duas crianças e um pato
O meu irmão (à esq.), um pato e eu. Arquivo pessoal do autor.

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Relato

Crescer em... Leiria

"Em 1992 assinei um documento secreto que me impede de falar sobre o Verão no Pedrogão, peço desculpa".

Ainda Portugal estava a décadas de assumir o título europeu daquilo que uma galerista qualquer de Washington considera ser o "maior bem cultural americano para exportação", o "Ser-se Cool" - isto da galerista vi agora no Google -, e já em Leiria a concentração de coolness por metro quadrado pedia meças aos pós-punks londrinos, a um terço de quarteirão da new wave sónica nova iorquina e à punkalhada toda do Bairro de Alvalade.

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Já se percebe, crescer em Leiria entre meados dos anos 1970, atravessando todos os 1980 e entrando nos 1990 teve sempre muito a ver com música, com pinta (ou vontade de a ter), e com uma certa cagança. Sempre fomos os maiores, mas nunca ninguém nos ligou a ponta de um corno até aparecerem os Silence 4, já mais para o final dos 90's. Aliás, quando era puto irritava-me sobremaneira nunca nos mencionarem nos boletins meteorológicos. Fosse na Rádio ou na RTP, Leiria não existia em termos de sol, chuva, calor, humidade.


Vê o primeiro episódio de "Hamilton's Pharmacopeia"


Se queríamos saber tínhamos de olhar para Coimbra, o que não só era penoso ao nível da rivalidade inter-cidades, como claramente falacioso tendo em conta o micro clima leiriense, hoje famoso, à altura menosprezado, causado, diz que, pelas condicionantes "proximidade da Orla Marítima vs Pinhal de Leiria". Uma vez, andava eu prái' no 8º ano, até nevou. Quando faz frio é de tremer o osso, húmido que dói. Por isso, quando a febre das motas atacou, ali pelos finais dos "roaring 80s", quando o País começava a cavalgar a CEE e a indústria local levantava voo, nós andávamos nas nossas Visions, DT LCs e NSRs com as calças do pijama vestidas debaixo das 501, e com três camadas de pullovers a aconchegar o Duffy de penas.

Coolness é o que é. Pinta. A Leiria chegava tudo primeiro e toda a gente nos imitava. Hoje, tenho a certeza disso, na altura queria ter… mas ninguém nos ligava. Todos os que agora são a força cultural e social da cidade cresceram lá quando eu cresci.

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"Todos nos enroscamos ainda nas memórias da Feira de Maio quando éramos putos e aquilo era um paraíso de farturas, quinquilharias várias e carrocéis hi-tech, onde nem o Poço da Morte faltava, todos comprámos roupa na Tuxa e depois na Garagem, e material escolar na Arquivo, todos defendemos a Morcela de Arroz como a iguaria divina que é".

Todos vivemos o mesmo, todos fomos (somos) amigos ou inimigos fidagais, todos andámos no Ninho ou no Jardim Escola, na Escola Branca, ou na Amarela, no Ciclo Velho ou no Ciclo Novo, no Liceu ou na Escola Comercial (alguns andaram no Colégio da Cruz da Areia ou na Gândara, mas a gente perdoa-lhes), todos desatinávamos com os betos dos Capuchos, mas todos tínhamos people nos Capuchos, todos temíamos o pessoal do Bairro Sá Carneiro, mas todos queríamos ter pelo menos um amigo de lá para o caso de haver merda, todos passámos horas infindáveis no D. Diniz, à entrada, lá dentro no café, no Salão de Jogos, lá atrás no Arco… todos adoramos o Castelo, todos nos encabrámos violentamente aos sábados no Beira Rio, no Terreiro e no Álibi e passámos manhãs de domingos a vomitar na varanda (esta última parte se calhar fui só eu), todos passámos temporadas de Verão-que-nunca-mais-acaba no campismo do Pedrogão e… em 1992 assinei um documento secreto que me impede de falar sobre o Verão no Pedrogão, peço desculpa.

Prosseguindo… todos nos enroscamos ainda nas memórias da Feira de Maio quando éramos putos e aquilo era um paraíso de farturas, quinquilharias várias e carrocéis hi-tech, onde nem o Poço da Morte faltava, todos comprámos roupa na Tuxa e depois na Garagem, e material escolar na Arquivo, todos defendemos a Morcela de Arroz como a iguaria divina que é, todos mamámos vinho das Cortes como se não houvesse amanhã, todos líamos o Região de Leiria, e lemos o Jornal de Leiria, todos queríamos ter bandas, durante anos ninguém tinha e agora todos têm… todos, por motivos vários, sabemos o que era a Pan Am, a Senhora do Monte, a Fonte Luminosa cheia de espuma… E é, por tudo isto e muito mais, que todos crescemos na cidade mais cool do País e a fizemos evoluir (uns mais que outros, uns lá, outros por aí), para a cidade com mais pinta da Europa…


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