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Música

Minha Trilha Sonora Favorita: 'Django Livre'

Esta trilha fez o filme tornar-se algo poderoso, com uma ressonância emocional que passa por cima de qualquer lenga-lenga ideológica.

Meu pai não gostou muito de Django Livre.

Talvez a gente tenha sem querer criado expectativa demais. Nenhum de nós conseguia conter a empolgação com a ideia de um novo filme do Tarantino, ainda por cima com músicas negras recontextualizadas, que inverteriam o enredo da feia história de escravidão dos EUA (e sua representação continuamente problemática na cultura popular). Compramos os ingressos no dia da estreia, provocando olhares perplexos em nossos futuros colegas de plateia, em sua maioria brancos, ao vibrarmos quando abriram as portas para que a fila entrasse na sala. Mas, enquanto eu desenvolvia dores abdominais por não parar de gargalhar ao ver racistas do Sul levando tiros da maneira mais gratuita possível, meu pai só ficou lá olhando, a testa franzida. Sua perplexidade durou dias, e ele não conseguia encontrar muitos jeitos de descrever o que acabara de ver exceto por: "olha… até que foi interessante…".

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A disparidade entre a minha reação e a do meu pai foi característica de ao menos uma fatia da confusão criada por Django Livre. Tendo em vista que nossa sociedade é incapaz de lembrar de qualquer coisa anterior à mais recente controvérsia a infestar as colunas de opinião, é fácil esquecer, quase dois anos depois do lançamento, o circo midiático que acompanhou o filme mais polêmico de Quentin Tarantino em muito tempo. A estética blaxploitation e de faroeste espaguete, uma marca registrada de Tarantino normalmente elogiada, foi especialmente controversa quando aplicada a um filme que confrontava um legado de opressão e racismo sistemáticos que ainda afeta os Estados Unidos de maneiras viscerais. Os públicos e os críticos simultaneamente elogiaram a presença no filme de um protagonista negro de força, criticaram a violência, gostaram da violência mas não da representação, espumaram contra o modo apelativo com que a escravidão foi retratada, odiaram tudo de cabo a rabo, e tiveram todas as nuances de reação possíveis entre esses extremos. Eu, pessoalmente, amei a homenagem recontextualizada do filme aos seus predecessores estilísticos, mas entendi porque as pessoas se opuseram a essa representação sensacionalista da escravidão, como se de algum modo ela fosse justificada pela violência de um só homem. Fiquei chateado ao ver que, quando o filme começou a passar pelo falatório de programas de premiação, com o qual Tarantino parece ter uma relação simultaneamente de ódio e de dependência simbiótica, nenhum elogio foi feito aos atores negros do filme, ou aos coadjuvantes; que um filme sobre a escravidão parecesse fazer nada mais do que enfeitar os currículos de cineastas e atores brancos é prova inquestionável de que Hollywood ainda não conseguiu abandonar as mesmas práticas racistas e condescendentes que sempre infestam os espaços supostamente progressistas.

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Mas o que mais me incomoda na recepção de Django Livre é que ninguém, de nenhuma das extremidades do espectro do discurso cultural, prestou qualquer atenção de verdade a sua trilha sonora. Isso é uma paródia de crítica, considerando tanto o papel central que a música tem nas obras de Tarantino quanto o verdadeiro grupo de estrelas que contribuiu para esta obra de arte. É também um subproduto do racismo, um fator determinante no esquecimento dos contribuidores que deram ao filme todo o seu poder de transcender barreiras. Sem esta trilha sonora, teria sido só mais um festival de gore bem filmado, a ser colocado ao lado de Pulp Fiction e dos outros na prateleira; com ela, o filme tornou-se algo poderoso, um filme com uma ressonância emocional que passa por cima da lenga-lenga ideológica sentimentalóide para fazer uma declaração corajosa e subversiva sobre o poder da reinvenção narrativa.

Para este texto, não é necessário conhecer em detalhes o intricado enredo de Django Livre. O importante é que o filme talvez seja a maior realização da obra de Tarantino enquanto evidenciada em forma de música. Um antigo pioneiro do uso de músicas já existentes, ele se apoiou muito nas trilhas clássicas de faroestes espaguete compostas por Ennio Morricone (que também contribuiu com uma obra original para o filme), e também pegou emprestadas músicas de outros filmes dos anos 70. Essas obras, combinadas com uma série de músicas originais de artistas consagrados do R&B e do hip-hop, tecem uma tapeçaria de influências díspares, e sua acumulação vai construindo algo muito maior que a soma de suas partes. Tarantino não é a única pessoa usando trilhas sonoras de filmes dos anos 70 de maneira moderna – o trabalho de Adrian Younge na trilha de Black Dynamite foi um sério adversário de Django Livre para este artigo –, mas ele está mesclando passado e presente com mais maestria que qualquer outro diretor do mesmo nível.

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Veja a faixa título, tirada do filme italiano Django e composta pelo notável compositor ítalo-argentino Luis Bacalov. Uma escolha artística que poderia com alguma justiça ser acusada de preguiçosa ou de ser uma apropriação indevida ganha um novo significado quando aplicada a uma história mais enraizada na tradição americana. Os faroestes espaguete na verdade não passavam de uma filtragem semi-apelativa da história do faroeste americano, então o uso que Tarantino faz dessa música é mais subversivo do que qualquer outra coisa. Ver Jamie Foxx cavalgando por um cenário que é a quintessência do interior americano ao som desta música virou de cabeça para baixo a ideia clássica que se tem dos heróis do faroeste – indiferentes e opressivamente brancos – e a destruiu e reconstruiu à imagem deste novo Django.

Essa recontextualização foi mais bem empregada quando o sucesso folk de Jim Croce, "I Got a Name", foi usado na cena acima, em que surge um vínculo entre Django e o Dr. Schultz (um papel pelo qual Christoph Waltz ganhou seu segundo Oscar) por virtude de trabalharem no mesmo ramo – são caçadores de recompensas – e por conveniência mútua terem virado parceiros de negócios. A cena é um descanso da ação explosiva e do humor negro extremo presentes no restante do filme, e a música consagra tanto a preciosidade quanto a patetice de tal momento. É, fácil, uma das melhores cenas do filme, no mínimo por se destacar graças à justaposição com cenas que, em outros filmes, seriam desarmoniosamente explícitas.

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Ainda assim, uma outra trilha sonora, composta das trilhas de outros, não faria deste um filme melhor do que qualquer outro de Tarantino. O que destaca Django Livre dos outros é o punhado de obras originais que emprestam uma seriedade moderna a todo o filme. Estas músicas são os melhores exemplos da música pop contemporânea de filmes apelativos. Nos anos 70, os filmes blaxploitation e o soul psicodélico não eram nada um sem o outro, e as reputações de artistas pioneiros do R&B, como Curtis Mayfield e até mesmo Marvin Gaye, não seriam as mesmas sem os filmes nos quais puderam basear seus trabalhos mais experimentais. As músicas originais em Django Livre funcionam de maneira semelhante para a música contemporânea – ou, melhor, teriam funcionado, se alguém estivesse prestando atenção.

"Freedom" mostra bem esse espírito. Anthony Hamilton e Elayna Boynton são muito bem conhecidos por um grupo restrito de fãs do R&B que ouvem mais do que apenas a lista das mais populares, mas a batida que leva a música e sua instrumentação minimalista vendem com destreza os temas centrais do filme, de libertação através da luta. O seu uso na cena mais excruciante do filme, na qual Django se lembra de sua primeira tentativa de fuga e dos maus-tratos brutais sofridos por sua esposa Broomhilda, torna a vingança da cena subsequente muito mais divertida.

A maior surpresa da trilha sonora original, "100 Black Coffins", produzida por Jamie Foxx e cantada por Rick Ross, é uma música divertida e fodona, que ajuda a vender a ligação do filme com a música sulista moderna, mas passa longe de ser o meu momento favorito da trilha sonora. É a faixa que normalmente se destaca na mente do público, mas ela não ajuda muito o filme em sua missão. A canção que melhor faz isso, "Who Did That To You", toca de maneira épica durante a penúltima cena do filme, enquanto Django vai a cavalo infligir sua vingança final àqueles que mataram Schultz e tentaram escravizá-lo novamente. Legend é mais conhecido por algumas músicas bem sem sal que de vez em quando chegam ao topo das listas, mas seu lado incendiário foi usado de maneira soberba nesta faixa. Ele exige justiça e prestação de contas numa situação em que esses direitos básicos são negados, com um instrumental entusiasmante e catártico que nos impele a bater o pé e a sentir raiva na mesma medida. É, fácil, uma das melhores canções de John Legend de todos os tempos, e a presença de suas músicas em filmes horríveis como Pense Como Eles e About Last Night torna ainda mais triunfante o que acontece em Django.

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Eu poderia cantar loas a esse disco por outras 1.400 palavras, mas o argumento é sempre o mesmo – obras bonitas e pungentes de artistas novos e antigos, adaptadas nesse filme-metralhadora, tornam esta uma das trilhas sonoras mais subestimadas dos últimos cinco anos. Num mundo ideal, uma trilha sonora como esta chegaria ao topo das listas e daria uma vida nova ao insípido pop-R&B por no mínimo mais alguns anos. Mas esta não é a época de Superfly, e as trilhas sonoras na verdade não fazem mais isso.

Pelo menos temos as memórias de Jamie Foxx atirando em um monte de escravocratas racistas. Isso é bem legal.

Sameer Rao teria chamado o reverendo E o legista. Ele está no Twitter em @amancalledsrao

Tradução: Marcio Stockler

O papo é trilhas:

A Trilha de ‘Encontros e Desencontros’ me Faz Ter Raiva por Não Levar Adiante meus Flertes de Metrô