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O anti-herói do boxe brasileiro não liga pro que você acha dele

Ele perdeu quase todas as lutas que fez, mas nem de longe se considera um perdedor. O que sempre importou para Maurício Fernandes da Cruz foi o espetáculo.

Essa é a história de um cara nascido em São Miguel Paulista, periferia da zona leste de São Paulo, no final dos anos 1950, em uma família com pai alcoólatra e mãe “que tinha lá o jeito dela” e que poderia ter terminado como tantas outras parecidas: envolvimento com crime e morte prematura. No meio do caminho, porém, havia um ginásio de boxe. Quando se deu conta, o moleque sem perspectiva estava em ringues de Itália, França, Alemanha e, quem diria, morando em um dos centros mundiais de boxe, na academia do braço direito de Don King, empresário de Muhammad Ali e Mike Tyson, em Nova York, nos EUA.

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Mesmo que esse cara tenha vivido história ímpar no esporte, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Maurício Fernandes da Cruz, hoje com 62 anos. Referência no boxe de rua, ele rodou o mundo por causa do esporte, conquistou espaços inimagináveis e viveu o sonho de muitos lutadores. Mas não pense em uma mera história de superação pelo esporte. Pois na vida de Maurício não cabem previsibilidades.

O BoxRec – site com os histórico de lutas e pontuações de boxeadores profissionais de todo o mundo – dá as cartas. Maurício debutou em 1978 e teve sua última luta registrada em 1984. Foram 52 combates, dos quais perdeu 44 – venceu três e empatou os outros cinco. Ainda assim, não se sente derrotado. “O que importa é fazer meu espetáculo”, diz.

A frase, repetida diversas vezes ao longo da conversa com a VICE, não tem nada a ver com aquela velha ideia de espírito esportivo, de que o que vale é competir. Nessa história, aliás, não cabe nada pronto. Todas as tentativas de rotular Maurício são rechaçadas por ele. Aventureiro? Descompromissado? Ele não se vê nessas categorias. Também não se sentiu ajustado como atleta, trabalhador assalariado, imigrante ilegal, perdedor ou mesmo campeão. Embora tenha circulado por todos esses avatares do longo da vida, fugia deles antes que se cristalizassem. "Somos o que fantasiamos, o que representamos, únicos. O único adversário que temos que enfrentar somos nós mesmos.”

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Foto: Marcos Fantini

Naquela tarde em que os termômetros da zona leste de São Paulo marcavam 38 graus, Maurício chegou ao Clube de Boxe Guarani, na Vila Nova Esperança, pingando suor, com um álbum de capa de gatinho dos anos 1980 em mãos. Ali ele coleciona os recortes de jornais sobre sua carreira – na maioria das vezes não é possível distinguir o veículo que os publicou. Entre os artigos está o de uma de suas primeiras lutas profissionais, em 1977 em Santos – embora essa não conste em seu BoxeRec. “Lá [no BoxeRec] tem muita coisa errada, mas normal. Eu fiz umas 80 lutas, venci umas 15”, diz Maurício. O combate contra Jair Evangelista havia terminado em empate, para contragosto da plateia, segundo a reportagem: “‘Isso é marmelada, eu nunca mais vou voltar aqui’, gritava irritado um senhor de bigode já um tanto rouco de tanto vaiar a inexplicável decisão dos jurados , que deram empate na luta, onde Maurício levou nítida vantagem.”

Maurício começou a praticar boxe no Clube de Regatas Nitro-Química, na zona leste paulistana, com um antigo pugilista italiano. “Para treinar lá tinha que ser sócio. Sabe com é, a gente não tinha dinheiro. Mas depois que começamos a trabalhar em um açougue pintou uma grana e fomos”, diz Maurício, que conta a maioria de suas histórias no plural, incluindo seu irmão gêmeo, Mauro, que também foi boxeador e chegou a ser árbitro. “Sabe como é, gêmeo, sangue, convivência. Mas a gente não anda se frequentando muito agora”, diz.

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Foto: Marcos Fantini

Aos 17 anos, estreou na Forja dos Campeões, torneio que acontece há 78 anos em São Paulo, para revelar novos talentos pugilísticos. Chegou à semifinal e perdeu. Depois entrou para o Adote um Atleta, programa de bolsas para novos boxeadores que tinha propaganda na Rede Globo, como Maurício faz questão de frisar. As práticas eram no Centro Olímpico no Ginásio do Ibirapuera. “Fui adotado pela empresa Moinho São Jorge. O combinado era que precisava evoluir até o final daquele ano, se não cortavam a bolsa”, diz Maurício.

Chegaram ao fim os doze meses e ele foi limado do programa ao que tudo indica, por indisciplina. "Eu era muito briguento. No boxe, os caras não sabem ensinar. Boxe não é violência, é interpretação”, diz. Quando perguntado se as porradas eram nos ringues ou nas ruas, ele não titubeia. “Você sabe que quem briga na rua não tem vida longa. Se você for um cara tranquilo você vive muito. Morei seis anos em Nova York, era cada treta lá. Mas eu sou da paz. Por isso que estou vivo”, diz Maurício.

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Foto: Marcos Fantini

Naquela época de juventude na zona leste paulistana ele aprontava as dele. "Sabe como é a vida de periferia, tudo descontrolado. Começamos a fazer umas coisas erradas, molecagem”, diz. Certo final de semana pegaram na rua um fusquinha “da hora”, encheram o tanque e foram pra balada. Depois deixaram o carro todo estragado na rua. E quase que tudo dá errado. Um amigo ouviu a aventura toda do final de semana e foi pra casa calado. O fusquinha que ficou detonado era da cunhada dele. Logo voltou com a família inteira e denunciaram o feito para a mãe de Maurício, que era pior que a polícia. "Eu apanhava pra caramba, até no último dia de vida da minha mãe, se marcasse ela batia na gente. Normal, é o jeito dela. Tem que respeitar”, diz Maurício. O combinado era pagar o conserto do carro, para não serem denunciados. “Graças a Deus não entrei no crime, tive oportunidades. O boxe abre caminho para a gente”, afirma.

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Na segunda-feira pós-Fusca, como estava desempregado (foi demitido da maioria dos empregos que a mãe arrumou para ele, como o de encadernador na editora Dom Bosco, do Colégio Salesiano) um amigo passou na casa dele para irem nadar na lagoa de São Miguel Paulista – sim, outro fato histórico: na época, os rios de São Paulo também eram limpos. “Somos do tempo que tinha peixe no Tietê. Aprendi a nadar lá, mergulhei tanto naquela ponte. E o que pescamos lá? Que maravilha de infância tivemos”, conta Maurício.

Entregando lutas pelo espetáculo

Foi em uma luta no Ginásio do Pacaembu, em São Paulo, logo após a estreia no profissional que Maurício foi cotado para ir para a Itália. “O Nelson Gomes, boxeador campeão brasileiro e sul americano, me vendeu para a Itália. Com certeza ganhava um percentual, tá ligado. É igual se vende jogador de futebol. Isso aí faz parte. Eu mesmo fiz isso. Quando estava na Itália, mandei recado para o jornal Gazeta Esportiva de que quem quisesse se comunicar comigo eu dava um jeito de falar com os caras [os empresários] para mandar passagem. Fiz isso para uns três ou quatro lutadores”, diz.

Maurício desembarcou em Roma levando na mala um agrado para o anfitrião. “A sabedoria divina ajuda todo mundo: um colega meu me falou, 'você leva cachaça 51 para os caras que eles te recebem bem'. Eu coloquei quatro garrafas na mala, uma cortesia”. O anfitrião era um boxeador brasileiro que se parecia com o Bruce Lee e levaria Maurício até os empresários locais. Logo que o recepcionou, começou a falar mal de Roma: "'Pô, aqui é pior que São Paulo, só tem ladrão’, ele dizia. Maior 'xarope' o cara. Eu não, sou espiritual”, diz Maurício, que já foi leitor de Paulo Coelho, frequentou a igreja mórmon e costuma fazer citações bíblicas. “O mal só acontece para quem tem o mal dentro de si”, filosofa.

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Foto: Marcos Fantini

Maurício diz que já saiu do Brasil com lutas marcadas. Ganharia 1.500 liras (moeda italiana na época) por cada. “Era fraco, o negócio era uma máfia lá. Mas ia adiantar um lado, ganhar um dinheiro. Na ideia de comprar uma casa para minha mãe, no fim compramos três casas [além do imóvel da matriarca, um para ele e outro para o irmão, mas contando o dinheiro da carreira inteira]. Aqui no Brasil não tem tanto evento. Todos os esportistas vão para o primeiro mundo”, diz.

Logo que chegou à Itália, conta Maurício, os colegas pugilistas já explicaram que não era para entrar nas lutas mandando ver. “Se você começar quebrando a cara dos caras eles só te arrumam foguete [cara forte]. Se quiser viver bem lá, ganhar um dinheirinho e se divertir, não bate nos caras não. Eles sabem que é brasileiro. Fica de lado, levanta a mão, também não deixa os caras te baterem. É para fazer oito rounds, faz oito rounds. Aí eu respirava e fazia o pai nosso e a ave maria, mas só por dentro”, conta Maurício, empunhando os braços de lado mostrando a técnica que usava, na miúda. “Os caras me chamavam de vagabunda, porque eu ia devagar, mas eu chegava lá e dava espetáculo. Se eu quisesse quebrava a cara deles. Mas se era para ir devagar, eu ia devagar. A maioria era na manha”, diz.

Quando perguntado sobre quem dava essas coordenadas, afirma: “Eu mesmo. Sabia que se é para ser campeão, tem que se dedicar exclusivamente àquilo, e eu estava molecão, coladinho em meu irmão gêmeo. Maior saudade dele”, diz. Maurício, assim, afirma que era sua própria decisão ir levando a luta devagar, entregando a vitória ao oponente, se necessário, mas sem se deixar ser nocauteado. Ele entrava no jogo já estabelecido entre os atletas das grandes potências econômicas e os de países mais pobres – em um mimetismo perfeito do capitalismo global pós-colonial. Ao mesmo tempo, mais adiante, solta que se chegasse quebrando a cara do oponente, não era pago pela luta. Perguntado, mais de uma vez ao longo da conversa, se já havia sido contratado para perder, responde. “Pôoo, normal. Por isso que eu era chamado tanto pra lutar.” Nesta primeira temporada na Itália, fazia combates pugilísticos quatro vezes por mês.

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"Fui nocauteado. Quebrei os ossos da face, os dentes da frente. Mas não queria ficar no hospital. Assinei um termo de responsabilidade e fui me recuperar em casa”

O primeiro surgiu de última hora. Passaram na casa dele em Ancona (capital da região de Marcas, na Itália central) à noite pedindo para juntar as coisas que lutaria no dia seguinte em outra cidade. "A primeira coisa que gostava de ver era o tamanho do adversário, se era mais alto eu já ficava cabreiro. Quando vi que o cara era mais baixo, comecei a quebrar a cara dele, mas não nocauteei, deixei ele ganhar por pouco”, conta. Na segunda luta, arrumaram para ele um “foguete”. “Pensei: 'não vou tomar pancada. Aí enrolei o cara. Não gostaram muito, queriam que eu vencesse. Eu não queria responsabilidade, tá ligado, queria só fazer espetáculo.”

No terceiro combate, em Gênova, o oponente era um argentino. Maurício ficou feliz porque poderia falar português um pouco. “Quem fala espanhol entende”, diz. Mas o que estava interessado mesmo era em verificar o tamanho do oponente. “Vi que o cara era baixinho, puta, que legal”, conta. Chegando lá, se aproximou para se apresentar, disse que era brasileiro e o boxeador devolveu um “no hablo con maricón”. “Falei: 'filha da mãe, você vai ver lá em cima'. Quebrei a cara dele, ganhei por ponto”, diz Maurício, relatando uma de suas três vitórias registradas, mas com o mesmo ímpeto que narra qualquer outra das lutas.

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“Os caras se empolgaram, mas falei: ‘só fico aqui se mandarem passagem pra minha mãe e meu irmão”. Conseguiu. A família dividiu a vida na Itália, terra dos ancestrais da mãe . Só resolveram ir embora quando, segundo Maurício, o irmão se envolveu com a mulher de um chefão. “Os caras começaram a nos ameaçar, falei: ‘vamos para os Estados Unidos”.

Hero Boy

Os irmãos Cruz estiveram por duas temporadas em Nova York, em um total de seis anos da cidade. Depois da pequena confusão amorosa na Itália, a estratégia era voltar para o Brasil para tirar o visto de turista para os EUA. Mas o visto foi negado. Maurício conversou com alguns empresários de pugilistas de Nova York, com quem o irmão já tinha contato, e disseram que enviariam um visto de atleta se Maurício se tornasse campeão brasileiro. Não rolou. “Me arrumaram um cara para lutar que tenho certeza que estava drogado, dei tanta pancada no cara e ele não caía. Aí deram vitória para ele”, diz.

O caminho então era voltar a ter residência na Itália para facilitar o visto. Chegando lá, como Maurício havia abandonado o contrato de trabalho como boxeador sem aviso prévio, a licença para lutar boxe havia sido cancelada. "Um empresário queria me federar na Suíça. Mas eu não estava afim de fazer boxe, queria ir para os EUA para ganhar dólar. Boxe é muito difícil. Nos EUA os caras são muito fortes”, diz Maurício.

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Foto: Marcos Fantini

Como seus papéis não saíam, ele combinou que Mauro tirasse o passaporte e, já que eram idênticos, Maurício viajaria com o documento dele. Cerca de vinte dias antes da partida Maurício andava de bicicleta quando foi atropelado em Viareggio, na Toscana, onde, segundo ele, vivia o tenor Puccini (imagine pronunciado com sotaque italiano). "Fui nocauteado. Quebrei os ossos da face, os dentes da frente. Mas não queria ficar no hospital. Assinei um termo de responsabilidade e fui me recuperar em casa”, diz.

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Chegou o dia da viagem à Big Apple. No aeroporto o empresário do irmão esperava Maurício – achando que era o Mauro. Quem desvendou o truque foi Dona Clarice, a mãe do magnata, que desconfiou quando ele não reconheceu a cadelinha da casa, de quem Mauro certamente se lembraria. “Aí fiquei na casa do empresário na Riverside Drive, em Manhattan. Vê que privilégio. O cara era síndico de um prédio de primeira. Empresário de boxeador, ganhava uma grana”, diz. Maurício conta que fizeram a inscrição dele na federação de boxeadores de Nova York. “Me federaram como Mauro, por causa do passaporte. Mas falei que queria voltar ao normal, a ser Maurício”, diz.

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Foto: Marcos Fantini

O empresário, ao ver que ele era “do bem, responsável, educado, que respeitava a família”, segundo Maurício define, o levou para a Ringside, academia que abria às oito da manhã e fechava às oito da noite, com gente o tempo inteiro lutando. "Chegando lá, que benção, o dono da academia era o Mario Costa, português braço direito do Don King, que foi empresário do Muhammad Ali, Mike Tyson e Michael Jackson.” Maurício morou por um tempo na academia, nas quitinetes reservadas para pugilistas que pagassem cerca de 50 dólares por semana.

Mas, depois, graças a uma amizade com o italiano dono da quitanda onde comprava frutas, acabou arrumando um emprego. “Eu falava bem italiano, conhecia toda a Itália. 'Ancona, Napoli, sono stato lì’", conta, sobre as conversas amistosas. “‘Então falei pro cara: 'estou precisando arrumar serviço, não quero mais lutar boxe, ficar na academia. Estou com dente quebrado e tal’", disse Maurício, que depois acabou descolando uma prótese. Surgiu um emprego em um restaurante, italiano, claro. “Comecei como ajudante geral e fiz de tudo. A gente entregava comida na MTV, até nas Nações Unidas, aqueles sanduíches de six feet, you know.” O nome do restaurante é mais uma coincidência semântica: Manganaro's Hero Boy. Apesar de que Maurício não acredita em coincidências. “É tudo coisa divina”, costuma dizer.

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Surgiu, então, uma luta de boxe em Porto Rico. Eram 1.500 dólares de pagamento. "Era pouco isso, para fazer dez rounds. Mas se o contrato era de dez rounds, eu não abandonava não. Eu gostava sempre de fazer espetáculo. Modéstia parte”, diz. O patrão falou que ele não podia faltar, e Maurício gostava do emprego, ganhava bastante gorjeta, tinha conseguido até morar em um apartamento que estava abandonado em cima do restaurante em troca apenas de cuidar do local. Para ir para a luta, então, colocou suas condições: “Quero os 1.500 dólares adiantados e limpos [sem taxas e descontos]. E não vou para tomar pancada, mas faço os dez rounds”, disse. O combate acabou não acontecendo.

Nessa época, Maurício já tinha arranjado um emprego para o irmão, Mauro, no restaurante também. De vez em quando, eles ainda boxeavam. “Em dia de luta, a gente pesava às 11h. Depois ia para o restaurante, tinha comida adoidado. A gente bebia e ia lutar à noite”, conta, relevando que sim, várias vezes foi para uma luta alcoolizado. “É igual dirigir um carro bêbado. Aliás, quantas vezes em Nova York eu dirigi bêbado. Mas eu sabia conversar com os caras, nunca fui preso, não assinei uma. Nunca fiz mal pra ninguém. Sou protegido pela divindade, tenho que agradecer”, diz Maurício, que teve o visto para os EUA negado quando tentou entrar lá de novo, anos mais tarde, mas jura que não tinham nenhuma ocorrência contra ele.

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Maurício já tinha juntado uma grana e resolveu sair fora. “Os caras queriam fazer Green Card para mim. Mas eu não queria ser escravo do capitalismo”, diz, embora admita que o boxe também é um negócio. “Os campeões do mundo são selecionados pelos empresários, eles escolhem quem vai ser. Aí nunca colocam adversários fortes, que vão quebrar a cara deles. É um comércio o boxe”, diz, se referindo a uma prática que sugere porque alguns lutadores são invictos.

A segunda entrada nos EUA foi ainda mais emocionante do que viajar com o passaporte do irmão. Com o visto de turista negado, os dois resolveram ir ilegalmente pelo México. "Era 1988. Tínhamos feito um sobrado aqui em São Paulo, investido nosso dinheiro. Ia abrir uma academia, não deu certo, minha mãe era contra e ficava falando. Resolvemos voltar pra Nova York”, conta. A ideia era tentar o visto novamente pela Itália. Quando deu errado, resolveram dar uma volta por Ancona, onde haviam morado antes. Souberam de uma luta de boxe que envolveria um pugilista mexicano. “Ah, esse é o cara para nos colocar para dentro dos EUA”, pensaram.

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Foto: Marcos Fantini

Foram conhecê-lo, Gandarilla era o nome do lutador, que disse: “Procuraram a pessoa certa, moro na fronteira”. Os irmãos Maurício e Mauro compraram uma passagem para a Cidade do México. Descendo lá, primeiro foram tomar uma tequila, que estavam secos para experimentar. Depois pegaram outro voo até uma cidade da fronteira e daí um ônibus para chegar ao povoado onde Gandarilla vivia, isso tudo seguindo um endereço anotado em um pedaço de papel pelo mexicano. “Chegamos lá era uma favela, o cara já tinha lutado com vários campeões, mas morava numa favela”, conta.

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Era luz do dia ainda quando os coiotes chegaram para fazer a travessia, pelo rio Bravo. “Era cheio de caco de vidro lá no fundo, acho que os americanos que colocavam, os caras são meio sanguinários”, especula. Maurício tirou o par de tênis Olympikus que tinha acabado de comprar para não estragá-lo e cruzou o rio, com a água batendo no peito. Do outro lado, um carro os esperava e os levou até a casa de um empresário de boxe. O homem pediu referências em Nova York, eles passaram o contato do empresário que os agenciava lá, que falou mal deles. “Ele disse que éramos zoeira, bagunceiros, não queríamos fazer nada de boxe, éramos maconheiros, ficávamos bebendo. Sujou nós com o empresário. O cara cancelou a luta que tinha arrumado para nós, ficou nervoso. Virou a cara”, conta.

Daí começou uma nova saga que Maurício atribui ser uma vingança do empresário. Os irmãos haviam pedido para chegar até Houston, capital do Texas, de lá pegariam um voo para Nova York. Os caras os colocaram em um vagão de trem de carga, fecharam a porta e disseram que em Houston alguém abriria. “Tinha mais quatro el-salvadorenhos lá dentro. Viajamos umas seis horas no escuro, era de noite, naquele calor. O trem fez uma primeira parada. Os el-salvadorenhos queriam sair fora, os convencemos que não, se não seriam todos presos”, conta Maurício.

Após mais tempo de viagem, todos já passavam mal. “Não é sofrimento não, é coisa da vida”, diz. Chegou certa hora que ele e o irmão decidiram abandonar o trem. Conseguiram sair por baixo, caindo no trilho. Quando levantaram, estavam no deserto. Andaram procurando um abrigo, só havia mansões, arriscado tentar entrar e serem deportados. Até que encontraram uma casa mais simples e uma senhora mexicana os acolheu. “Tranquilos que ya están en America”. Tomaram água e comeram pão Pullman com geléia. “Só tinha isso na casa da mulher, estranho. E eu afim do maior rango”, conta Maurício. No fim de tarde, o marido dela os levou até a rodoviária de uma cidade chamada Vitória. “É tudo divino, tem que trabalhar o espiritual”, comenta Maurício, sobre o nome. “Você tem que se concentrar, pensar no bem. E nós nessa fé”, diz.

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Foto: Marcos Fantini

Já em Houston, Mauro ligou para uma namorada que tinha em Nova York – ela havia sido governanta da Risoleta Neves, mulher do Tancredo Neves (para os leitores mais jovens, avó do Aécio Neves) – e pediu para que os buscasse no aeroporto de Nova York, onde chegariam. “A gente pagava tudo no travel check”, conta Maurício. Chegando lá, foram direto para o restaurante italiano onde já tinham trabalhado. O patrão estava almoçando, levantou a cabeça, olhou para eles e falou: “Foi Deus que trouxe vocês de volta, esses aqui não fazem nada”, conta Maurício, em italiano, sobre os então atuais funcionários do restaurante. “Ser humano é assim, quando não precisa mais, dispensa, né”, reflete.

Maurício disse ao patrão que precisava de trabalho e lugar para morar, se não voltaria a lutar. O homem, que dizia que boxe era coisa de louco, descolou o apê do terceiro andar novamente. Foram mais três anos em Nova York. Dessa vez sem nada de boxe. De novo, quando juntaram dinheiro, resolveram vir embora. “Cada um tinha 50 mil dólares, viemos para o Brasil, quitamos a casa da minha mãe e compramos uma casa para cada”, diz Maurício. Ainda sobrou dinheiro, por um tempo. "Em 1992, um ladrão entrou na minha casa e levou meus dólares, fiquei sem. Graças a Deus, estava zoando muito”, diz.

“O maior espetáculo e show sou eu mesmo”

Depois de duas temporadas na Itália e duas nos Estados Unidos, Maurício não saiu mais do Brasil. Em 1999 teve uma filha com uma ex-boxeadora amadora. “Depois ela foi trabalhar numa estamparia, se apaixonou pelo chefe e foi embora. Tudo bem, normal. Disse que se o cara ia dar uma vida melhor, que ela fosse. Mas eu não ia ficar sem minha filha”, conta. “Eu que fui babysitter da menina, levava para escola”, conta, dizendo que criou Milena, hoje com 19 anos e cursando faculdade de administração, em parceria com a mãe. “Mas há três anos ela veio morar só comigo”, diz. A mãe de Maurício, morta em 2011, também foi cuidada até o final por ele.

Maurício chegou a ter uma pensão em sua casa, ao lado do metrô Belém. “Tinha uma época que moravam 13 moças lá. Uma vez uma ateou fogo na casa”, lembra. Ele também teve empregos no Ceasa e em um hortifruti no Itaim Bibi, zona sul de São Paulo. “Lá peguei de faxineiro”, diz. Atualmente ele afirma que vive de doações. “Continuei praticando boxe, mas não me interessei por ganhar mais dinheiro. Ja corri muito atrás de trabalhar como treinador, tirei a licença, mas é muita concorrência. Dou aula como voluntário e às vezes os alunos me dão 20 contos”, diz.

O pugilista frequenta o clube Guarani, o Centro Olímpico, no Ibirapuera, e é treinador não remunerado no projeto Boxe Garrido, academia que fica embaixo de um viaduto na Mooca, zona leste de São Paulo, e tem em sua página do Facebook o slogan: “Com a droga, você vai e fica…Com o boxe, você vai e volta.” É lá que atualmente Maurício treina um refugiado nigeriano cujo nome não consegue pronunciar. “Chamo ele de Cosi Cosi, os documentos deles são antigos, ele veio fugido”, conta. O orgulho do pupilo (como ele mesmo o chamou em uma mensagem no WhatsApp) é evidente.“Alguns adversários dele na última Forja dos Campeões saíram fora. Arregaram, acho que ficaram com medo, o cara é perigoso. Não tem um porte legal, ô, o africano”, pergunta ao colega velha-guarda que acabara de chegar, que responde positivamente. “O menino me escuta, ele sabe tudo”, diz Maurício.

O colega começa a folhear o álbum e juntos vão relembrando os boxeadores nas fotos antigas. "Esse é o corinthiano, esse é da Pirelli”, diz Maurício, até que chega em uma imagem de uma mulher com um bebê. “Essa é minha falecida mãe com um bebê que batizei lá na Itália, ele agora é tenor, faz o maior sucesso”, diz. Na última página do álbum, acima de uma foto em que aparecem ele e o irmão, aparentando uns 14 anos, ao lado da mãe em uma praia, um dizer bíblico parece resumir a fé de Maurício nessa vida e sua jornada no boxe. “Não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28).

Na indústria do boxe, aqueles que lutam contratados para perder dos selecionados para serem os campeões, fazendo-os subir no ranking, são chamados de escada. Se Maurício Fernandes da Cruz foi escada no boxe, o boxe foi a escada dele. O boxe permitiu que Maurício tivesse sua casa, cuidasse da família, curtisse a vida – bem diferente do destino de muitos colegas que estavam naquele fusquinha da hora num sábado da juventude, e também dos que carregaram o fardo de vencedores. "Todos os campeões têm que se dedicar, se concentrar naquilo. Eu queria um barato, ganhar dinheiro, sair fora, arrumar uma casa para mim. Consegui, hoje estou tranquilo. Meu objetivo era ficar tranquilo”, diz.

Quando perguntado se ele não se importa com as derrotas cravadas em seu BoxRec, diz: “Nunca perdi, saía do ringue lúcido, dando risada, aplaudia os caras, falava ‘me chama de novo aí que faço até melhor’. A única derrota que você tem é para você mesmo”, afirma Maurício. No verso de um dos recortes de seu álbum, uma anotação à mão reitera: “O maior espetáculo e show sou eu mesmo.”

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