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VICE Sports

Como dois homens e um joelho ruim fizeram Tite virar técnico

Em Garibaldi, no interior gaúcho, estudo e acaso criaram o melhor técnico do Brasil.
Cassius André Fanti

O ex-cartola Gilberto Piva foi um dos responsáveis por testar Adenor no comando do Guarany de Garibaldi. Foto: Cassius André Fanti

Em meados de 1989, o modesto Guarany de Garibaldi começou a se movimentar para sair da inatividade. Fundado em 1940, o clube não punha um jogador nos surrados campos do interior do Rio Grande do Sul havia dez anos. A ambição dos dirigentes ia além, apesar da carestia vivida na agremiação. Queriam um escrete competitivo o suficiente para subir para a primeira divisão estadual e entrar em contendas com os gigantes Grêmio, Internacional e Juventude. Seria a alegria da cidade que hoje conta com pouco mais de 30 mil habitantes.

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As dificuldades esbarravam já na hora de organizar os treinamentos. Com uma equipe semiprofissional, os atletas em sua maioria exerciam outras ocupações durante o dia e só iam para dentro das quatro linhas com o cair da noite. O frio e a falta de iluminação tornavam ainda mais espinhosa as atividades em campo. "Muitas vezes colocávamos os carros em um morrinho ao lado da cancha para enxergar a bola", lembra o técnico daquele plantel, Celso Freitas, de 61 anos.

Freitas foi o escolhido pela diretoria para dar forma àquele grupo. Como o salário oferecido aos jogadores não ultrapassava dois salários mínimos, o desafio, segundo ele, era arquitetar um conjunto com jovens e veteranos. "Pegamos alguns jogadores que atuavam nas categorias amadoras  da região, alguns da base do Esportivo de Bento Gonçalves e alguns já em fase de encerrar a carreira", explica o ex-treinador.

Entre os esportistas mais calejados que poderiam integrar o elenco, Freitas lembrou-se de um volante alto e forte com quem jogou no Caxias. No currículo, ele ainda ostentava passagens pela Portuguesa e Guarani, ambos do estado de São Paulo. No Bugre, Adenor Leonardo Bachi, o Tite, poderia ter vivido o auge de sua carreira como atleta não fossem as repetidas lesões no joelho que lhe deixaram na enfermaria. No período em que esteve em Campinas, no interior do estado, o time foi duas vezes vice-campeão Brasileiro, em 1986 e 1987.

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Após sair do Guarani, ele ainda tentou esticar um pouco mais a jornada no Esportivo de Bento. "Tinha acabado de me recuperar e, em um jogo contra o Santa Cruz, no Gaúcho, veio um cara e me deu um carrinho por trás. Senti que ele tinha me machucado", contou Tite em sua biografia, escrita pela jornalista Camila Mattoso. Fora de jogo, formado em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, ele voltou-se ao mundo dos negócios e abriu uma loja de produtos esportivos em Bento Gonçalves.

Freitas, que visitava o estabelecimento do amigo com frequência, afirma que decidiu levar o nome de Tite para a diretoria. "Ele disse que poderia tentar, mas os joelhos não ajudavam e que seria bacana se pudesse ser preparador físico", conta o técnico aposentado. "Falei: você vai ser jogador, capitão, preparador, auxiliar técnico. Preciso só conversar com a chefia."

Celso Freitas foi o primeiro a apostar no talento de Tite como comandante. Foto: Cassius André Fanti

Ao voltar para o clube, Freitas conta que procurou o então presidente, Gilberto Piva, hoje com 60 anos. "Ele recebeu o nome com entusiasmo e decidiu que iria falar com Tite", empolga-se o boleiro.  Piva conta que Tite não tinha mais pretensão de jogar bola, mesmo assim topou o desafio. "O primeiro jogo dele foi contra o Estrela. Ganhamos de 3 a 1 e ele ainda fez um gol. Mas, em uma outra noite, fizemos um amistoso contra o Caxias e o joelho dele estourou. Parou de jogar contra o time onde começou a atuar. Uma baita ironia do destino", lembra o ex-cartola.

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Combalido, Tite aposentou-se aos 29 anos. Foi aí que começou a brilhar, de verdade, no mundo futebol. "Ele era mais que um preparador", ressalta Freitas. "Ele já era um líder, tinha o respeito dos jogadores." Como a equipe só podia jogar no fim de tarde, restavam apenas os treinos físicos comandados por ele. "Ele lidava diretamente com os atletas, conversava com eles. O treino tático só acontecia aos sábados, quando praticávamos durante o dia."

As penúrias se refletiam dentro de campo. Embora tivesse sem invicto na primeira fase da segunda divisão do Campeonato Gaúcho de 1990, o time sentiu o baque na segunda etapa. Das 14 partidas, o Guarany de Garibaldi perdeu seis, ganhou cinco e empatou três. Faltando cinco rodadas e com poucas chances de classificação para o mata-mata, o técnico Celso Freitas foi convidado para comandar o Esporte Clube Guarani, de Venâncio Aires, também no Rio Grande do Sul.

Nascia naquele momento um dos mais vencedores técnicos do futebol brasileiro. "Tite já comandava o time na prática. Bastou uma conversa com a cúpula para que ele fosse nomeado treinador", afirma Freitas. Mais uma vez, Gilberto Piva bancou a escolha. "A melhor opção era ele, sem dúvida", frisa Piva. "Numa conversa antes de assumir, Tite me perguntou: como faremos? Disse: você lidera a equipe neste últimos cinco jogos e depois vemos."

Tite estreou como técnico contra o Pratense. A partida acabou em 1 a 1. Bom resultado fora de casa. Com os resultados seguintes, a qualificação para a fase seguinte parecia estar perto. Primeiro, bateu o Brasil de Farroupilha por 2 x 0. No embate seguinte, um massacre: 5 a 1 ante o Botafogo de Fagundes Varela. Os dois reveses contra o Encantado (1 a 0) e Guarani de Venâncio Aires (2 a 0) tiraram o time do torneio.

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Apesar do resultado, ele tinha moral com os jogadores e com a diretoria. Assim, viu seu contrato ser renovado para a temporada de 1991. O acordo, segundo Piva, foi selado com um abraço. "Ele desfez a lojinha de materiais esportivos e se dedicou ainda mais à função de técnico", afirma.

"Estádio lotado, jogo pau a pau. Foi um trabalho excepcional que o Tite fez já no primeiro ano como treinador."

A campanha teria tudo para ser histórica. No jogo decisivo, o estádio do Guarany, o Alcides Santarosa, estava lotado para ver o time de Tite contra o Tabajara Guaíba, o Taguá. Após cobrança de falta batida por Gerson Lopes, Jair Galvão marcou de cabeça, aniquilando com o sonho de entrar para a elite do futebol estadual. "Apesar da derrota, foi um duelo memorável", rememora Piva. "Estádio lotado, jogo pau a pau. Foi um trabalho excepcional que o Tite fez já no primeiro ano como treinador."

Após o campeonato, Tite foi convidado para assumir o Caxias e, em 1993, já no Veranópolis ganhou seu primeiro título: campeão da segunda divisão do Gaúchão. O restante é conhecido do público. As principais foram com o Corinthians: dois Campeonatos Brasileiros (2011 e 2015), Libertadores e Mundial de Clubes (2012). A performance chamou a atenção da Confederação Brasileira de Futebol e o levou a assumir a seleção em junho de 2016, para alívio dos torcedores (e dos jogadores, provavelmente), que se livrarão pela segunda vez do técnico Dunga.

A revolução que Tite provocou no time canarinho geralmente é atribuída a sua habilidade em domar egos e falar a língua dos boleiros. O treinador também gosta de frisar que é um defensor da meritocracia. Joga quem está melhor. "Avalio qualidade técnica, o desempenho, mas também o nível de enfrentamento. Precisamos ver que o nível do futebol brasileiro é diferente do chinês, que é diferente do italiano. É preciso relativizar tudo isso para montar a equipe", explicou o técnico em entrevista recente à ESPN.

Essa facilidade de entender o que quer o boleiro não pode, no entanto, ser confundida com atitude paternal. "O pessoal olha para ele e pensa que ele é bonzinho. Quem é bonzinho não ganha o que ele ganhou", afirma o ex-zagueiro Altemir Pessali, que foi comandado por Tite no Guarany e depois jogou pelo Fluminense e no Kawazaka Frontale (Japão). "Uma vez, ele encucou que eu estava acima do peso. Eu me pesei e ele disse que eu estava quatro quilos além do ideal. Tite me deu um esporro, pegou uma jaqueta pesada, daquelas que protegem a gente do frio na Serra Gaúcha, e me fez correr como um louco. Disse que teria de perder aquele peso num dia. E funcionou", afirma o ex-beque, hoje dono de três restaurantes nas cidades da região.

Os antigos companheiros de clube se orgulham ao narrar a trajetória do técnico. Para Freitas, ele resgatou aquele sentimento de que vale a pena torcer pela a seleção. "Pode-se dizer que ele é um técnico de carreira. Foi do time pequeno ao estrelato." Já Piva gosta de recordar uma frase que Tite costumava proferir: "Vamos dar um tiro na Lua e, senão der certo, pelo menos a gente acerta uma estrela."