O Festival Internacional de Música Experimental quer diversidade dentro do nicho
Em Extinção. Foto: Divulgação

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Música

O Festival Internacional de Música Experimental quer diversidade dentro do nicho

Chegando à sua terceira edição, o FIME tenta ampliar o entendimento de "música experimental" para além de suas fronteiras masculinas e eurocêntricas.

A música experimental foi concebida como um rebento masculino, europeu e, pensando algumas décadas depois, estranhamente conservador para a vanguarda que propunha ao longo do século XX. Contradizendo o próprio termo que a batiza, a música experimental é muitas vezes imaginada como um conjunto pré-definido de práticas e paletas sonoras, performada (e, por que não, entendida) por um seleto grupo de pessoas, quase descolada do mundo real. No Brasil, porém, esse estigma vêm sendo desafiado já há algumas décadas.

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Olhando para as iniciativas pelo país, para começo de conversa, fica muito claro que os polos da experimentação sonora do Brasil entraram em expansão em algum momento e se espalham pelo território: apesar de São Paulo e Rio de Janeiro ainda terem grande volume de apresentações, coletivos e selos, capitais como Curitiba (Meia-Vida), Salvador (Sê-Lo! Netlabel, Ciclo de Música Experimental), Belo Horizonte (Seminal Records) e Recife (Estranhas Ocupações/RUMOR) não ficam muito atrás. Os projetos de valorização do protagonismo de mulheres, como o Dissonantes, também mostram uma maior diversidade na produção de música experimental no país.

Tentando dar conta de representar esse volume impressionante de trabalho em nove dias, o Festival Internacional de Música Experimental (FIME), que acontece na capital paulista, chega a sua terceira edição nessa sexta (10). O festival também conta com apresentações gringas, como o compositor japonês Otomo Yoshihide e a flautista alemã Sylvia Hinz, mas sua força motriz segue sendo as apresentações dos companheiros brasileiros de cena.

A edição de 2017 do festival foi curada por Natacha Maurer, Henrique Iwao e Valério Fiel da Costa, que participam ativamente das manifestações culturais que endorsam no FIME (Natacha é produtora do Dissonantes, da casa de shows na zona sul paulistana Ibrasotope e toca como improvisadora no duo Brechó de Hostilidades Sonoras; Iwao é parte da Seminal e realiza os eventos QI em Belo Horizonte; Valério fundou o Artesanato Furioso em Belém e hoje promove eventos do coletivo em João Pessoa). O trio recebeu cerca de 400 propostas de apresentações e afunilaram-as às quase 30 que compõem o line-up do festival.

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Conversei com Natacha sobre o processo de curadoria do festival, o entendimento da "música experimental" pelo festival e as dificuldades de realizar um evento como o FIME na cidade de São Paulo, de três anos pra cá. Enquanto lê a entrevista, você pode conferir a programação completa do FIME no site oficial do festival.

THUMP: O termo “música experimental” pode ter muitas interpretações. Qual a interpretação dada pelo FIME?
Natacha Maurer: Para nós o termo funciona como um aglutinador de diversas práticas atuais que acabam conversando entre si sob o nome "experimental". Por exemplo, no FIME é possível assistir apresentações de noise, improvisação, música contemporânea, arte sonora, além de apresentações que envolvem práticas ligadas à luteria experimental e alteração de instrumentos já existentes (como no caso do chileno Claudio Merlet, com seu "Saltério Extendido"), performance (como no caso da apresentação "Xok"). Em todas essas apresentações é possível perceber que há uma experimentação seja ela sonora, na forma ou no conceito. O termo é de fato bem amplo, e acho que esse é o grande lance de mantê-lo no nome do festival. Com isso, podemos montar um festival com propostas esteticamente muito diversas, mas em que todas estão ligadas a práticas que envolvem experimentação, cada uma a seu modo.

O chileno Claudio Merlet. Foto: Divulgação

Quais dificuldades vocês encontram para realizar o FIME numa cidade como São Paulo? A mudança de gestão afetou em algo a organização do evento do ano passado pra cá?
Neste ano não contamos com apoio da Secretaria Estadual de Cultura (via ProAC), o que dificultou muito a realização do FIME (a maior parte da verba das edições anteriores veio disso). Então, dada a falta de verba, nessa edição foi tudo um pouco mais difícil. Sim, a mudança de gestão também teve um impacto, dado que ela implicou (dentre diversas outras coisas que talvez não caiba mencionar agora) na mudança drástica do quadro de pessoas que trabalham nos principais equipamentos culturais da cidade, incluindo diversos com os quais temos mantido parceria. Na prática, tivemos que mudar o cronograma e a data de realização do festival (que foi em julho nos anos anteriores e esse ano ocorre em novembro) para lidar de algum modo com isso. O que percebemos, também, é que as instituições se tornaram um tanto mais burocratizadas, o que dificulta o andamento e organização de um festival.

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No texto que escreveu sobre o processo de curadoria do FIME, Henrique Iwao comenta que é importante escolher um grupo de projetos que seja interessante em seu conjunto. Sendo assim, há algum conceito ou ideia que una os projetos escolhidos pelo FIME neste ano?
Diferentemente das edições anteriores, nesse ano não colocamos um "tema" na chamada de propostas que fizemos para selecionar os artistas participantes. Acho que essa questão do conjunto tem a ver também com o que eu já falei da diversidade: por exemplo, escolher propostas que envolvam diferentes instrumentações, diferentes modos de criação, de atuação para que o festival ofereça um panorama representativo do que é feito de música na atualidade. Assim, tem essas questões que são postas de antemão — equilíbrio entre participantes homens e mulheres, atenção à produção de países vizinhos e à representatividade das pessoas atuantes na cena brasileira — e a busca de um equilíbrio disso com esses outros aspectos de instrumentação e proposta artística. É claro que é bem difícil falar das outras questões, que acabam tendo um caráter mais subjetivo, e o festival não espera e não quer se colocar como uma mostra do "melhor", até porque nem acreditamos que algo assim seja possível nesse contexto; propostas incríveis e interessantíssimas acabam ficando de fora (inclusive para o ano que vem temos a intenção de resgatar coisas que recebemos nas chamadas e por um motivo ou outro acabaram ficando de fora da programação). Mas, sim, esperamos que seja um panorama representativo e amplo de diferentes práticas, que envolvem uma pesquisa, uma busca pessoal ou coletiva pelo desenvolvimento de uma prática artística propositiva.

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A artista carioca Gabriela Mureb. Foto: Divulgação

O festival acontece em vários lugares da cidade de São Paulo. Como funciona o processo de escolher e realizar os eventos nestes locais?
Bom, existem alguns fatores: damos preferência a fazer em lugares centrais ou de fácil acesso com transporte público, para permitir que público de diferentes regiões chegue mais facilmente. Procuramos também ter lugares mais tradicionais/institucionais e outros mais ligados ao underground; assim, além de estimular uma circulação de diferentes públicos pelas apresentações, tentamos encontrar espaços que funcionem melhor para cada apresentação. Por exemplo, neste ano teremos uma apresentação do Paulo Dantas que pediu um espaço pequeno, silencioso e intimista, sem palco; sugerimos fazê-la no Ibrasotope, que tem essas características, e ele topou; outras apresentações dificilmente funcionariam num ambiente de teatro, caso, por exemplo da performance da Gabriela Mureb com 16 motores; já outras coisas são mais apropriadas a um formato de concerto mais tradicional, como a apresentação da Sylvia Hinz, tocando peças escritas para flauta doce e eletrônica. E fazemos o festival em lugares com os quais mantemos uma relação amigável e de parceria, ou seja, que, de algum modo, têm uma abertura para além do FIME para atividades relacionadas a música experimental: por exemplo, o CCSP manteve durante anos uma programação relacionada a improvisação livre; a Biblioteca Mário de Andrade foi sede, durante dois anos (2015-16) do Ciclo de Música Experimental, etc.

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Você já comentou comigo que, sem a cena de música experimental paulistana em específico e brasileira em geral, o FIME não existiria. Como essa relação se dá?
O FIME é uma consequência das atividades que organizamos com o Ibrasotope e tanto elas como o festival dependem da interlocução com diversos músicos/coletivos/núcleos tanto de SP quanto de outras partes do país. Uma das coisas que buscamos desde o início das atividades do Ibrasotope foi justamente isso — tentar contribuir para a criação de um circuito para que músicos interessados nessas práticas pudessem circular em diferentes espaços, apresentar-se em diferentes cidades, etc. De algum modo, isso parece ter se intensificado ao longo dos últimos anos. O Mário, que foi um dos criadores do Ibrasotope e do FIME, fez no seu doutorado um levantamento de atividades relacionadas à música experimental no Brasil de 2001 a 2016, e uma tabela a partir disso; o que se vê nela é que o número de coisas na área (selos, festivais, séries de apresentações, etc) aumentou exponencialmente de 2010 a 2016. É claro que o FIME se enquadra nesse contexto: uma maior circulação (inclusive de artistas estrangeiros) estimula a criação de um evento pontual mas de maior visibilidade como um festival. Para todas as edições convidamos curadores com diferentes atuações nessa cena: na primeira tivemos o Yuri Bruscky, que é de Recife, organiza várias atividades por lá — como o ciclo de apresentações Rumor e o selo Estranhas Ocupações; a Lilian Campesato, que é mais ligada à universidade e bastante ativa dentro do NuSom e uma das idealizadoras do Sonora; na segunda, o Matthias Koole, que participa da Seminal Records e organizou um festival em Belo Horizonte, a Fernanda Navarro, que mora nos EUA e atua como compositora e performer; e agora, novamente, Henrique Iwao e Valério Fiel da Costa, duas pessoas de regiões diferentes e com interesses e atuações distintas. E, é claro, nós (eu e Mário, que produzimos o FIME) participamos de modo bastante intenso e atento dessa cena, e buscamos estar em contato e trocando com os diferentes coletivos e grupos.

Chegando à terceira edição do festival, acho que essa pergunta já pode ser feita: o que a realização de um evento como o FIME diz sobre os rumos da música experimental no Brasil?
Iniciamos a produção da primeira edição do FIME em 2014, quando tivemos a ideia, pensamos no projeto, no formato, etc. O país era absolutamente outro, então. Agora estamos numa situação — não gosto de falar isso, pois de certa forma contribuo com o diversionismo que é a estratégia que dá origem a essas coisas, mas, ainda assim talvez tenha que colocar — em que pessoas fazem fogueira simbólica com a imagem de uma filósofa e agem de modo violento com coisas que são absolutamente normais dentro do contexto da arte contemporânea.

A vantagem da posição em que estamos é que estamos acostumados a fazer o máximo possível com o que tiver; por exemplo, quando decidimos fazer essa terceira edição não tínhamos nenhuma verba confirmada, e pensamos que, se não tiver nada, fazemos do mesmo jeito; eventualmente obtivemos alguns apoios, mas, em termos financeiros, o festival tem consideravelmente menos do que na sua primeira edição, por exemplo (ainda assim, com 9 dias de duração, mais de 20 apresentações, etc). Acho que isso vai se manter: não quer dizer que por falta de verba ou por uma política cultural que pode se tornar ainda mais acanhada essa produção, que parece vir num crescente, vai diminuir, muito pelo contrário.

Parece bastante positivo que as atividades nessa área estejam cada vez mais descentralizadas: diversos pólos se formam em diferentes cidades, que fomentam cenas locais e que possibilitam trocas entre os participantes. Em termos artísticos, temos visto por aí coisas interessantíssimas e muito diversas, uma participação cada vez maior de mulheres, e um espírito de colaboração que parece essencial para o desenvolvimento da cena.

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