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Fúlvio Mendes

Os estendais do centro histórico

Uma toilette completa de cultura.

Factos: os vimaranenses têm fama de ser gente que cuida o visual e esta zona do vale do Ave é (ou era) muito rica em indústria têxtil. Já há anos que a coisa não anda muito famosa e poucas foram as indústrias que se safaram à crise, mas, ainda assim, cá na terra a ligação ao têxtil está nos genes. Evidências: o centro histórico da cidade está cheio de instalações que envolvem vestuário. Reparei nisso há dias, quando precisei — ironia do destino — de comprar uma camisa. Num percurso a pé de dez minutos, vi três instalações, de três proveniências diferentes. E depois, para tentar variar o registo cultural, peguei no carro e fui até fábrica da ASA e, porque uma camisa nunca vem só, dei de caras com mais roupa. Constructing with Clothes
Mal entrei no Largo Condessa do Juncal (vulgo Feira do Pão), dei de caras com uma instalação enorme: um interessante arco-íris artístico, construído com camisas em segunda mão. Essas roupinhas estão ligadas umas às outras pelos botões e usam umas garrafas de plástico para lhes dar estrutura. É mais um dos projectos vencedores do Performance Architecture — que se agarrou bem ao slogan da CEC “Eu faço parte”, uma vez que solicitou à população local a doação de roupa, para a construção de peças. A grande vantagem é o ser funcional porque, além de serem peças giras, ali por cima da esplanada da praça, servem de guarda-sol e, posteriormente, quando se desmontar a roupa, esta será doada à caridade. A premissa está cheia de boas intenções, mas é de desconfiar o estado daquelas camisas, depois de tanto tempo a lidar com as intempéries meteorológicas.  Eu vi:ela sentada
Logo a seguir a esta peça colorida — e a dez passos dali, na rua Doutor Avelino Germano (para os vimaranenses, a Tulha) —, esteve presente uma instalação que envolvia 20 cadeiras e 40 camisas brancas, com detectores de passagem e altifalantes instalados. A grande curiosidade sobre esta instalação não foi tanto o trabalho em si, mas o próprio artista. É que este pôs a rua Dr. Avelino Germano no mapa e no mundo, graças à entrevista que deu a um canal local. Se não sabes do que falo é porque não és um dos 42 mil (à data de escrita deste artigo) cibernautas que viram este vídeo, no qual o João Ricardo de Barros Oliveira referencia que “é um trabalho sem objectivo, que não transmite uma mensagem e pretende sair mais confuso do que entrou”. Um artista prático e honesto, que não se perde em conceitos difíceis. O João diz ainda que a sua fonte de inspiração foi um dióspiro — à la Newton, mas com outro fruto — e refere-se a parabólicas e sardinhas e vielas, em dez minutos de (difícil) entrevista, que estão a tornar o artista muito popular entre o pessoal que curte o YouTube. Até sábado às 18h30, o mesmo artista tem uma instalação musical com chávenas, na Praça da Oliveira. Diz quem viu que é curioso. Habitar
Espalhadas um pouco por toda a zona urbana da cidade estão as peças gigantes, colocadas nas fachadas de edifícios em reabilitação, de Fúlvio Mendes. São calças e camisas XXXL, penduradas com molas com a mesma escala. Todas as peças foram construídas por empresas nortenhas que, a julgar pelo tamanho, servirão de empurrão para ajudar o Vale do Ave a sair da crise. Encontrei o Fúlvio Mendes ao pé de uma das suas peças, no Largo dos Laranjais, que me explicou que, para já, são seis as instalações, mas que se vão mudando conforme os edifícios vão ficando prontos e outros entram em obras. Ele mostrou-se contente com os comentários que tem ouvido, enquanto está ali sentado, meio à paisana. De facto, enquanto dei duas de treta com ele, as sessões fotográficas do pessoal que passava, com pose pelo meio para dar escala às peças, foram uma constante — tal como as brincadeiras e piadas secas acerca da instalação. Procura a primeira peça (por exemplo, na Praça de Santiago), lê a plaquinha que lá está e segue as indicações. A ideia do artista foi criar um roteiro, onde cada peça levasse o público à peça seguinte e, de passagem, obrigasse o pessoal a passear e a conhecer a cidade. Ideal se te apetece mesmo ver roupa e o teu namorado não está para aí virado. Dança Macabra
E por falar em têxtil e Vale do Ave e crise e indústria: a antiga fábrica da ASA — que em tempos produzia lençóis — foi reabilitada e é, agora, um centro de exposições e espectáculos. Fica fora da zona urbana e é o espaço escolhido para exibir o trabalho de Christian Boltanski, que pendurou por lá dezenas de casacos e sobretudos, que andam às voltas num mecanismo automático. E sim, é uma dança um pouco macabra. Segundo ele, “as roupas são um índice da memória e das histórias das pessoas anónimas que a vestiram”, por isso isto é uma espécie de monumento temporário. O cheiro a “roupa em segunda mão” fez-me pensar nas histórias daquelas peças e na de todas que alguma vez possuí e que pertenceram a outros. Romantismos à parte, fiquei com vontade de escolher uma peça de roupa — havia tantas e algumas bem giras — e trazê-la vestida. Não sei se alguém toparia. Uma toilette completa de cultura e, no fim, acabei por comprar uns sapatos.