central e a taiga ártica, tradições que compartilham a crença no poder de indivíduos especiais escolhidos para falar com espíritos e usar seus poderes para influenciar a saúde e o bem-estar do mundo dos humano. Alguns fazem isso por meio de jornadas astrais e meditação, outros por meio de jejuns e outros ainda por meio de drogas psicoativas, máscaras e danças, vapores e pomadas ou diversos rituais. Cirurgiões psíquicos, como o homem enfurecido que me ligou recentemente, tentam arrastar impurezas ou bloqueios espirituais que se manifestam fisicamente para fora do corpo do paciente, às vezes criando incisões falsas ou por imposição de mãos, depois puxando para fora vísceras de animais mascaradas como impurezas (apesar de que, hoje em dia, muitos deles pedem somente para o paciente ter fé que sua energia está sendo realinhada através de vibrações invisíveis).

Mas todo xamã acredita realmente que está usando o poder dos espíritos em suas práticas? De acordo com Tor Wager, professor e especialista em efeito placebo da Universidade do Colorado em Boulder, o truque com as mãos e o ritualismo envolvidos tornam “bem plausível que eles acreditem em suas próprias manipulações no caso”. Isso me fez pensar que eles estariam dispostos a discutir o poder da pompa e do ritual, independente ou juntamente com o poder dos espíritos. Mas parece que nem todos estavam.

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Grogue e sofrendo de jet lag, tentei gaguejar uma resposta à retórica frenética do cirurgião espiritual. Ele me perguntou de onde eu tinha tirado essa noção ridícula e me disse que a pesquisa devia ser totalmente falsa. Ele disse que podia me mostrar coisas incríveis e ajudar pessoas em quem a medicina ocidental sequer tocaria. Depois ele me pediu para ler mais sobre o assunto e, se necessário, procurar por ele para aprender diretamente sobre o poder da cirurgia psíquica.

Organizações médicas como a Sociedade Americana do Câncer, que tem explorado a cura xamânica, acreditam que, mesmo quanto ao ritual, xamãs no contexto tradicional não veriam seu trabalho como placebo, tanto pela crença total na mágica dos atos ou devido ao efeito produzido. Alguns cientistas até expressaram a ideia que a crença mútua entre o curandeiro e o paciente em qualquer placebo, como no poder sobrenatural dos xamãs, em vez do conhecimento silencioso da fraude em alguns rituais, podia aumentar os resultados do efeito placebo. Mas os argumentos do cirurgião foram mais como uma negação agressiva — “o que essas pessoas disseram a você são mentiras, meias verdades ou até mentiras involuntárias; eles podem nem saber que estão mentindo, mas isso está errado” — dessa sobreposição de dois conceitos conhecidos existentes na mesma sociedade.

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“Só os xamãs ocidentais dão tanto valor a isso”, disse Jez Hughes, outro praticante de xamanismo, quando contei sobre o telefonema enraivecido (e várias críticas subsequentes). Apesar de sua educação britânica, sem qualquer relação com xamanismo ou espiritualidade, Jez entrou para esse ofício de uma maneira bem arquetípica. Aos 14 anos, ele sofreu um ataque físico e acordou por instantes num reino espiritual paralelo — segundo ele, nenhuma droga conseguiu replicar a experiência. Nos 12 anos seguintes, ele sofreu de doenças mentais e físicas, e era ocasionalmente visitado por espíritos, até se envolver com alguns xamãs, que deram à sua visão um contexto e um chamado. Enquanto ele aceitava o xamanismo, contra suas próprias dúvidas, ele achou suas experiências mais comuns e descobriu que podia usá-las para ajudar outras pessoas.

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Em seu cerne, segundo Jez, a tradição é pragmática. Há sempre, ele reforça, um elemento espiritual trabalhando, às vezes, além da cena e profundamente dentro do paciente. Mas ele diz que os xamãs têm “consciência de que, às vezes, a mente humana precisa ser enganada para acreditar que pode melhorar. É por isso que eles usam a imposição de mãos para tirar venenos energéticos e mostram ao paciente um prego enferrujado ou um pedaço de vidro”. A resistência de certos círculos em admitir isso, de acordo com o xamã e psicoterapeuta Paul Francis, decorrem de um sentimento de ataque, no qual psicólogos e médicos tentam descreditar os elementos espirituais do xamanismos e despir isso em estados sociais e mentais como o efeito placebo, e os xamãs, em resposta, ligam-se por padrão à crença agressiva nas causas espirituais de tudo.

Nem todos os xamãs modernos pertencem a tradições deslocadas de outros tempos e lugares, jogadas em meio ao Ocidente urbano. Simon Buxton, outro xamã que reconheceu o poder do que ele chama de “pompa psíquica” na assistência da ação espiritual, foi treinado por 25 anos na maestria xamânica da abelha europeia, algo (juro por deus) conhecido como Caminho do Pólen. Mas muitos adeptos das tradições xamânicas falharam em moldar essas experiências ao mundo moderno, talvez levando, sugeriu Jez, ao declínio de seu apelo ou efetividade.

Mas muitas tradições xamânicas conseguiram se alinhar com a modernidade. Um relato antropológico dos xamãs do povo oraon do nordeste da Índia descreve a visão xamânica das tradições médicas ocidentais como um recurso pragmático — talvez pompa psíquica de um tipo diferente, mas inofensiva na pior das hipóteses. Então, eles abraçam os termos e práticas ocidentais enquanto atribuem a cura primordial aos espíritos.

Essa aceitação tem passado para a tradição médica ocidental. Alguns trabalhos têm começado a descrever os rituais pré-operatórios de cirurgias em hospitais como um tipo de ritual placebo ocidental e os médicos têm defendido cada vez mais o uso liberal de pílulas de açúcar e jalecos em nome da cura. Alguns hospitais, principalmente o Mercy Medical Center em Merced, Califórnia, até contam com a ajuda de xamãs para facilitar os cuidados de pacientes que cresceram com curas espirituais.

O hospital de Merced percebeu que a grande comunidade hmong local, mesmo os membros nascidos e criados nos Estados Unidos, ainda procuravam curas xamânicas e se esquivavam da medicina ocidental, na qual eles não confiavam. Então, com a ajuda de Palee Muah, funcionário do Mercy e membro da comunidade hmong, o hospital convidou mais de 130 xamãs locais ao hospital, mostrando precisamente o que eles faziam e promovendo o entendimento de que o hospital fornecia tratamento complementar a certos tipos de enfermidades com que os xamãs não lidavam, mas que isso não substituía a importância do xamã na cura da alma. Desde 2009, o hospital permite que os xamãs visitem os pacientes, sem a necessidade de acompanhamento, façam relocações espirituais antes de cirurgias e entoem cânticos nas alas do hospital.

O xamanismo é uma prática tenaz, principalmente por sua adaptabilidade. E como Paul disse: “Realmente, vivemos num mundo muito diferente dos coletores/caçadores indígenas, não somente fisica, mas também psicologicamente […] e algumas das técnicas e pressupostos dos xamãs indígenas não se aplicam mais ou não são mais válidas. Ou mesmo seguras”. Para muitos xamãs, parte da adaptação a essa nova realidade espiritual tem sido a mediação entre a fé no plano espiritual e a aceitação de que essa pompa psíquica se encaixa melhor na realidade amplamente aceita do efeito placebo. Não se trata, afinal de contas, de descartar a crença num poder espiritual por trás de todo o processo. Aceitar a sobreposição do efeito placebo e do ritual xamânico pode lubrificar a crença e a aceitação no mundo moderno, o que, na visão de um homem como Jez, só ajuda a curar traumas psíquicos de uma era cética, cínica e patológica.